CAPÍTULO 1
O céu estava nublado como o de todos os dias no distrito mais deprimente da Ilha das Emoções, a tristeza.
Ninguém sabe como ela foi criada, quem a descobriu ou como surgiu, mas uma opinião coletiva é de que foi uma grande perversidade.
Katherine Sagrite, pensava na chuva como uma das poucas coisas tristes que lhe davam prazer. A moça era a única herdeira do Senhor Rayro Bradoc, o homem mais importante das áreas ocultas da Tristeza, alguém do tipo que você não quer cruzar pelo caminho.
Viver no submundo¹ para ela não era um problema, nem a falta de uma família e a presença indiferente de um pai contrabandista. O problema para era ela, era só... viver, não importava o local, não importava com quem. Sentia coisas que não sabia explicar e a única praga que a movia há sete anos, era a vingança primitiva que ela não era capaz de nomear.
O presidente a assombrava como se fosse uma bruxa má de um conto infantil, o governo queria derrubar tudo que poderia ser próspero e escravizar todos que tinham sonhos e a faísca que brilhava dentro da mulher era a sede por uma liberdade que nunca alcançaria.
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Recentemente, o submundo está mais movimentado do que deveria, há uma produção em massa de armamento de todos os tipos, que não seria posto um investimento daquela quantia se fosse apenas para rechear um arsenal. Katherine investiga isso há um tempo, por que, quem fábrica toda aquela destruição encapsulada em ferro, é seu pai.
Hoje ele a avisou que alguém importante visitaria a mansão em que ela morava, a mulher suspeitava de quem seria, e tinha planos guardados para ele à muito tempo.
A produção de todas aquelas bombas e munições, era completamente ilegal, ladrão ou coisa alguma precisaria de tanto, não há nenhum lugar existente no distrito que comporte tudo aquilo... que não seja dentro da sede governamental.
Os tempos são de pré guerra, quem raios iria pedir isso, se não Coulson? O ministro de guerra corrupto, metido a cientista, tem total verba e apoio para algo do tipo vindo do governador, que não iria sujar o próprio nome. Ela apostava.
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Katherine havia esperado a manhã toda para que chegassem, quando viu o rosto de Coulson, seus seguranças e percebeu que seu palpite estava certo, não sentiu nada. Ela pensava que quando o revesse, desabaria, mas não tinha mais dezessete anos e nascentes nos olhos.
Esperou mais a tarde toda até que a reunião acabasse, queria pregar os ouvidos atrás da grande porta de madeira do escritório de seu pai várias vezes, mas segurou a imprudência dentro dela e ficou sentada pacientemente no sofá, com uma calmaria que não era de seu feitio.
Coulson saiu pelo batente da porta e seu pai o seguiu, fechando a porta atrás dele na sequência. Eles apertam as mãos e o ministro caminha na direção da sala, Katherine se levanta e vai até ele cumprimentá-lo.
— Senhor Coulson! Como vai? — Ela diz em um tom amigo, segurando a bile que subia por seu esôfago, a vontade de cravar uma de suas facas no olho esquerdo dele.
— Katherine. Vou como o planejado, e você? Cresceu desde a última vez que te vi, era tão pequenina, agora já é uma mulher. — Mas mesmo assim, ele a pegou como se fosse um animal, amordaçou e injetou seringas em suas veias com agulhas maiores que de tricotar. Nunca sequer sonhou que ela se recordava de cada detalhe, não estava em seus planos, assim como nada que aconteceu naquela época.
— Meu pai, permita que eu sirva meu chá de boldo roxo para o Senhor Coulson. — A moça se volta ao pai de forma submissa.
— Claro. — Apesar de ser um enorme sem caráter, não sabia dizer um “não” a filhinha.
O ministro segue a mulher para a sala de visitas, que agora havia assumido a postura de uma santa casta.
— Sente-se Senhor. Vou buscar o chá, faço questão de lhe servir. — Ele obedece.
Katherine volta momentos depois, segurando uma bandeja com um bule e duas xícaras. Serve o homem e se senta, ansiosa para que ele leve o líquido a boca.
Coulson quase derruba a xícara ao queimar a língua comprida com chá. Os ombros da mulher se aliviam de satisfação, mas ela ainda finge estar preocupada.
— Senhor! Mil perdões, que desastre eu sou! Nunca me dei bem com a cozinha. — A voz dela é desesperada ao pegar um guardanapo em cima da bandeja para limpar o pouco de chá que caiu sobre a mão do ministro.
— Não foi nada. — Ele parece chateado de uma má forma.
No momento em que encara o rosto dela, a oportunidade não é perdida, Katherine captura a mente do homem com os olhos.
— Me diga o que veio discutir na reunião com Rayro Bradoc.
Gerald Coulson, um dos homens mais imponentes do distrito, acaba de cair na teia de uma viúva negra, sem nem se dar conta.
Os olhos dele ficam vazios encarando os dela, o corpo paralisa e a boca involuntariamente se move a obedecendo, como se fosse uma marionete.
Às vezes o feitiço se volta contra o feiticeiro, não é?
— Rayro fornecerá armamento e substâncias para retomarmos os experimentos humanos sobre a capacidade mental e atacar o Distrito 2° se conseguirmos firmar a aliança com o Medo. — Se eu pudesse ouvir o coração dela, diria que parou e voltou a bater.
— Vá embora de minha casa, se retornar aqui novamente, vou estourar seu cérebro e não restará miolos. — Katherine cospe baixo, entre dentes, com amargura na voz.
O homem se levanta e atravessa o batente da porta, como se suas vontades não existissem e ele fosse apenas um cão desalmado. O que ele de fato era.
Katherine escuta momentos depois o portão se abrindo e fechando. Havia partido.
Era isto que ele havia feito com ela, a transformou em algo inominável, que fazia coisas que nem ele mesmo seria capaz de entender. E não foi a única, ela não passou por tudo aquilo sozinha, se tivesse, o peso seria menor.
Agora tudo se repetiria de novo e seu pai estava financiando algo que foi instrumento da tortura da própria filha, da tortura de adolescentes. Pobrezinha, estava vivendo seu maior pesadelo.
Katherine não iria deixar que aquilo acontecesse. Ah, com certeza não iria.
Mas, como ela faria aquilo? Bem, uma menina com um par de facas gêmeas, não é ninguém. Mas talvez mais algumas pessoas pudessem fazer algum pequeno desfalque.
Se você se pergunta: “que pessoas poderiam ajudá-la com uma coisa dessas?” Eu lhe respondo: as que sentem o mesmo que ela. Que viveram o mesmo que ela e podem querer que não ocorra de novo, como ela.
★
Aos dezessete anos, Katherine estudava na escola local, assim como Beatrice Tinkle, Eriksen Hoppe e Malaika Rose Devenck. Isto era o que os quatro tinham em comum na época, por que não dividiam salas e nem idades.
A única deles que ela teve um mínimo contato era Beatrice, e é a única que ela mantém um até hoje, por mais que superficial.
A relação das meninas na escola era comum, de colegas distantes. Depois dos experimentos, talvez tenham ficado mais próximas. Nunca falaram sobre o ocorrido, mas nos breves encontros que tiveram, agiram como... talvez, amigas. Katherine não a vê há algum tempo, mas também nunca tiveram o costume de se encontrarem por questões que não fossem o destino. Poderia até ser que ela quisesse, não dava para negar que Beatrice era alguém agradável de se ter por perto, fazia bem aos olhos e aos sentidos.
O que não foi o caso com Eriksen.
Na escola, os dois nunca trocaram sequer uma mísera palavra, depois dos experimentos, ele a procurou, pedindo ajuda. O por que de ser ela? Nem os deuses sabem, Katherine nunca conseguia lê-lo, sempre foi algo difícil. A mulher também não o considerava como alguém fácil, na verdade o adjetivo mais dócil que poderia direcionar a ele, seria órfico.
A relação com o homem, era a mais complexa, nunca foram amigos e muito menos tiveram a vontade para tal coisa. Ela não o conhece, o que sabe, não é nada de bom, e é mais do que deveria.
Eriksen era como ela, foi modificado também. Eles moravam na mesma região, mas a última vez que o viu, foi na primavera da temporada passada e não sabia se queria rever.
Depois, por último, havia Malaika. Filha do Capitão Devenck, chamado de “Diabo dos Mares”, uma nomeação ridícula na opinião de Katherine, por mas que seja exatamente isso o que ele fosse. Malaika, entre os quatro, foi a que ela menos trocou palavras, o que foi trocado ali eram mais gritos. De socorro.
A mulher sempre foi muito fechada e Katherine não sabia bem como se socializar com quem não queria uma socialização. Depois dos experimentos, elas nunca mais se viram, na época dos estudos Malaika estava no último ano, assim como Eriksen, ambos pareciam ser próximos, mas não dava para ter certeza, que contato elas tinham não é mesmo?
Quando o ano letivo acabou, Malaika embarcou em viagens com o pai à bordo do BlackBeard, o navio mais fascinante e assustador de toda a ilha. O deleite dos olhos de Katherine nos tempos de menina. Ela não tem noção alguma de como a mulher passa a vida atualmente além de velejar, nunca mais a encontrou. A relação das duas sempre foi inexistente.
Sete anos depois de tudo, cada um seguiu sua vida, porém, algo que eu sei, é que isto é uma situação que nenhum dos quatro gostaria de reviver. Mas também sei que se há algo que motive alguém acima de tudo neste lugar infeliz, era a vontade insaciável por ser livre.
Qual deles seria mais apropriado para Katherine aclamar?
Beatrice não. Era alguém que ela poderia ter afeição, mas não alguém que ela consideraria pedir ajuda.
Malaika, não estava por perto, Ronan nunca a alcançaria.
Só lhe restava o presado Eriksen. Útil ele era, o trabalho de um mercenário não é matar? Além disso, tinha coisas pendentes com a mulher, dividas à pagar. Parece que agora seria o momento certo de cobrar.
★
Katherine sobe as escadas correndo e vira o corredor, abrindo a porta de seu quarto. Se senta na cadeira em frente a escrivaninha de madeira polida e abre a primeira gaveta, tirando papéis, sua pena cara e um tinteiro, ela começa a escrever.
Depois de pronta, enrola a carta e a lacra com seu selo particular, o desenho do crânio de um lobo das neves.
Arrasta a cadeira para de baixo da gaiola pendurada no teto de seu quarto e abre a portinha com grades pequeninas na ponta dos pés, pega o corvo velho com dificuldade e o coloca sobre o ombro, saltando para o chão em um pulo forte.
— Como vai Ronan? Tenho um trabalho pra você. — O corvo a responde com um grasnado estridente. Era o mais próximo que Katherine tinha de um amigo, além da solidão.
O pássaro levanta vôo do ombro da mulher e aterrisa no beiral da janela. Ela pega um cordão fino e enrola em volta da pata do bicho, prendendo a carta com firmeza.
— Leve isto até Eriksen Hoppe, independente de onde ele esteja. O encontre e garanta que ninguém além dele pegará isto. Sei que você consegue.
Katherine afaga a pequena cabecinha do animal e em seguida, observa pela janela ele desaparecer pelos céus.
Ela achava ter sido convincente o suficiente para o homem aceitar sua proposta, mencionou sobre a carta não ser uma cobrança, mais se não fosse, nem teria citado nada do tipo.
Agora, o que ela teria que fazer, era torcer para que o bom senso batesse na porta de Eriksen enquanto ele estivesse acordado.
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Notas:
- Submundo¹: nome dado a Zona Sudeste do 5° Distrito, local onde habita o núcleo de toda a criminalidade. Que é comandado por Rayro Bradoc.
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