CAPÍTULO 01 - O Início De Tudo
DEDICADO: MaylahEsteves
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❝Há momentos que você precisa desistir de alguma coisa para preservar a outra❞.
— Rize, TOKYO GHOUL.
***
❝Você disse: "Ei, garota, quer sentar comigo? Mesa nos fundos da Cafeteria C
Podemos ser amigos se você quiser ser
Mas só até o relógio bater três
Depois do almoço, podemos caminhar para a aula
Fale sobre os meninos que queremos esmagar
Fale sobre maneiras de conseguir um pouco mais de dinheiro
Depois disso eu vou te ignorar, oh(...)❞.
— Lunchbox friends, Melanie Martinez
Contém 11.529 palavras.
E era uma manhã de domingo...
De Austin, os meus primos comunicaram que viriam hoje cedo passar um tempinho com minha família no Hotel do Cervo, herança de vovô, e que precisavam esfriar a cabeça. Fernanda e Thomas estão vivendo momentos turbulentos em casa, lá na capital, porque seus pais estão numa disputa de bens com o divórcio em aberto. Eu queria que a vinda deles aqui fosse de outro jeito, com outro motivo, mas eles precisam relaxar, e levar esses problemas como uma página virada de um livro esquecido.
Era nisso que eles queriam acreditar e eu também.
Aqui em Lockhart, eles poderiam esquecer um pouco de tudo isso. A cidade é pequena, mas não tanto pra considerar um vilarejo. E aqui eles podem passear por horas que sempre teria algo de diferente... Pelo menos por alguns dias, aí teríamos que inventar algo pra podermos nos entreter.
Em Austin, capital do Texas, que é obviamente enorme, eu realmente acho que poderíamos passar semanas visitando os pontos turísticos sem nunca entediar, mas eu nunca trocaria meu lar pra viver naquela metrópole.
Sem chance!
Jamais...
Mas eu não reclamaria se fossem por algumas semanas.
Não vou mentir, seria uma grande novidade pra mim que nunca saiu de Lockhart. Aqui somos poucos considerando as outras cidades próximas de nosso condado, Caldwell, mas temos um diferencial: somos uma comunidade bem unida e participativa.
Em muitos dos eventos daqui sempre temos grandes festivais, a maioria vinda das escolas e projetos da prefeitura, mas estamos constantemente alavancando nosso turismo local, valorizando nossas relíquias e revitalizando para podermos estuda-las – e protegê-las – com mais afinco.
Em dias festivos o hotel hospeda de quinhentas até mil pessoas em cada estação do ano. Não é muito, comparado a outros hotéis, mas somos os melhores se considerarmos os feedbacks de nossos clientes.
São poucas reclamações, quase nulas.
Infelizmente, nossa clientela sempre diminui no equinócio do outono, que é nossa baixa temporada. Mas, o que é ruim para nós, é bom para Thomas que decidiu esse período para convidar alguém para vir passar as férias conosco.
Eu adoraria conhecê-lo já que Thomas fez o maior mistério na ligação, nem nos disse o nome do rapaz, e só sabemos que é um cara porque Fernanda acabou soltando durante a chamada. Seja o que for minha curiosidade é tão grande que estou até criando teorias de que tipo de pessoa eles vão trazer.
Thomas é bastante introspectivo, mas não é tímido como eu, na verdade se tiver um bom assunto ele sabe papear até dizerem "chega". Já Fernanda é um completo oposto, então presumo que esse cara deve saber muito bem como conciliar os dois polos, senão os gêmeos não teriam o convidado para cá.
Aqui é quase um santuário para eles, toda vez que as férias da faculdade se aproximam eles antecipadamente já avisam que vão passar esse tempo com a gente. Meus pais amam esses dois, tanto é que os considera como filhos, o que me deixa sempre enciumada, mas não sinto inveja disso.
Amo tanto esses dois que às vezes sinto ciúmes também. Acredito que vai ser complicado conhecer novas pessoas assim, mas se esse cara é tão especial ao ponto dos gêmeos o convidarem então vou dar uma chance.
— Aggie? Caiu no box do chuveiro de novo? Por que está demorando tanto? — ouço mamãe falar, mas acho que ela já sabe a resposta.
Sim, eu caí.
— Não, imagina! Eu estou... Me depilando! — minto.
Saio apressadamente com a toalha enrolada no corpo, pego minhas roupas penduradas na parede e meu celular em cima da pia que tocava algumas músicas de Melanie Martinez.
— Acho bom mesmo, preciso de você mais tarde lá no quintal!
— Pode deixar! — suspiro, jogando meu cabelo molhado para trás.
Escuto a porta do quarto se fechar e abro a porta do banheiro no mesmo instante, reflito um pouco do porque ela viria pra cá, mas não encontro nada fora do lugar.
Em cima da cama vejo a muda de roupas que deixei para me vestir assim que saísse do banho: um lingerie bege com um absorvente noturno jogado de qualquer jeito por cima, uma calça listrada amarela, uma camiseta longa de gola branca e mangas até o pulso. Visto-me com a mesma pressa que coloquei a toalha, também pus um suéter azul marinho por cima e um tênis branco com meias arco-íris para acompanhar.
Volto ao banheiro e trato de molhar bem o couro cabeludo de novo, pois ele tinha secado consideravelmente. Sinto a frieza e a sensação de frescor inundar minha cabeça quente. É tão bom ter o cabelo lavado! Ainda mais quando ele é grande e mais parece um ninho de tão embaraçado.
A manhã começou bem agitada para um domingo, a vinda de meus primos sempre deixa o hotel animado, ainda mais quando se vem mais alguém de bônus. Papai vai à loucura!
Ele é responsável pela manutenção do hotel, desde os móveis rústicos – e velhos, diga-se de passagem – até os aparelhos mais modernos. Ele é praticamente um faz-tudo daqui, o que piora ainda mais quando se é perfeccionista. Lacey vive dizendo que isso ainda vai fazer mal para a saúde dele, por ser hipertenso, mas Gael é um homem teimoso que diz sempre que toma cuidado com os exageros.
O que é uma grande mentira, mas deixo isso para resolver depois.
Aproveito que estou no banheiro e escovo os dentes, enquanto sinto pingos caindo pela testa ate caírem na pia. Passo um creme para cabelos ondulados e saio do banheiro me sentindo nova, com uma disposição renovada... Se é que estava adormecida pra ser revivida.
Ligo o ventilador enquanto termino de me aprontar e espero que até colocar minhas bijuterias o meu cabelo já esteja consideravelmente seco.
Depois de uns minutos verifico se meu cabelo já secou e percebo que algumas mechas escuras ainda estão úmidas pelo banho, penteio pacientemente até que estejam bem definidas e desgrudo algumas madeixas da raiz para não dar a impressão de "cabelo lambido" por causa do creme.
Por fim, eu arrumo minha cama, abro as cortinas e estendo minha toalha no cabideiro. Minha animação é tanta que nem parece que eu me machuquei feio mais cedo. De novo.
Horas atrás, acordei assustada pelo barulho do despertador do celular e caí da cama com o lençol ainda enrolado nas pernas, por sorte minha queda humilhante não foi tão trágica porque havia caído em cima do meu tapete felpudo. Que ótimo... 2016 mal começou e eu já parecia derrotada pela minha própria cama!
Não, eu não ia perder a cabeça... Tinha que me desesperar com calma. Ainda mais esse ano que eu teria tempo de mostrar aos meus pais que sou capaz de administrar esse hotel!
Foi pra isso que me preparei tanto, foi pra isso que saí daquele vício...
Respiro fundo, estou determinada a cumprir esse objetivo. Um objetivo que tenho desde meus doze anos, quando meus pais deixaram claro que esse hotel é passado de pai para filho desde a época do meu bisavô. Ele deu ao meu avô quando sentiu que estava pronto para comandar, depois vovô escolheu minha mãe para liderar esse papel... Mas quando soube que Lacey queria se tornar a Lacey, ele refez o testamento e mandou para meu tio Miles esse legado.
Aquele velho desgraçado!
Depois que ele faleceu, e Lacey terminara seus procedimentos cirúrgicos, tio Miles deu para minha mãe todos os bens que eram, e são, direito dela por ser a mais velha.
Aquele velho deve estar se revirando no túmulo até hoje... Bem feito!
Tio Miles é atualmente um dos poucos empresários milionários em Austin, junto de sua atual ex-esposa Kalissa, a quem ele havia dobrado seus patrimônios assim que dividiram a empresa de cosméticos que eles haviam fundado.
E por isso, esse divórcio está se encaminhando tão complicado. Nenhum dos dois quer ceder os bens.
Quando fecho a porta do quarto sinto essas lembranças, esses pensamentos, todos eles... Sumirem. Sinto uma onda de ar frio pairar pelo corredor, ele me tira desses devaneios como um tapa na cara. Ajeito o colarinho da camiseta enquanto tranco a porta... É só mais um dia como outro qualquer Ágata, você consegue! Abotoo os botões da manga, respiro fundo.
Está na hora de descer.
No primeiro lance de escadas, meus olhos se voltam para a altura e uma forte vertigem me atinge, a altura não é tão alto quanto do quinto andar, mas é o suficiente para meus joelhos tremerem, minha vista turvar e minhas mãos suarem.
Não, agora não.
O chão parece tão distante... Como se ele estivesse longe mesmo para vinte degraus. Ele vai afunilando mais e mais... É difícil acompanhar, minhas mãos tremem também e mal consigo me segurar no corrimão. Respiro fundo, fecho os olhos e relembro quantas tarefas terei hoje, contando em ordem crescente. Quando fico nervosa eu conto tudo, como uma forma de lidar com essa acrofobia¹ sem que ninguém perceba: degraus, quadros, pratos, mesas, hóspedes... Tudo que possa ser contável.
Abro levemente os olhos e de esguelha vejo papai trazer no colo um telefone fixo quebrado. Ele me encara surpreso, não é comum me ver perambulando tão cedo pelo hotel, mas ele também sabe o porquê que estou fazendo isso. Ele esboça um sorriso torto e continua subindo.
— Bom dia, minha joia rara. — diz se aproximando de mim para beijar minha têmpora. — Parece que seu dia vai ser bem cheio.
Abro um largo sorriso.
— Lacey finalmente vai me testar?
— Não sei. — ele ergue os ombros largos. — Você sabe como é sua mãe, pode ser hoje ou amanhã. Melhor estar preparada.
Suspiro pesadamente. Não posso deixar que meu medo continue me dominando toda vez que desço aqui, ou em qualquer outra situação envolvendo altura, assim nunca vou conseguir administrar ou trabalhar em nenhum lugar!
— Tenho que ir, minha primeira tarefa é aparar a grama no quintal.
— Ah, eu lembro bem disso. Tome cuidado, o aparador às vezes estanca.
Assinto deslizando os pés pelos vinte degraus de pedra, a cada descida bem sucedida respiro fundo me parabenizando que estou indo bem. Um passo de cada vez, Ágata.
— E não se sobrecarregue. — ouço papai atrás de mim. Viro a cara só para vê-lo quase no topo da escadaria, se segurando no corrimão preto e olhando-me preocupado.
— Pode deixar, vou fazer meu melhor e continuarei de pé. — dou-lhe uma piscadela.
Ele ri me dando as costas. Eu percebi que, desde a ligação de Thomas, ele não sorria daquele jeito há meses. Pelo menos, não quando surge alguém de nossa família dizendo vir nos visitar. Gael dizia que "ter mais um homem na casa" o entusiasmava, e saber que viria "mais um no pacote" só aumentava sua euforia. E obviamente, mamãe e eu zombávamos de suas baboseiras.
Ele sempre aproveita alguma oportunidade para me alfinetar, já que sou eu que o ajudo e Gael acha que uma garota como eu devia me preocupar com coisas mais leves do que com a restauração de algum cômodo completamente deplorável.
Sei que ele só está preocupado comigo, ainda mais depois que estou lidando recentemente com minha recuperação e também porque sou um completo fracasso em socialização, mas tento tranquiliza-lo sobre isso e mantê-lo ciente de que nunca abandonaria minhas responsabilidades como a próxima dona do hotel. Não outra vez.
E o clima sempre encerrava assim: calmo e apaziguador.
— Bom dia... — digo ao entrar na cozinha, um lugar tão cheio quanto às feiras no início da semana. Mamãe estava lá, orientando os cozinheiros dos próximos pratos para serem encaminhados aos quartos, seus olhos azuis me encontram de imediato e sorriem me entusiasmando.
Será que é hoje?
— Bom dia, Ágata! — todos da cozinha me respondem em coro.
Vejo Lacey se aproximar de mim a passos largos sobre seu salto alto vermelho, driblando alguns camareiros que apareciam para pegar o cardápio do dia. A barulheira não está tão alto como de costume, mas acho que é porque são só seis horas da manhã.
— Bom dia, meu bebê. — sinto seus beijos pelas minhas bochechas e suas mãos em meu rosto enquanto demonstra exageradamente seu amor por mim.
Antes eu fugia dela, e desse grude que de repente ela começou a manifestar desde meus dezessete anos, mas já se passou três anos e ela permanece nisso, então só me conformei que ela se tornou mais carinhosa de um jeito bem constrangedor.
— Mãe, acho que já deu... — sussurro sentindo minhas orelhas arderem. Olho por cima de seus ombros, vendo que todos estão nos observando com risinhos discretos.
Suspiro, envergonhada. Sinto-me derrotada pela terceira vez essa manhã.
— Na próxima vez que você demorar no banheiro eu arrombo aquela porta. — sussurra em meu ouvido.
— Mãe!
— É brincadeira! — sorriu, bagunçando meu cabelo que me empenhei em arrumar.
Respiro fundo, me controlando para não demonstrar frustração pela sua mania de aproveitar a minha visível pequenez diante de seus quase dois metros de altura, sem contar que ela usa saltos altos também.
— Ágata, preciso de você hoje e dessa vez... — seus olhos me analisam atentamente, fazendo-me corrigir a postura. — Quero que mostre do que é capaz.
Sorrio, assentindo.
Sim, é hoje!
Sinto que posso conquistar essa vaga, cumprir meu objetivo... Não, meu sonho! Estava prestes a sair quando ouvimos passos desesperados vindos pra cá. Margareth Sundberg, nossa recepcionista, surge sem fôlego. Seus olhos cinzentos parecem vagos, além de ter o cabelo castanho completamente bagunçado pela correria.
Ela parece assustada.
— Meu Deus, o que houve com você?! — Lacey é a primeira a se aproximar, acudi-la e pergunta-la preocupada. — Parece que viu um fantasma.
Maggie nega, olhando para todos da cozinha que a encaram no mesmo estado que minha mãe. Malorie, a chefe, corre com um copo de água e lhe entrega surpresa pela sede descomunal da mulher.
— O que aconteceu garota? Por que está assim?!
— Eles... Eles chegaram... Me desculpe, dona Lacey!
— Eles quem? — indago.
Antes que ela pudesse me responder, Lacey não esperou nem mais um segundo, quando bati os olhos nela já tinha saído correndo para a entrada no hotel. Seus passos são determinados, confiantes e acima de tudo apressados. Garanto que se alguém não ouviu o barulho deles na cozinha, a recepção inteira irá.
Atrás dela, eu a acompanho... Ou tento acompanhar, já que minhas pernas não são tão longas quanto às dela. Mamãe crava seus pés perto da porta, seu cabelo castanho está desalinhado pela pressa, mas é incrível como ela ainda consegue ser refinada e elegante mesmo assim.
Espero que surja o pior dos seres, ou alguém tão horrível quanto o vovô... Mas quem adentra é Thomas como um furacão. Ele levava suas malas nas mãos junto de uma carranca tenebrosa, suas sobrancelhas grossas ficaram tão franzidas que mais pareciam duas batatas.
Papai reaparece com o mesmo telefone consertado. Ele tenta ser cordial, o saudando silenciosamente e recebendo um aceno de cabeça rápido em troca. Dou um passo em direção dele, mas mamãe me impede segurando meu braço.
Controle-se... Ela me dizia em silêncio.
Assinto, a contragosto, e respiro fundo.
Depois viera uma moça alta e bem vestida abrindo a porta e seguida por outro rapaz, um que é ainda mais alto que ela, segurando a maçaneta para minha prima. Fernanda parece possessa. Ela carregava sua necessaire no pulso enquanto o pobre garoto vinha com o estoque dela inteiro nos braços. Não pude deixar de rir, mas tento esconder pondo a mão na boca.
Ele levava tantas malas que me pergunto se vão mesmo passar só algumas semanas aqui, aquilo mais parece um estoque para um ano!
— Então, hum... Sejam bem-vindos? — balbucio franzindo a testa.
Fernanda entra logo depois do irmão, seguindo seu caminho calada. Ela cruzou nossas presenças como se não valessem de nada e elevou o seu nariz arrebitado até onde não pudéssemos vê-la. O que será que deu nela?
— Oi! Obrigado pela hospitalidade. — ouço de nosso convidado, sua mão coberta por luvas grossas e pretas ergue-se diante de mim buscando um cumprimento decente. — É um prazer enorme estarmos aqui, senhor e senhora Laurence, e... Nos desculpe por termos chegado assim de repente. Queríamos chegar mais tarde, mas... Tivemos uns imprevistos. — ele faz uma breve mensura.
Seus pequenos olhos se curvam numa meia lua quando sorriu, uma das bochechas rechonchudas contém uma covinha sutil no fundo, e seu nariz pequeno e achatado se encolhe ainda mais por causa da risada sem graça que ecoa pelo saguão.
Ele é adorável, como um anjinho retratado em nossos quadros renascentistas. Senti minhas pernas bambearem por uma fração de segundos incomum, até estranhei essa repentina reação. Pareciam macarrões cozidos de tão frágeis, mas foram suficientemente resistentes em não demonstrar na frente do convidado de olhos adoravelmente pequenos e escuros. Devo estar com fome, não comi nada desde que acordei. É, só pode ser isso.
Volto a olha-lo, ele sorria sem mostrar os dentes para meus pais e podia-se notar a espontaneidade nada discreta de mamãe conforme Gael jogava alguns olhares repreensivos a ela. O peso no olhar de Lacey tinha sumido, acho que era tudo um alarme falso.
— Oh, que amorzinho! Não se preocupe. Pode nos chamar pelos nomes, meu bem. — disse mamãe apertando suas bochechas.
Eu, literalmente, quis enterrar minha cara no quintal e espantar essa vergonha de mim, vou aproveitar que a grama está alta pra me esconder lá mesmo e esperar que ele tenha memória seletiva e se esqueça desse momento vergonhoso.
— Tudo bem. Tudo bem. Lacey, Gael e...
— Ágata. — digo o olhando de canto, percebo que ainda estou segurando sua mão e logo me desvencilho.
Ele tinha percebido, até porque não sou nada boa em esconder meus sentimentos, ou talvez ele fosse bondoso demais para não notar o meu desconforto com toda essa situação. De qualquer forma, ele foi bem discreto ao abafar meu descontentamento escancarado.
— Bem, é um prazer conhecê-los.
— O prazer é nosso. — digo o olhando do queixo para baixo. Não conseguia encara-lo diretamente, não depois desse pequeno momento constrangedor.
O rapaz assente se afastando do toque de Lacey delicadamente, como se cada vez que dissesse algo ela o soltaria mais rápido. Os seus fios caíam e deslizavam pelo rosto de porcelana conforme suas mãos se agitavam com o tom de voz nervoso.
Papai tentou tranquiliza-lo com conversas bobas e histórias supersticiosas de nossa pequena cidade, enquanto mamãe foi ao meu encontro se enroscando no meu ombro e sussurrando como se fosse um segredo que nem mesmo seu marido devesse ouvir. Daí eu já sabia que tinha algo errado vindo e me preparei respirando fundo pela milionésima vez.
— Eu gostei dele, não é fofo? Parece perfeito pra você, Aggie. — resmungou ao pé de meu ouvido com empolgação.
E mais uma vez, Lacey Rose Laurence ataca. Se não fosse pelos braços dela já estaria estatelada no chão, na melhor das hipóteses, na pior... Eu desmaiaria!
Lacey é popular por sua fama de casamenteira da região, não há pessoa viva aqui que não tenha sido cliente dela, ou não tenha conhecido as suas estratégias nada convencionais para juntar casais. Ela é o próprio cupido! E agora, minha mãe estava tentando descaradamente me juntar com esse desconhecido.
Respiro fundo... Mais uma vez.
— Primeiro que eu não percebi isso dona Lacey. Segundo, eu não tenho planos de me casar tão cedo. — resmungo, erguendo os dedos para enumerar. — Terceiro, só tenho vinte anos e pretendo cuidar do hotel... Namoros ou casamento não estão nesta lista, ainda. — ela revira seus olhos e se afasta a passos curtos até Gael.
Por cima dos ombros, meu pai percebe a frustração de sua esposa, mas se mantém sem comentar nada. O rapaz que tanto escutava a falação de meu pai já entregava resquícios de sono a cada tentativa de esconder os bocejos que, aliás, falhava miseravelmente em todas elas, mas tinha certa doçura na intenção.
Papai é mesmo um tagarela e se deixássemos ele passaria o dia inteiro conversando, uma gigantesca contraparte de mamãe que é uma mulher de poucas palavras.
— Pai, ele precisa subir. — cutuco suas costelas com o cotovelo levemente, ele se endireita notando que havia conversado demais e sorriu ao convidado.
— Desculpe, nem percebi. — riu encabulado.
— Ah... Tudo bem. — diz ele se afastando de nós. — Eu vou subir e pôr as coisas lá em cima. Fernanda também vai querê-las, então... — o garoto despediu-se batendo os pés nos degraus, acompanhado de mais dois funcionários que o ajudaram a levar o restante das bagagens.
Voltamos a saudá-lo enquanto o víamos subir de dois em dois até o andar superior, ele seguiu em silêncio a garota de volumosas madeixas crespas e o gêmeo caucasiano de cachos curtos, mas de repente esse momento tranquilo se acabou.
Uma mulher aparece na porta com um olhar abatido e com olheiras profundas, as maçãs do rosto chupadas e as pontas das orelhas totalmente vermelhas. Adeline Scott era mais linda nas fotos, com seus penteados exóticos e maquiagem pesada que valorizavam seus olhos azuis cinzentos, ela é a tutora dos irmãos desde que eles eram crianças.
Lacey correu para ajuda-la.
Na nossa infância, os gêmeos não iam frequentemente à escola e dependiam dela para os estudos, boas maneiras e acompanhamento de qualquer evento que necessitasse de um guardião. Diferente de mim que estudei a domiciliar integralmente todo esse tempo. Por consequência, nossas famílias tiveram vários embates sobre a nossa educação, segundo meus pais que me contaram depois que meus primos e eu nos separamos.
Quem paga o pato são sempre os filhos.
Por um bom tempo ficamos sem nos falar, apenas por mensagens, e nem isso eles permitiam quando tinham a chance... Era como se não quisessem nossa amizade.
Os olhos daquela mulher me chamaram atenção, agora são de um azul petróleo intenso que fuzilavam os meus pais por um longo tempo, quase infindável. Seu corpo magro pendeu para frente como se fosse despencar, mas por sorte mamãe agiu mais rápido e lhe amparou fortemente entre seus braços. Ela estava pálida, seus lábios carnudos pareciam tomar uma tonalidade esbranquiçada e saía algo viscoso de sua boca. Era quase líquido... E sua cor é igual dos olhos.
— Meu Deus, o que aconteceu com você?! — Lacey indagou completamente surpresa e preocupada.
Ela balbucia em seu ouvido palavras inaudíveis e de vez ou outra eu conseguia entendê-las, mas eram tão abstratas que acabavam por serem esquecidas rapidamente. Algo como "estava na hora", "as águas se agitaram novamente" ou "o combinado está quebrado". Seja o que for ela não parava de tremer, seu olhar amedrontado encarava meus pais com desespero, até que ela cravou seus olhos em mim.
Senti medo e uma onda de angústia me engoliu quando ela aponta seu indicador e range os dentes em minha direção. Parecia estar possuída!
Gael me olha inquieto, pede que subisse no outro andar a fim de que averiguasse como estavam os nossos novos hóspedes, e volta sua atenção para a mulher. Tentei contradizer, mas quando papai está sério é porque o assunto demanda medidas mais drásticas, e eu estaria só distraindo os dois.
Cruzo os braços e me aproximo da mulher, mas ela reage como um animal acuado e paro no mesmo instante recebendo um olhar repreensivo de Lacey. Eu realmente preciso sair daqui.
Adeline constantemente agia como se eu fosse uma estranha na família, alguém que não devia estar morando com os Laurence, mas agora... Eu não consigo reconhece-la.
— Conto tudo quando acabar. — sussurra Gael, mas o olhar de sua esposa era o oposto. O que me intrigou ainda mais, porque nós não temos segredos.
Pelo menos não um que durasse tanto.
Faço o que manda, mesmo que eu queira com todas as forças ficar e investigar o ocorrido. Subo as escadas olhando para cima, tentando me concentrar no ranger estridente da escada que me alerta de um fato inegável: agora temos hóspedes, três hóspedes especiais que necessitam de cuidados especiais... E isso significa mais trabalho pra mim.
Cerro os punhos e caminho mais pesadamente até o outro andar, onde suavizo as pisadas ao chegar numa parte mais plana. Havia me esquecido que temos alguns outros hóspedes, e a maioria idosa, então deixo minha raiva para extravasar depois. Mas se eles pensam que vão me usar como babá estão muito enganados! Eles não vão estragar a minha manhã de domingo, hoje não.
— Nanda! — chamo batendo o dorso da mão na porta. — Sou eu, a Ágata, me deixe entrar, por favor!
Um minuto se passa e nada dela aparecer ou abrir de supetão como seu irmão mais velho fez, com a pouca paciência que ainda me resta vou até o quarto dos meninos de modo que pudesse descobrir o porquê de Thomas ter chegado tão aborrecido daquele jeito. Dois minutos, três, quatro. Já tinha se passado mais de dez minutos e nada de alguma alma penada dar sua graça na soleira.
Que saco!
— Ótimo... — suspiro esfregando as mãos pelo meu cabelo.
Contenho a vontade de bater novamente. Meu orgulho gritava e não admitia tentar mais uma vez. Eles que me procurem agora! Decido voltar para meu quarto, vou me focar em descobrir o que aconteceu com a senhorita Scott.
A princípio nunca foi minha intenção me mudar pra esse andar, embora seja o menor dos outros quatro, mas depois que Lacey me contou sobre a tradição do hotel eu resolvi tentar mudar e enfrentar meus medos. Então após meus dezoito anos, papai e eu trouxemos meus pertences para o primeiro andar e desde esse dia eu tenho me esforçado a ultrapassar essa fobia de altura, que por alguma razão surgiu depois dos meus dez anos.
Tranco a porta, afasto-me desses últimos segundos de frustração e curiosidade que em tão pouco tempo meus pais me presentearam de aniversário... E respiro fundo. Respirar parece tão simples, tão banalizado, mas se estivermos desesperados pode se tornar um empecilho letal.
Jogo meus tênis em qualquer canto do quarto e pulo na cama, afundando meu corpo no colchão, e ouso dizer que os meros instantes de distração me fizeram bem e me ajudaram a esquecer do ocorrido de antes.
Até...
— Ei! Ágata! Ei, aqui!
... Agora.
A voz de Fernanda é tão reconhecível quanto o canto de um bem-te-vi. Seus dedos enluvados batiam incansavelmente no vidro da janela e não paro de pensar na altura enlouquecedora que deve ter passeado até chegar aqui. Ela gesticula ao apontar exageradamente entre o trinco da janela ao vidro fechado e só então compreendo o que quis dizer em suas gigantescas articulações da boca: Abra a janela.
— Ufa... Pensei que nunca abriria. Vem gente, ela já entrou! — Nanda chama ajeitando seus cachos por conta da ventania, os meninos vieram como profissionais de parkour e se sentaram nos puff redondos ao fecharem a janela.
— Okay... — digo lentamente. — O que está acontecendo aqui?!
Thomas é o primeiro a responder, interrompendo os outros dois que até abriram a boca. Ele sempre teve essa mania, nem me surpreendo.
— Você sabe tão bem quanto eu como é a relação nada saudável de nossos pais. Adeline Scott também sabe e teve ordens restritas de não nos deixar parar até que chegássemos aqui... Você sabe, sempre temos que estar sob o controle deles, mas ela desobedeceu por nossa culpa e...
— Sua culpa, né? — Fernanda o corrige se sentando na cama, Thomas revira os olhos esverdeados. — Você tinha que inventar beber refrigerante no caminho mesmo sabendo que seu estômago é frágil e o banheiro público foi à única solução! E adivinhem, quase não encontramos um.
— A questão não é essa pessoal. — o rapaz misterioso interviu a tempo. Jurava ter visto punhos cerrados vindo dos dois ao trocarem longos olhares. — Ágata, o que eles querem dizer é que vimos próximo daqui um jardim com diversas flores à frente de uma caverna, se puder ir com a gente na sua caminhonete e pegarmos algumas, isso pode diminuir a culpa do... — Thomas o encara bem chateado e logo o loiro põe-se a corrigir com seu nervosismo estranho nas mãos. — Nossa culpa. — sorriu largamente, podendo mostrar melhor suas covinhas salientes agora em ambas as bochechas.
Custo acreditar que estou nutrindo certos sentimentos por esse estranho, afinal nos vimos agora e eu nem o conheço direito! Talvez fosse só a beleza ou seu jeitinho doce de falar. É, talvez seja isso mesmo. Mas tenho que admitir que, de certa maneira, ele atrai o meus sentidos, mas isso não significa que deva ser algo profundo. Deve ser apenas uma atração momentânea. Só isso...
— Ninguém merece! — Fernanda bufa injuriada se afastando de nós. Suas pernas malhadas se realçam pelo short vermelho e ficam mais torneadas quando ela atravessa uma delas pela janela, sua pele negra brilha pelo sol matutino. — Vamos enquanto é cedo, e você... — me apontou. — Não demora e seja discreta!
Ela corre ligeira e se atrepa nas escadas de emergência com agilidade. Logo atrás foram os rapazes. Thomas sai afobado, puxando seu longo casaco bege por entre as luvas azuis, enquanto o loiro me olha por cima dos ombros, me convidando a descer com eles, mas não me atrevo a seguir nessa loucura.
Um passo de cada vez, Ágata! Um passo de cada vez.
— Pode ir, vou por outro caminho. — segredei negando seu pedido.
Ele me dá as costas e desliza habilmente. Aproximo-me da janela devagar para me certificar de que ele está bem e observo a altura gritante que me faz afastar em um pulo.
Até entendo essa ideia de correr por cima do perigo, eles queriam viver uma aventura que o hotel, ou a capital em si não proporcionava. Eu, mais do que ninguém, sei realmente como é isso. Mas... Não é tão simples assim na vida real. Fazer coisas perigosas como é mostrado nos filmes são um de meus diversos sonhos, mas a realidade é outra e inteiramente sem graça, e saber que posso estar perdendo tudo isso por um pavor de altitudes me frustra ainda mais.
Olho mais uma vez para meu quarto, procurando algum motivo para continuar procrastinando ao invés de ajuda-los, mas não encontro nada além da minha consciência exigindo que descesse. Suspiro, derrotada outra vez.
Desço sem que eles me notassem, ainda mais porque eu sabia quais degraus podia pisar sem me denunciar. A recepcionista me olha surpresa, mas ela releva minha saída já que compartilha da mesma preocupação que meus pais. Aliás, não encontro nenhum dos dois aqui, provavelmente eles devem ter levado a senhorita Scott para outro cômodo junto de um médico para consulta-la. Aproveito dessa distração para sair correndo pelos fundos.
— Olha lá Aggie, estou te acobertando hoje, mas se cuida. — ela avisa arqueando uma das sobrancelhas.
— Pode deixar, Maggie. — sorrio lhe mandando um beijo.
Margareth é uma excelente funcionária, e uma grande amiga, me odiaria profundamente se meus pais a demitissem por minha culpa. Ainda mais por ela não ter tido tanta sorte em encontrar emprego por causa de uma ideia estúpida de que pessoas com Síndrome de Down não seja capazes de trabalhar. Estou cercada de mulheres exemplares, não posso me dar o luxo de ficar pra trás!
Passo pela porta sem batê-la tão forte e saio correndo mais apressada até minha caminhonete lá fora. Ela tem uma carroceria alta e uma lataria de cor alaranjada que é minha maior conquista desde que comprei ano passado, as vendas do festival de primavera passado foram um sucesso.
A maior parte do meu dia eu fico cuidando dela, limpando e comprando novas peças, mas há sempre alguma coisa que a deixa com aspecto de velha. Eu nunca soube o porquê, mas não reclamo. Dá uma visão vintage nela, eu gosto.
— Vocês tem certeza de que é segu... — fico incrédula com o que vejo.
Encontro o trio perto da minha Tiffany e encostado na lataria nova, na verdade estavam mais esparramados do que encostados, menos Fernanda que não queria manchar seu casaco rosa claro. Eu quase faleço.
— Eu vou dar três segundos pra saírem de cima da Tiffany, ou então puxo vocês dois pelos cabelos.
— Espera, esse carro tem nome? — Thomas comenta rindo.
— Um...
Eles descem imediatamente e limpam as calças pela sujeira do capô, mas é mais fácil eles terem sujado minha caminhonete do que o contrário.
— Ágata, isso é ser discreto? — Fernanda rebate olhando-me dos pés a cabeça.
Devido à estação fria troquei de roupa, não queria sair pela porta da frente sendo uma suspeita e estragar o passeio, então vesti meu cardigã vermelho escarlate de tricô, permaneci com minha camiseta branca e a calça listrada, pus também um cachecol marrom junto de um gorro turquesa para me proteger das ventanias, peguei luvas amarelas e um par de botas pretas. Não sei por que da ironia, essa é minha roupa normal e discreta!
— Certeza, certeza mesmo, não. Mas as chances da senhorita Scott desmaiar outra vez é mais alto do que formos pegos. — diz Thomas, nos interrompendo, subindo na traseira vazia do carro.
— Então, o que estamos esperando? — indago esboçando um sorriso encorajador. Fernanda retribui, mesmo revirando os olhos escuros, abrindo a porta e depois o garoto que se sentou ao seu lado.
Entro e encaixo a chave. Minhas mãos tremiam no volante, embora a distância entre nós seja só de um corpo, meu coração faltava dar piruetas acrobáticas. Meus pensamentos iam de meus primos, e da situação complicada de Adeline com um médico a consultando, até o rapaz que ansiava pela ressuscitação do veículo.
E se ele visse que sou péssima na estrada? Capaz dele nunca mais querer entrar comigo dirigindo... Não, para com isso, eu sou ótima! Você praticou bastante, Ágata. Tenha calma.
Ligo o motor, saio do estacionamento e dirijo pela rua asfaltada. A pista é lisa, satisfatória para dirigir calmamente, mas eu ainda precisava saber mais dessa caverna que eles haviam encontrado.
— Onde vocês disseram que tinham visto mesmo? — digo fingindo a mim mesma de que é só pela curiosidade e não na desconfortável posição em que estávamos. — Vai que eu sei de alguns atalhos.
— É na caverna Underwood², sabe onde fica? — o garoto responde animado. — Eu soube que ela é uma relíquia da cidade e bastante misteriosa, há histórias bem macabras sobre o que tem dentro dela, teorias e conspirações que os próprios turistas ficam fantasiando, mas tem medo de atravessar e serem presos. — seu cabelo amarelado balança pelo vento da janela.
— Ô gênio, ela mora aqui! — rebateu Fernanda arqueando as sobrancelhas delineadas, eu sorrio sem graça vendo que o outro já estava vermelho, só que de raiva.
— Eu sei que ela mora aqui, mas não quer dizer que saiba de tudo... Sem ofensas. — disse, movendo seus olhos escuros de mim pra ela e vice-versa.
— Não ofendeu. — sussurro.
— Eu também sei que ela pode não saber de tudo, espertalhão. Mas o lugar é tão perto do hotel que seria impossível da tapada aqui não saber onde fica! Sem ofensas. — retorquiu totalmente insatisfeita com o comentário dele.
— Imagina se me ofendesse... — digo no automático, ambos discutiam já nem notando minha presença no lado deles, mas graças a Thomas consegui me distrair daquela confusão.
— Aggie, você sabe de algum atalho até Underwood? Estou com pressa e nossa tutora não vai ficar por muito tempo no hotel. — disse abaixando o rosto até a minha janela quebrada.
Não sei se é porque eles chegaram rápidos ou se a senhorita Scott conseguiu esconder bem, mas acho que nenhum deles sabe da condição crítica que a ela apareceu hoje mais cedo. Adeline é conhecida por ter uma imunidade baixa, constantemente doente, mas controlada, sabendo como conciliar sua saúde e seu trabalho, só que dessa vez é diferente... E parece que eles não viram isso, ou não sabem.
— Claro, Thom. — sorrio dando-lhe uma piscadela, ele corresponde voltando a sua postura original. Tranquilo, como se fôssemos fazer compras. — Se segurem pessoal! — informo pisando fundo no acelerador.
— Se segurar pra que... AI MEU DEUS! — ambos gritaram ao sentirem o impacto dos corpos serem puxados ao estofado preto, os dois procuravam pelos cintos desesperadamente enquanto eu conseguia ouvir as risadas altas de Thomas lá atrás.
Hoje o dia promete!
***
Os fios platinados de seu cabelo estavam ensopados de suor. O rapaz parecia ter corrido uma maratona sem parar e Fernanda também não estava diferente, seu cabelo preto grudava na testa. Ambos imitavam àqueles zumbis de The Walking Dead, só que sem o sangue e a podridão do corpo em decomposição.
É hilário os sons e os resmungos, realmente estavam fazendo jus.
— Enfim, chegamos! — saio do veículo a passos largos pra esticar as pernas, os outros vieram atrás com o andar mais hesitante e curto, até Thomas parecia estar avoado.
Não pude deixar de rir daquela cena.
— Eu pensei que iria fazer xixi na calça! — Nanda grita indignada, ela me pega pelo antebraço toda mal-humorada e me puxa para longe dos meninos.
Fernanda conseguia ser bem mais carrancuda do que o irmão.
— E eu que ia desmaiar! — ouço o loiro resmungar, pondo as mãos na barriga.
Não demorou nem um minuto e ele despejava toda a comida da viagem no gramado, Thomas fez careta de nojo afagando as costas do amigo e Nanda imita sua expressão desviando o olhar. Agora pronto... Se antes eu tinha receio já não tenho mais, agora tenho a certeza que ele nunca vai querer entrar no carro comigo. Parabéns Ágata, meus parabéns!
— Pra onde você tá me levando sua doida? Precisamos ir lá ajuda-lo. Também preciso pedir desculpas... — tento freá-la.
Não só pela velocidade, que foi exorbitante eu admito, mas pelas vezes em que desviava a direção do carro na rua. Não era proposital, até mesmo Thomas que estava se divertindo já parecia nervoso por quase cair. Não, não foi nada intencional...
— Aggie? Está me ouvindo? — escuto Nanda me chamar enquanto me cutuca. — Preciso te perguntar uma coisa.
— Agora não, o amigo de vocês não está bem. É melhor voltarmos.
— Espera. — ela pede segurando meu braço firmemente, até estranho sua ação. — Aggie, só... Só me responde uma coisa. E espero que me responda com sinceridade. — ficamos nos encarando por um tempo indeterminado, mas assenti mesmo sem saber ao certo do que se tratava seu receio.
— Okay...
— Você... Não está gostando dele, né? — pergunta apontando para o adoentado vomitando suas tripas. — Por favor, diga que não!
Eu travei. Não sabia o porquê, mas travei. E isso foi o bastante para ela aceitar as suas suposições, além de testemunhar meu rosto esquentar absurdamente. Mas, antes que eu pudesse organizar meus pensamentos, começo a rir fazendo não só ela, como eu também estranhar essa inusitada reação.
Não faço a mínima ideia de ter feito isso.
— Tá brincando? Você e a mamãe estão de complô, é isso? Eu mal o conheço, uma possível atração seria a ideia mais correta, mas gostar? — solto outra risada, dessa vez desdenhosa. — Não, nem pensar.
Vejo Fernanda suspirar pesadamente, ela toca meu ombro e o aperta, parecia querer me dar algum conselho, mas se calou. Ela me escondia algo, eu podia sentir isso. Crispo os olhos e me aproximo dela lentamente, sem desviar meu olhar inquisitivo. Fernanda pigarreia descendo seus olhos até sua mão em meu antebraço, seu aperto afrouxa.
— Vem, vamos ajudá-lo. — falou segurando meu pulso e o puxando.
Shhhh...
Paramos. Um assobio nos chama atenção, e o mais impressionante é que vinha de dentro da caverna. Nanda semicerra os olhos e pôs a mão rente à testa, a fim de descobrir quem fazia aquilo. Thomas veio depois com o rapaz de feição esverdeada no ombro.
— O que foi? — Thomas indaga nos acompanhando com algumas flores na mão.
— Ali dentro. — aponto. — Nós ouvimos um assobio vindo dali. Só que não vemos ninguém. — digo a tempo de ver a frustração de Nanda confirmando minha afirmação.
Shhhh...
O som retorna, carregado de uma ventania quente que estapeia nossos rostos, Thomas e seu amigo não saíram imunes por estarem ao nosso lado. Meu primo põe sua mão no rosto, impedindo que o vento arremessasse algo em seus olhos, já o outro rapaz não faz nada além de sentir aquela forte corrente de ar em seu rosto.
Acorde...
Quando o vento cessa, voltamos a encarar o breu interior daquela caverna, mas nada realmente surge como emissor daquele assobio. Tenho a impressão de ter ouvido um murmúrio de alguém bem perto de mim, mas deve ser só imaginação minha.
Ainda assim... Aquilo me estremece. Passo as mãos pelos braços e os aqueço esfregando rapidamente. Não importa quantas vezes faça isso, essa sensação de frieza não some desde que saímos do carro, mas não sei se vem do temporal ou da própria caverna... De qualquer jeito eu odeio essa sensação.
— Então, vamos entrar? Pode ser que lá dentro a gente encontre quem faz isso. — sugeriu o rapaz, ele sacode a cabeça e se afasta de meu primo devagar. Nós hesitamos. — Não deve ser nada, só o barulho do vento, mas o que a gente tem a perder?
— Não acho prudente, viemos buscar as flores e voltar. A senhorita Scott não vai ficar por muito tempo e nossa missão era apenas esta. — rebato observando as feições de todos ao meu redor.
Thomas assente dando meia volta, assim como Fernanda, mas o outro não. Sua áurea angelical, sua feição esverdeada e o sentimento de enjoo parecem ter sumido num estalar de dedos... Ou em uma simples ventania.
— Não me vem dizer que está com medo. — ele caçoa. Meu primo o repreende pedindo que parasse, mas ele não lhe dá ouvidos.
Ele até parece outra pessoa. Seu olhar gentil está agora carregado de desdém, seu ar de humildade está tão inibido que uma superioridade inesperada ocupou esse lugar. Sua postura mudou, sua forma de falar e agir também. Parecia que usava uma máscara, atuava um papel... É surreal.
Observo abismada como a mudança drástica não estranhou os gêmeos. Fernanda me encara sem jeito, acho que era isso que tentou me aconselhar antes, mas por que não o fez?
— Cócócó!
Respira Ágata, respira fundo. Sim, ele está carcarejando pra você como uma galinha, mas você não vai se rebaixar a esse nível. Apenas, respire...
— Vamos dar uma olhada rápida, pode ser que alguém tenha entrado e está em perigo. De qualquer forma, temos uma boa desculpa caso alguém nos pegue. — digo a meus primos que logo suspiram mais aliviados, mas o rapaz solta uma curta risada me fazendo encara-lo na hora. — E você, caso não tenha percebido ainda, não está no direito de me caçoar já que eu sou a sua guia. Então, pra resumir... — aproximo-me dele até que minha boca esteja perto de seu ouvido. — Mais uma palavra e você terá que voltar pela polícia.
Afasto-me devagar, fitando seu olhar surpreso diante de minha ameaça nada sutil. Uma fagulha de adrenalina me atinge assim que me afasto de vez dele, e depois dela uma onda de vergonha e incredulidade. Eu nunca disse algo assim ou tinha a intenção de fazer isso com alguém, por mais asqueroso que seja, mas a sensação de poder fazê-lo é tão... Tentadora.
O que está acontecendo comigo?
Mas essa minha surpresa é esquecida quando o encontro sorrindo pra mim, de um jeito sarcástico que me faz ferver de raiva. Seja o que tiver acontecido com ele antes eu já o detesto profundamente agora. Ele parecia ter voltado para o fundamental, talvez mais infantil do que uma criança de verdade faria. Fico me perguntando o que os gêmeos viram nele pra ser tão especial assim.
Decido ignora-lo. Puxo uma lanterninha do bolso do meu cardigã e acendo, o trio me segue hesitante com a respiração acelerada me tocando no pescoço, mas não me deixaram na mão.
Shhhh...
O assobio ecoou mais alto, Thomas tremeu forte e levou junto sua irmã àquela tremedeira. O rapaz me acompanhou deixando os irmãos atrás com seus medos, seu braço direito enlaça meu pescoço e seu hálito de vômito quase me fez socá-lo na cara.
O que aconteceu com aquele cara educado que vi lá no hotel?
— Olha, me desculpa por ter sido idiota, tá? Tem razão, você é minha guia e, além disso, é prima dos meus amigos, então desculpa mesmo. — diz colando sua cabeça na minha. Juro que minha vontade era de cotovelar suas costelas, mas me contenho e aceito suas desculpas com um longo suspiro. — Ah, e se estiver com medo não tem problema. Eu salvo você, não se preocupa. — ele sorriu mais uma vez, cutucando minha bochecha com um de seus dedos enluvados.
Por reflexo quase mordo o tecido, fazendo-o se afastar assustado.
— Você? Me salvar? Não me faça rir! — digo irônica. — Agradeço sua gentileza de me ajudar, mas eu dispenso. Consigo me cuidar sozinha.
— Aham, sei... — murmura nada convencido. — Depois não me venha chorando como uma criancinha que viu o bicho-papão... — e continuou murmurando, se aproximando do meu ouvido como fiz antes e assopra. Sem pensar duas vezes o empurro forte e quase o faço cair no chão, infelizmente ele se mantém em pé.
Bufo, fechando os olhos e conto até dez. Eu só preciso continuar andando, só preciso verificar e depois vou sair sem olhar pra trás!
Nossa caminhada durou mais alguns minutos, iluminados apenas pelos celulares dos irmãos e minha pequena lanterna, mas de repente, antes que pudéssemos nos proteger, uma revoada de morcegos nos impediram de andar com seus sons estridentes e asas pretas em nossos rostos.
Thomas e Fernanda correram desesperados para se esconder enquanto minhas mãos cobriam o meu rosto parcialmente e eu me abaixava para que os morcegos pudessem sair sem que me arranhassem tanto, mas pude notar claramente... Talvez sendo a única a notar aquilo... Uma figura escandalosa agitar os animais que já estão histéricos.
O rapaz tentava espantá-los sendo que o único medroso ali era ele mesmo, os morcegos pareciam ignora-lo e querer sair da caverna o quanto antes... O que é estranho já que é ainda de manhã. Aqueles animais pareciam ter mais medo daqui do que lá fora.
Que esquisito.
— Estão todos bem? — Thomas indaga se aproximando de nós depois que a barulheira acabou. A concordância é unânime, embora o seu amigo não esteja com tanta certeza assim.
Ao meu lado, vejo Fernanda arregalar os olhos castanhos para mim. Movida pela curiosidade ergo a mão até meu cabelo e noto que está uma bagunça, cheio de nó e com algumas mechas arrebitadas.
— Aggie, seu cabelo está... Nossa, me deixa ajeitar. — sinto suas mãos passearem pelos fios ondulados, longos e completamente arruinados do meu cabelo. — O que a dona Lacey diria se te visse assim?
— Que mais pareço uma vassoura, já que estou quase igual um cabo. — sorrio sozinha com minha piada sem graça, Fernanda desvia o olhar e continua concentrada em me deixar o mais apresentável possível.
Acho que ela tem medo de que mamãe discuta com ela... Assim como em todas às vezes que saímos juntas. É, ela tem um grande motivo de ter medo.
— Obrigada. — sussurro.
Ela assente esboçando um sorriso torto.
— Que bom que estamos bem, agora vamos voltar. — Thomas diz mais autoritário, sabendo que seu amigo certamente iria insistir nisso... E eu também.
— Então, quem está com medo agora? — sussurro no ouvido do idiota quando a confusão cessou totalmente.
Ele me olha mal-humorado, talvez imaginasse que fosse me assustar com aquela carranca de poucos amigos, mas minha primeira reação – para sua infelicidade – foi de rir até que meus olhos se enchessem de lágrimas. Era engraçado vê-lo irritado, mais ainda por achar que isso me intimidaria.
— Vou te mostrar o medroso. — resmungou apressando o passo entre nós.
Minhas gargalhadas foram diminuindo assim que vi onde ele estava indo, para dentro da caverna.
— Ei, eu sei que fui insensível, mas não é necessário toda essa fragilidade masculina! — retruco bem-humorada. O rapaz não hesita, ele continua andando na direção contrária da saída. Suspiro me sentindo culpada por ter jogado lenha na fogueira. — Vamos lá, aí dentro você não vai enxergar nada!
Tento acompanhar sua corrida, mas ele acelera o passo assim que percebe que estou lhe seguindo. Meus primos notam nossa ausência e vinham depois com seus passos receosos e amedrontados, mas ainda assim largos. Eles temiam a escuridão, ainda mais dentro de uma caverna isolada, um lugar que se deve mesmo temer, mas por que não sinto isso? É como se ela estivesse me chamando, de alguma forma... Era convidativo.
— Okay, eu já entendi, será que dá pra me esperar?! — digo ao notar que o loiro se afastava cada vez mais de mim. — Ei, vocês não vem? — olho para trás onde os gêmeos estão.
— Não... — falaram desesperados.
— Lembra por que viemos? — falou Nanda arqueando uma das sobrancelhas. — Devíamos só ter pegado as flores e pronto! A real intenção era apenas esta. Ter entrado aqui foi uma péssima ideia.
Droga... Ela tem razão, é claro que tem... Eu só preciso alcança-lo, ele não pode ir tão longe assim, mal consegue enxergar um palmo sem minha lanterna... Espera, cadê ela?
Tateio desesperada pela minha roupa inteira, se ela tiver caído eu realmente a perdi de vez. Meu desespero é tanto que custo escutar o pigarreio daquele idiota. Ergo a vista apenas pra saber o que raios ele queria, mas quando o vejo atentamente percebo que está ostentando minha lanterna como se fosse um grande feito.
Decido que vou pega-la nem que seja a última coisa que eu faça!
Corro em sua direção o máximo que posso até chegar num ponto em que não via mais os feixes luminosos do início, e também os irmãos que me seguiam, mas o cara que eu perseguia parecia ter evaporado do nada.
Fernanda é a primeira que encontro, ela se abraça afugentando o frio do corpo, o que é curioso já que ela dificilmente sente isso, e Thomas fazia o mesmo, mas em vão. Minhas bochechas começaram a esquentar como fogo. Lógico, já que estamos longe da claridade e a umidez daqui é maior, o que afeta bastante minha pele que é frágil a fortes temperaturas.
— O que foi Sininho? Com frio? — ironiza uma voz conhecida, suas mãos tocam o meu rosto e por um momento quis abraçá-lo ao vê-lo são e salvo, mas pelo susto lhe dou em troca um soco forte em seu pequeno peitoral.
Seu corpo ectomorfo³ é perceptível de longe, ainda mais com seu cacharrel branco de mangas longas e gola alta. O barulho é ecoado grandemente em torno de nós, assustando alguns animaizinhos.
Ele arfa entre seus resmungos tombando no chão desengonçadamente, seu cabelo caía molhado para o lado e as bochechas avermelhadas me chamaram atenção. Pus rapidamente minha mão em sua testa, ele revidou dando-me um tapa no dorso, mas fui mais teimosa e o toquei novamente. Febre.
Espera... Então foi isso?
Mas que droga! Como não percebi isso antes?
Por isso que ele não estava falando coisa com coisa, já estava começando a delirar... Mas eu ainda queria saber o motivo de Nanda não ter me contado nada antes, porque algo escondido ela tem... Ah se tem! Só que estava escondendo de mim por alguma razão, mas vou descobrir nem que seja na marra!
— O que foi? Ele está bem? — Thomas nos avistou e correu para socorrê-lo, ele se agacha e o levanta com dificuldade.
— Estou bem... Relaxa. — diz baixinho.
— Não, ele está com uma febre muito alta. Devemos voltar e rezar para que sua tutora não tenha ido embora, porque o médico que está a consultando pode nos ajudar. — esclareço apertando o cardigã sobre meu corpo gelado.
— Febre? Eu nunca fico com febre... E o que a senhorita Scott tem a ver? Fala pra ela, Thom... Isso é... Só pode ser alguma piada, né? — reclamou o rapaz franzido o cenho.
Thomas o aperta contra si sussurrando em seu ouvido algo que o faz ajustar sua postura, e mais uma vez a curiosidade me corrói por dentro, porém, não tínhamos tempo para discutir nem mais um minuto sobre isso. Pelo menos, não ainda. Nós precisamos sair antes que comece a escurecer e não possamos mais voltar sozinhos.
— Desculpa... Desculpa mesmo, mas é que... É só que ela me tira do sério. — ele falou aos irmãos como se apagasse minha existência ao lado deles.
Solto uma risada incrédula e o encaro surpresa.
— Oi? Eu que te tiro do sério?
— É óbvio que sim... Não é óbvio? — diz levantando as sobrancelhas escuras, os gêmeos negam sacudindo a cabeça. Continuo lhe encarando, sondando suas intenções, e encurto nossa aproximação o fazendo suspirar com dificuldade. — Sabe qual é o seu problema, Sininho?
— Não, me diga o meu problema. — desdenho, cruzando os braços.
— O seu problema... — resmunga sonolento. De forma exagerada e debilitada ele se afasta de Thomas e caminha na minha direção, apontando o dedo em meu rosto. — É que não sabe a hora de parar... Não sabe quando precisa ficar quietinha e fazer... O que sente. — seu rosto fica tão próximo de mim que consigo sentir seu hálito podre, eu poderia ter repetido a dose e o empurrado novamente, mas não imaginava que sua insinuação fosse me pegar tão desprevenida.
Thomas bufa após me ver sem reação, revira os olhos. Como se aquilo fosse algo comum entre ambos, eu não podia estar mais corada do que agora. Já Fernanda esconde o rosto com as duas mãos, talvez me respondendo do porque de ter me escondido algum segredo. Porcaria de curiosidade.
E foi assim que minha manhã de domingo havia sido arruinada por uma ideia maluca de pegar flores e se aventurar numa caverna horripilante da cidade, ainda mais com uma companhia tão imprevisível, tão estupidamente imprevisível, quanto esses três. Mas, eu admito, seria muito melhor se terminasse somente com esse comentário completamente constrangedor desse idiota convencido... Sim, muito melhor.
— Então você me acha um idiota convencido? — ele ri olhando-me com uma falsa vergonha na cara, aquilo estava sendo um pesadelo sem fim.
Fecho os olhos fortemente ao perceber que tinha dito em voz alta tudo do que havia pensado antes. Agora só me faltava essa mesmo! O garoto sorriu abertamente, como se tivessem lhe dito uma piada, na verdade eu era a piada, e se aproximou de mim devagar. Thomas tenta impedi-lo, segurando seus ombros, mas o rapaz tira suas mãos de cima dele.
— Se você vier com gracinha de novo eu juro que te derrubo. — ameaço cruzando os braços. — E dessa vez de propósito.
Thomas intervém, tentando mostrar que seu amigo estava realmente arrependido, e nada racional, e Fernanda estava atrás observando como quem não quer nada, mas com sua atenção centralizada em qualquer investida do loiro tingido. Ela também é desconfiada como eu, ou talvez mais.
— Acho que começamos com o pé esquerdo... Podemos recomeçar? — ele introduz me olhando enquanto Thomas, dessa vez, enlaça seu braço ao redor do pescoço dele.
Vejo-o esboçar uma falsa feição magoada e exibir um choro de bebê. Tento manter a calma, talvez até orando eu possa me manter longe da tentação de derruba-lo novamente, mas nada me vem à mente pra apaziguar essa ideia... A não ser os próprios irmãos que me olham esperançosos, sobretudo, Thomas que não tirava os olhos dele.
No entanto, minhas preces não obtiveram tanto êxito assim, não como eu queria, já que o idiota teve a audácia de se enroscar em mim como uma erva daninha. Ele continuou a me importunar até que deixei escapar uma risada, o rapaz curvou-se em arco por conta de nossa gritante diferença de altura e se arriscou a perguntar do que tanto ria.
— Qual é a graça?
— Nada... — digo pondo a mão sobre a boca, mas continuo rindo.
Fernanda e Thomas nos encaram confusos.
— Ande logo, eu também quero rir... Não seja tão egoísta! — reclamou manhoso.
— Argh, está bem! — exclamei cessando a risada, gradativamente, em seguida, aponto para o montinho de fezes que os morcegos deixaram para trás antes de partirem. — Eles não são fofos? Te deram até boas-vindas.
Imediatamente ele começa a urrar de nojo, e se desprende de mim, limpando os calçados brancos e esfregando os mesmos numa das rochas da própria caverna. Gargalhei sem parar chamando a atenção dos outros dois. Os irmãos se aproximaram curiosos.
— O que houve... Ai, meu Deus! — falou Fernanda rindo com as mãos sobre a boca.
— Muito engraçadinha, Sininho, nossa, estou morrendo de rir... — ele responde semicerrando os olhos em seriedade até que eles virassem dois risquinhos pretos. Até Thomas não estava fora dessa e posso apostar que lá no fundo, lá na cratera mesmo, ele também estava achando graça disso.
Eu poderia rir por horas. Acho que esse passeio não foi realmente uma péssima ideia, afinal de contas. Entretanto, mal paramos de rir quando uma rajada de vento frio gelou nossos rostos e nos surpreendeu no mesmo instante.
Shhhhhh... Acorde...
O assovio também o acompanhou e nossos corpos estremecidos seguiram o som. Novamente eu posso jurar que escutei uma voz fina se sobressair, mas não tenho tanta certeza se a palavra é mesmo o que ouvi.
— Ei, vocês, parem... É sério, não se mexam! — o rapaz sussurrou nos mandando.
Thom o obedeceu guardando o celular no bolso traseiro após tê-lo gravado com o flash ligado por causa da penumbra total, porém, Fernanda não cessou o riso, e acho que nem tenha ouvido o que ouvimos juntos. Toquei em seu ombro a fim de chamá-la atenção, mas ela não conseguiu me escutar aumentando as risadas ainda mais.
— Não vamos cair nessa, Tsuki... Uma vez, tudo bem, mas outra... — murmurou Fernanda até ser interrompida.
Antes que pudesse concluir o chão onde eu pisava cedeu e me sugou por inteira. Como areia movediça. Sua voz ecoou no local e depois, tudo sumiu. Eu descia desenfreadamente por um estranho tobogã enferrujado e quando me dei conta de que não havia morrido pude observar melhor o ambiente... Grande erro.
Além de parecer com o interior de uma mineradora, o teto é coberto de ferros unidos e construídos para um tipo de cúpula ainda em andamento, e lá embaixo... Meu Deus, que alto... Parece que estão trabalhando num túnel.
Sinto como se alguém tivesse socado meu estômago, ele dói e se contorce sem parar... A ânsia de vômito é implacável também, subindo até a garganta, e um tremor anormal sucumbe minhas pernas. Vejo pontinhos pretos na minha frente, a descida é contínua, mas minha vista já começa a ter resquícios de que vai se apagar de vez.
Lapsos, flashs, ou aquilo que as pessoas dizem quando estão prestes a morrer passam diante de mim. Imagens de meus pais surgem dentro de uma névoa esbranquiçada, densa e baixa, com um cenário em aquarela no fundo. Momentos da minha infância são atuados em segundos.
Quando perdi meus primeiros dentes. Quando aprendi a andar de bicicleta, estava sendo difícil desapegar das rodinhas. Quando aprendi a usar as ferramentas de papai... Ele estava furioso porque estava mexendo sem permissão, mas depois me ensinou tudo. Quando soube cozinhar e Malorie estava alerta com minhas mãozinhas longe do fogão. Ou quando brinquei com meus primos de pega-pega.
Acorde...
Uma voz fina percute no fundo do cenário, os gêmeos pequeninos correm assustados e apenas a minha versão criança continua parada... Estagnada de medo. Corro em sua direção, não sinto minhas pernas ou qualquer outra parte do meu corpo, mas tento correr para protegê-la dessa voz.
Você precisa acordar...
Agora consigo entendê-la.
Nada disso é real... Nada disso é sua realidade.
E queria nunca ter entendido. A pequena Ágata toma a iniciativa de correr, uma coragem que eu mesma me surpreendi, embora não seja necessário porque estou na sua frente.
— Ei, fique calma... Eu estou aqui, nada vai te acontecer. — sussurro abrindo os braços para amenizar a tensão, mas ela simplesmente me atravessa como se eu fosse um fantasma.
Minha respiração desacelera, fico sem fôlego. A pequenina corre com as mãos nos ouvidos, tampando na vã tentativa de calar essa voz. Eu não me lembro disso, não me lembro desse momento...
De repente, pontas pontiagudas emergem do chão. São copas de árvores, parece uma floresta, não... É um bosque. Estou acompanhada de alguém alto que me carrega junto de uma cesta na outra mão. Sua respiração é bastante sonora e me tranquiliza mesmo estando em um bosque completamente escuro.
Essa pessoa é forte também, porque me leva no colo e meu corpo é pequeno... Bem pequeno. Devo ter oito anos, mais ou menos... Mas isso é impossível, essa cesta foi encontrada quando fui achada em frente à porta de casa e meus pais me contaram tudo! Eu tinha apenas alguns meses de vida quando me abandonaram.
A pessoa usava uma máscara preta cheia de detalhes na região dos olhos que estão escondidos por duas lentes de vidro, abaixo delas tem um bico fino e longo como de papagaio que curiosamente não estou amedrontada em tocar. É a máscara usada na época da Peste Bubônica.
Sua presença não me intimida, na verdade ela é familiar pra mim, estranhamente familiar... Só que eu nunca o vi na cidade. Nunca o vi antes em toda a minha vida e sentir que ela está passando tão rapidamente diante de seus olhos é de dar medo, mas ao contrário do que imaginei que seria meu fim eu fiquei surpresa por não sentir essa sensação.
Era... Libertador.
Bizarramente libertador.
Abro os olhos sentindo uma imensa queimação na garganta e uma dormência absurda no corpo. Eu estou submersa. Afundando sem relutância numa água morna e bem relaxante. Eu poderia permanecer assim, parada... Estagnada... Mas eu não estou com medo, não como antes. Forço os braços a me puxarem pra cima, assim como os pés.
Eu quero olhar para o céu de novo, quero rever meus pais, quero brincar outra vez com meus primos, quero discutir com aquele idiota desconhecido, quero viver... Eu quero viver!
Pus tanto impulso que em poucos segundos estou na superfície tossindo um pouco de água que ainda estava dentro de mim, eu parecia um foguete em decolagem. Meus olhos ardem, minha garganta e braços também.
Penso em sair daqui antes que comece a ter câimbra, mas noto que a água cristalina não é de todo mal. Respiro fundo, me mantendo concentrada em me acalmar agora que estou a salvo, e relaxo. Meus músculos, minha respiração, tudo se equilibra.
Como é possível que uma coisa dessas esteja escondida aqui? E como tudo isso é possível?! Justamente numa cidade que todos se conhecem não existe uma pessoa que relate ter visto algo assim antes. É... Estranho, pra dizer o mínimo.
Observo encantada. O encanamento através das paredes rochosas com linhas ramificadas que terminam no lago transparente, Lacey e Gael não me disseram que havia algo assim escondido, e possivelmente saberiam por morarmos tão perto daqui. Talvez não soubessem disso, mas mesmo que soubessem teriam me dito, certo?
Eu quero acreditar que sim.
O ar umedeceu desde que emergi, me afundo um pouco na água e sinto que ela está me abraçando com todo seu calor natural. Não quero sair daqui, nunca.
Acorde...
Reviro os olhos. Isso não vai nunca parar?
— Okay, eu já entendi! Estou dormindo, nada disso é real... — suspiro, exausta daquele mistério. — Mas pode ao menos aparecer?
Tudo fica em silêncio.
Não um silêncio comum... Tudo parou de soar.
Tudo está quieto. Minha respiração é o único som que se transmite.
— Hum... Olá? Eu... Eu não queria te ofender, tá? Se não quiser aparecer tudo bem. — investigo o perímetro inteiro, mas nada parece fora do normal.
Minha concentração se perde quando ouço um barulho ao longe. Parece que algo está deslizando. Resolvo levantar por precaução, mas o frio novamente me faz estremecer e volto para água. Eu odeio o frio.
— Ágata! Você tá bem?!
Observo os seis olhos lá de cima me encarando abismados. Então o barulho veio daí... Que bom. Suspiro mais aliviada, me afundando na água novamente. O loiro é o mais perplexo dos três, Thomas já voltara a ligar seu celular e o flash só indicava que estava me gravando. Esse cretino.
— Venham rápido! A água está perfeita! — convido.
— Eu... Eu não sei se devíamos ir. — disse Nanda apreensiva, mas foi totalmente ignorada.
Thomas tira sua camisa azulada assim como seu casaco bege, já o rapaz faz o mesmo com seu sobretudo preto e o cacharrel. Fernanda ainda os encara receosa com sua camisa lilás por baixo do casaco delicado. Os meninos jogaram suas roupas no chão criando um montinho de roupas sujas e nem mesmo isso foi o suficiente para convencer Fernanda de vir aqui.
Ela não tem medo de ficar sozinha na escuridão?
— Não tem problema por aqui! — continuei a chamando. — Venham rápido! Venham logo seus molengas!
Fernanda suspira cedida pela tentação enquanto os dois caras acabavam de tirar os sapatos ficando apenas com os calções e já se preparavam para tirar na sorte quem entraria primeiro lá, ela não pensou duas vezes e se jogou com as roupas no corpo.
Mesmo descendo rapidamente pelo esquisito tobogã, ela não parou de reclamar sobre os mosquitos e o calor excessivo que impregnava em sua pele, e fazia do tecido se fixar no corpo. Ela odeia o calor, constato. Depois veio Thomas com seu jeitinho cauteloso e jeitoso mais o destrambelhado do loiro, mas os dois se descuidaram no fim e caíram entrelaçados aos berros.
— Ai meu Deus! — falei sem conter os risos.
O local ao meu redor é coberto por muita terra molhada e com mínimas rachaduras ferventes que exalavam vapor. Parecíamos estar numa sauna, me aconchego na borda descansando a nuca ali e desfrutando daquela tranquilidade absurda que essa piscina natural me transmitia, Fernanda caíra justamente nas rachaduras – que ao se chocarem abriram uma fenda ainda maior – enquanto que Thomas ficara nos montinhos de terra logo atrás.
Mas acho que... Não era exatamente terra.
Não consegui resistir por muito tempo, minhas gargalhadas só não estavam tão altas por causa dos berros dos meninos.
Mais à frente aparecia de relance uma fina luz no fim desse lugar escuro, não tão forte quanto o próprio Sol, mas o bastante para enxergar alguns pontos obscurecidos. Dali vinha uma brisa refrescante mesclado com um ar quente do lado de fora. Talvez a tal luz fosse mesmo a do Sol, uma tão potente que parece do meio-dia, e nós é que estivemos presos por tempo demais aqui dentro.
O último a descer foi o tal idiota que me direciona um sorriso atrevido, apesar do medo aparente em seus olhos.
Até quando essa febre vai continuar, hein?
Quando está prestes a chegar ao final, ele desce lentamente como uma criança brincalhona faz ao escorregar num brinquedo do parquinho. Ele gritou bem alto se divertindo ao sentir que a fenda que Nanda abrira se resultou numa explosão de vapor maior do que os anteriores, como um verdadeiro gêiser, o chutando por cima da piscina.
Olho-o admirada.
— Nossa! Isso é o que eu chamo de voar com estilo. — sussurro.
Ele caiu de pé, como um gato, e o seu corpo completamente suado me presenteia com o vislumbre de sua silhueta esbelta e definida. Respiro fundo tentando esconder meu rubor e frear meus pensamentos.
Adverso do que pensei, o loiro observava o horizonte à frente em curiosidade e entusiasmo, bem diferente do que meus principais pensamentos o transformaram: um cara fútil se exibindo para mim e Fernanda que, aliás, estava ocupada com a sujeira em seu corpo. Felizmente, minha prima tinha caído em um terreno fofo, apesar de ser quente a ponto de marcar sua pele inteira como cicatrizes.
Poucos minutos depois optei por sair daquela banheira natural com a sensação não tão plena do que desejei ter. Os músculos ficaram tensos e rijos, mas não transpareci a ninguém sobre isso.
Já basta a situação que todos passaram.
Os dois azarados lá atrás se levantaram aos tropeços e doloridos com movimentos lentos, resmungavam baixinho conforme se aproximavam a caminho da luz também, porém, não imaginávamos ver aquilo que nem mesmo tínhamos ideia que existisse.
Afinal, quem estaria nessa caverna tão porcamente utilizada?
Ponto 1: Olha, confesso que não sabia disso, mas é a fobia de altura. Então, quem tiver esse extremo medo de altitudes e não sabia o nome aí está!
Ponto 2: Pra quem está bastante curioso lamento informar, mas esse lugar é imaginário, exceto pela cidade. Ela realmente fica situada no Texas, quem sabe a gente não faz uma visitinha a eles lá né? ^^
Ponto 3: É a denominação dada para uma das classificações dos biótipos corporais. Caracterizados como altos, magros e esguios, essas pessoas geralmente têm dificuldade de engordar e ganhar massa muscular.
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