Para Descobrir o Amor, por @LygiaCSantiago
O apartamento tinha ares de sujeira e desordem, mesmo quando James Camden se empenhava em limpá-lo e colocar todas as posses em seus respectivos lugares. Devia ser culpa do papel de parede descascado e manchado de fuligem, ou do piso de aspecto envelhecido e dos cantos mal iluminados.
Se os planos de James se dessem como ele queria, dentro de um ano — ou um pouco mais — ele compraria o próprio jornal. Não um noticiário de pouca credibilidade, mas um que já tivesse algum nome no mercado. Em pouco tempo, ganharia mais dinheiro do que poderia contar. Para o seu futuro via a si mesmo como um senhor de suíças brancas, com uma grande barriga que o antecedesse, em uma casa maior e mais limpa, uma boa xícara de café com conhaque ao seu lado e um charuto malcheiroso entre os dedos. A casa maior serviria de conforto para alguma amante que ele tivesse, já que não tinha o casamento como plano. James também não tinha especial apreço ao excesso de peso no próprio corpo e poderia dizer que odiava charutos, mas a imagem de um jornalista de sucesso estava muito gravada em sua mente para que pensasse em si de modo distinto.
Na falta do jornal, do casarão e do charuto, era o único responsável por si. Não fazia questão de criados ou de cozinheira. Dormindo naquela espelunca, seria difícil encontrar espaço para outra pessoa que não ele.
Pelo menos era o que pensava até encontrar Kathy. Katherine era um nome muito grande para uma criatura tão miúda. Ela concordava com isso, já que jamais se apresentava com toda sua alcunha. Era Farley para os desconhecidos, os íntimos a chamavam de Kathy. James se julgava íntimo, já que ela estava deitada de bruços na sua cama, inteiramente nua, deixando que ele depositasse beijos suaves por toda a extensão da coluna dela, a coisa mais limpa dentre aquelas paredes.
— Por que você não fica só essa noite?
— Você sabe o porquê.
Ela se virou, fazendo-o encarar aqueles olhos azuis e a boca miúda que ele não conseguiu deixar de beijar. Beijou também a ponta do nariz pequeno e arrebitado, antes de pousar os lábios na testa dela.
Não entendia como aquela beldade não fora descoberta por nenhum dos homens da redação antes — não que tivesse certeza quanto a isso. Se ela era virgem quando o conheceu, James não sabia. O que sabia é que os dois trocavam olhares longos entre as mesas de trabalho, pelo menos quando ela não o repreendia por um período mal escrito ou um erro ortográfico tolo.
No dia em que ele se oferecera para acompanhá-la até sua casa, sob o argumento de que uma senhorita não deveria andar sozinha pela rua depois de trabalhar até tão tarde, ela o fez rir com a resposta de que maior perigo ela enfrentava se estivesse ao lado dele. Ele estava há apenas um mês no jornal, enquanto ela parecia estar ali desde sempre. As semanas se foram passando entre as repreensões dela quanto a sua escrita, além de sutis sugestões de matérias que, vez por outra, eram por ele acatadas.
Depois de seis meses, fora a vez de ela o pedir para acompanhá-lo. Foi apenas um passo para que os dois chegassem à cama. James fora cuidadoso na primeira vez dos dois juntos, por mais que ela tivesse praticamente se jogado em seu pescoço quando as portas daquele apartamento mequetrefe se fecharam com os dois lá dentro. Tirá-la do seu feio vestido havia sido como descobrir o mais caro dos presentes embrulhado em um saco de batatas.
Se dependesse de Kathy, ela ficaria embrenhada nos lençóis, que cheiravam a limpo, e no corpo de James pelo resto da noite. Teria que ir para a própria casa, ajudar a irmã a cuidar das crianças e prestar atenção para que a mãe tivesse se alimentado bem antes de ir para a cama e finalmente dormir — o que estava prestes a fazer sob os beijos dele, se não fosse sua voz a chama-la de volta.
Não se incomodava com o aspecto malcuidado do apartamento, apesar de não fazer muito sentido que um homem como ele morasse em um lugar tão pouco apresentável. Não que James fosse rico, mas teria condições de manter uma boa casa com, no mínimo, um criado e uma cozinheira. Entendia que ele quisesse economizar para, um dia, comprar o próprio jornal. Talvez ela própria pagasse por uma cozinheira ou outra criada se tivesse dinheiro para tal, mas este não era o caso.
Deixou que James levantasse primeiro, só pelo prazer de observá-lo nu. Ela também se levantou, indo buscar as roupas que haviam ficado espalhadas pelo chão. Não usava crinolinas, nem mesmo anáguas o suficiente para que seu vestido ficasse bem ajustado. Já lhe bastavam a chemise, os calções, as meias e a anágua fina, que vestia com alguma agilidade e sem a necessidade de qualquer auxílio. Se James corria para ajudá-la a terminar de fechar o vestido após fechar as próprias calças era por escolha própria.
Kathy não sabia o que a fizera escolhê-lo. Era certo que, além de escrever bons textos, o homem tinha uma figura de fazer inveja a todos os outros do jornal. Os cabelos amarronzados, o bigode sempre bem aparado e os olhos tão verdes que faziam com que ela imaginasse se as esmeraldas eram daquele tom. Ele também tinha um ar atlético sempre que corria para fora da redação em busca de elementos para uma matéria, o que combinava com a expressão intelectual que trazia no olhar quase sempre que estava prestes a terminar um texto. Ela sentira algo estranho em suas entranhas desde que pusera os olhos em sua figura pela primeira vez. Sendo pobre e com quase 22 anos de idade, não tinha mais muitas chances de conhecer um homem que quisesse casar com ela, mas não queria morrer sem ter experimentado o corpo de um.
Enquanto James era o responsável por algumas das melhores matérias do Correio da Manhã, Kathy corrigia quase todo o jornal. O Sr. Clayden, dono e editor chefe do periódico, jamais admitiria que uma mulher assinasse — ou mesmo opinasse sobre — qualquer notícia do seu jornal, mas estava bastante satisfeito em pagar para Kathy menos do que para qualquer um de seus homens e ver todos os textos quase sem nenhum erro e entregues pontualmente para o fechamento da edição.
Quando saíam juntos, fosse do jornal ou do apartamento dele, tinham ares de casal, ressaltado pelo modo que ela deixava a mão apoiada sobre o braço dele enquanto os dois se misturavam ao movimento das carruagens e demais pedestres apressados. Conversavam sobre quase tudo no caminho de quase meia hora, que ela insistia em fazer a pé, até a casa onde morava com a mãe e os irmãos.
— Você pode sentar ali, James. Já que eu ponho o jantar na mesa.
Foi Ebenezer, a menina de idade mais próxima à de Kathy, quem falou, misturando a panela do ensopado que seria o jantar da noite enquanto a irmã mais velha lhe beijava os cabelos e se afastava para ver os outros meninos. Thomas tinha 10 e ainda estava preto de carvão, não tendo se limpado depois do serviço na última chaminé. Brianna, no auge dos seus 6 anos de idade, balançava o berço do pequeno Sorrow, com menos de 1 ano, que só parou de chorar quando foi para os braços da irmã.
Loveday Farley, quando jovem, deveria ter sido tão bonita quanto a filha mais velha. As duas eram parecidas, apesar de que a mãe tinha uma expressão de sofrimento constante no rosto, e James gostava do sorriso bondoso que sempre era reservado para si. Ele fazia questão de beijar as mãos magras antes de sentar-se perto dela, engatando uma conversa com a mãe enquanto as filhas tratavam de arrumar a mesa do jantar.
O motivo pelo qual Kathy não se incomodava com o apartamento de James era porque sua casa tinha ainda mais cantos escuros, suas paredes ainda mais fuligem e seu piso parecia ainda mais descuidado.
Ele, por sua vez, só passou a aceitar os convites para jantar depois que percebeu que maior era sua ofensa quando dava uma desculpa qualquer para ir embora, quando Kathy sabia que nenhum pão seco o esperava em casa. Jantavam todos ao mesmo tempo em uma balbúrdia que fazia com que James sentisse saudades da casa dos pais, dos irmãos mais velhos e mais novos que haviam ficado no campo. Jamais foram tão pobres quanto aquelas pessoas, mesmo que tivessem ainda mais bocas para alimentar.
Uma das vantagens da pobreza é que ela tinha menos pudores. As pessoas até comentavam quando Kathy chegava com de braços dados com James e quando o acompanhava até a porta na despedida, mas não se importavam de verdade. Cada um daqueles homens e mulheres tinha mais com o que se incomodar do que com as indiscrições de uma vizinha prestativa. A filha de um nobre jamais sairia de casa de uma acompanhante e uma série de recomendações. Às filhas dos pobres restavam duas escolhas: arrumar um emprego que pagasse qualquer coisa ou cuidar de tudo na casa para quem tivesse este emprego pudesse gozar de um prato quente de sopa antes do próximo dia. As menos afortunadas, mas numerosas, quase sempre não escolhiam, sendo obrigadas aos dois.
— Vejo-a amanhã.
Ela assentiu com um menear de cabeça, olhando-o do umbral porta até que ele sumisse depois de dobrar a esquina, sem perceber o sorriso que mantinha nos lábios até isso acontecer.
Faziam amor às vezes. Eram colegas de trabalho. Podiam até se dizer amigos, mas nenhum dos dois pensava em nada mais.
James havia chegado tarde no jornal. Estranhou que Kathy não estivesse na mesa perto da sua, mas, com duas matérias para terminar de escrever e tendo que sair para averiguar uma manifestação próxima ao parlamento, sequer teve tempo de perguntar por ela. Deveria estar resolvendo algum problema junto à prensa.
Na manhã seguinte ele sequer foi para o jornal. O Sr. Clayden se certificou de que um moleque o fosse acordar muito cedo. Teria que falar com os homens da polícia sobre o corpo de um nobre recém encontrado no Tâmisa. Chegou na própria mesa muito depois do almoço e, mais uma vez, por mais que houvesse estranhado não encontrar os olhos azuis de Kathy, tinha muito trabalho a terminar antes de perguntar por ela para quem quer que fosse.
No terceiro dia, o estranhamento pela ausência dela virou inquietação. Queria dizer que o problema era não ter sua figura bonita para olhar quando os olhos estivessem cansados de encarar a própria letra. Ou que sentia falta dos textos que ela lhe passava dentre as folhas alvas de papel, esperando que ele os copiasse como um todo e repassasse para o Sr. Clayden como se fosse dele — algo que James fazia porque via seu trabalho facilitado, mas também para ver o sorriso nos lábios dela quando, no jornal da manhã seguinte, estava o texto dela publicado sem que uma vírgula houvesse sido alterada.
Antes do almoço foi até a sala do Sr. Clayden, sob o pretexto de perguntar quanto a matéria assassinato do tal nobre, mas tendo como real interesse o paradeiro de Kathy.
— Aquela ingrata! Deve ter arrumado um emprego que lhe pague mais em algum outro lugar! Quando vier atrás de mim com o rabo entre as pernas vai descobrir que já arrumei alguém melhor para fazer o trabalho dela.
Não poderia esperar do chefe uma resposta educada, descobrir, contudo, que ela havia sumido sem dar notícias a quem quer que fosse fizera com que James tivesse que segurar a língua dentro da boca. Saiu da sala do chefe e foi buscar sua casaca e seu chapéu, saindo do jornal sem se importar com a matéria por escrever. Outra questão precisava de investigação imediata.
Tinha pressa o suficiente para alugar uma carruagem até a casa dela, ou pelo menos até o mais perto que o cocheiro aceitou levá-lo. Caminhou até a porta estreita o mais rápido que suas pernas deixaram, sem que iniciasse uma corrida, e bateu na madeira com mais força do que o pretendido, ansioso para ser logo atendido.
Ebenezer tinha os olhos feito pires quando abriu a porta. James não percebeu quando ela soltou o ar aliviada, puxando-o para dentro de casa depois de olhar de um lado para o outro da rua com uma expressão nervosa.
— Onde está a Katherine?
— Ela está lá dentro, descansando. — Antes que James pudesse perguntar o que diabos havia acontecido, a menina se afastou para buscar uma caneca de café preto para ele, sem deixar de falar. — Depois que você saiu, nosso pai apareceu. Nós achamos que ele viu você aqui, já que primeiro tentou brigar com a mamãe, até Kathy se meter entre os dois. Thomas teve que queimar ele com o atiçador da lareira para que ele fosse embora e, desde então, ele ainda não voltou, mas achamos que está por perto.
Com a caneca nas mãos, James escutava com atenção o que ela dizia sem nada falar. Como repórter, havia aprendido quando falar, mas, sobretudo, quando tinha que tão somente escutar a história que lhe era contada.
— O que o pai de vocês fez com ela?
Apesar de ter contado tudo o que podia para o amigo, Ebenezer calou-se ante a pergunta dele. Bebeu alguns goles do próprio café antes de guiá-lo através do corredor estreito que ele sempre via da sala, mas pelo qual nunca seguiu. A menina bateu na segunda das três portas, não demorando a abrir uma fresta por onde ela conseguiu colocar a cabeça, antes de deixá-lo entrar no aposento escuro. Reconheceu Loveday sentada em uma cadeira ao lado da cama larga, mas de ares envelhecido. Beijou-a nas mãos por costume, antes de entender que aquela criatura encolhida dentre os lençóis era Kathy.
Ela parecia dormir, apesar de não ter uma expressão tranquila. Era um milagre, na verdade, que ele conseguisse distinguir qualquer expressão entre as nódoas arroxeadas que marcavam todo o rosto dela. James achou que fosse vomitar.
— Ela acabou de tomar o remédio, vai dormir por um tempo... Olhe o que ele fez com a minha menina... — Loveday resmungou enquanto tirava os cabelos do rosto da filha, mas mesmo seu toque leve de mãe parecia tê-la perturbado.
— Posso ficar aqui com ela?
A cabeça de Loveday pendeu em um gesto afirmativo. Ela se encolhou sob o xale que levava nos ombros e levantou-se da cadeira. Saiu do quarto amparada pela filha, enquanto James sentava na cadeira que ela antes ocupava para velar o sono de Kathy.
Se a situação fosse outra, Kathy jamais aceitaria que sua mãe gastasse o pouco dinheiro que tinham com um médico, ou mesmo com os remédios. Daquela vez, porém, somente se sentia bem quando o láudano fazia efeito e toda a dor que sentia na cabeça e no corpo era substituída por um sono profundo, ainda que preocupado. Teria que ficar boa logo e conversar com o Sr. Clayden para voltar ao trabalho tão logo a vista não estivesse embaçada. Naquele momento, porém, até abrir os olhos era um esforço, quem diria sair da cama e encarar seu empregador. Thomas não conseguiria manter a casa limpando lareiras, Ebbie não poderia arrumar um emprego quando tinha a casa para cuidar e as costuras de sua mãe não rendiam o suficiente sequer para uma sopa rala no jantar.
Tentar se mexer fez com que um resmungo escapasse de seus lábios, mas o lado onde seu pai havia batido com mais força ainda ardia sempre que ela não tomava cuidado para não o mover. Sentiu um par de mãos grossas segurarem as dela. Antes que pudesse focar a visão no vulto que estava próximo a sua cama, ele falou:
— Você precisa de algo? Sua mãe deixou um pouco de água para você.
Não precisava ver claramente para saber quem era. Ainda assim, sua visão clareou e ela pôde encarar James. Era um homem tão bonito, aquele. Ainda tinha as mãos sujas de tinta aninhando as dela.
Kathy não esperava que a vergonha fosse doer tanto quanto as bofetadas do pai.
— O que você está fazendo aqui?
— Cuidando de você! Não é óbvio?
A voz dela estava arrastada o suficiente para que ele soltasse as mãos dela e fosse buscar um pouco de água, que ela sorveu em goles lentos.
— Eu não quero você aqui. Eu estou feia.
— Sim, você está, mas eu não penso em sair daqui.
Ele voltou a deitá-la na cama só depois de conseguir analisar com cuidado o estrago feito no rosto dela. Não havia nenhuma parte dele que não estivesse inchada. O lado esquerdo, ante encoberto pelas sombras do quarto, havia se convertido em uma grande nódoa roxa e ele não fazia ideia de como ela conseguia manter o olho minimamente aberto.
— James, por favor...
Ele já havia visto rostos mais desfigurados. Mulheres mortas com mais violência do que aquela. Ser ela naquela cama, porém, punha seus nervos em frangalhos.
Enquanto Kathy dormia, James conseguiu encontrar tinta e papel. Naquele momento quis ter um lar apresentável, não um monte de dinheiro em um banco lhe rendendo algumas libras a mais por ano. Um lugar que ele pudesse chamar de lar, e que ela também o fizesse, e aquele pensamento o assustou por alguns segundos, antes que ele voltasse a ser a criatura pragmática que conhecia.
Escreveu para o melhor amigo, pedindo que ele lhe emprestasse um quarto em sua casa — muito mais descente do que o pulgueiro onde ele morava — e que lhe chamasse um médico.
Loveday já havia concordado, com um sorriso no rosto e um agradecimento que se repetiu por muito tempo depois que a nota fora entregue nas mãos da pequena Brianna, assim como algumas moedas para que, na volta, ela trouxesse vegetais e um pedaço de frango para o jantar do restante da família. Kathy não teria escolha. Ele sempre admirara seu orgulho, mas não deixaria que ela morresse à míngua ou que aquelas pessoas a quem ele considerava como amigos passassem fome.
— Tente me tirar daqui, feiosa. Você precisará sair dessa cama e fazer bastante força para isso.
Ele sorriu e buscou o pedaço menos manchado do rosto dela para um beijo que não passou de um roçar de lábios. Pegou o caldo ralo que seria o almoço dela para ajudá-la a se alimentar antes da próxima dose de láudano.
Quando Kathy acordou novamente, sentia-se menos zonza e também um pouco menos dolorida. Sua pele formigava com algum frescor nos lugares mais feridos. Se não fosse a sede, ela teria relutado em abrir os olhos mais uma vez. O que viu, porém, fez com que ela se sobressaltasse. Não estava no quarto que dividia com as irmãs, entre lençóis encardidos e com o ar abafado pela fumaça da lareira. Os lençóis que a embrulhavam tinham um cheiro bom que ia além do limpo, as paredes tinham papel em bom estado de conservação e a lareira não deixava que a fumaça invadisse o quarto, que contava com uma janela ampla para tornar o ambiente mais fresco.
— Você acordou.
— Onde eu estou?
— Na casa de um amigo meu. Chamamos um médico de confiança e ele nos deu boas notícias depois de examinar você. — Ele falou enquanto sentava na cama para, mais uma vez, erguer o corpo dela e lhe dar um pouco de chá, já frio.
— Eu não posso pagar um médico, James! Onde estão minhas roupas?
— Eu posso pagar um médico. Suas roupas estavam atrapalhando o emplastro que ele colocou nos seus ferimentos, por isso estão guardadas. Agora, beba o chá.
James tinha certeza que ela mantinha os lábios cerrados apenas para aborrecê-lo, sem provar nenhum gole do chá doce que deveria anteceder-lhe o jantar.
— Isso não faz parte do nosso trato, James. Você não é responsável por mim, não tem que cuidar de mim.
— Beba o seu chá.
Ante aos segundos de silêncio entre os dois, Kathy se viu forçada a aceitar o chá. Estava cansada demais para brigar com ele. Dolorida demais. O que ela não poderia entender era que, mais do que um dever, James estava ali porque queria, porque não suportaria deixá-la sozinha, sob os cuidados de uma mulher doente demais para tomar conta de si mesma e de uma adolescente já atarefada demais.
— O médico disse que você provavelmente não quebrou nada, apesar de estar muito machucada. Ele irá voltar amanhã e examiná-la mais uma vez enquanto você estiver acordada. Se quiser se ver livre de mim, terá que levantar logo desta cama e provar que está apta a voltar a corrigir os meus textos depois de subir e descer as escadas desta casa sem sentir qualquer dor. Agora, prepare-se para o seu jantar, que eu irei trazê-lo. A Sra. Abbey tem mãos de anjo e ficaria mortalmente ofendida se você se recusasse a comer a canja que ela preparou.
Não que estivesse feliz com sua situação, mas Kathy não viu escolha. Teria que comer a canja repleta de frango e muito bem temperada. Era provável que passasse a noite a discutir com James se ele não tivesse se utilizado do láudano para fazê-la voltar ao mundo dos sonhos, sem poder negar que, ali, estiva muito mais confortável do que em sua própria casa.
Kathy não fazia ideia de onde James estava dormindo. O que sabia era que, toda vez que ela acordava, ele estava ao seu lado para cuidar pessoalmente de suas necessidades.
Por ele se manter próximo, tinha que escutar as reclamações que ela fazia em alto e bom som por estar sendo servida. Aquilo era errado. Não podia se aproveitar da hospitalidade de um desconhecido, nem mesmo ocupar James. Se perguntava pelo jornal, ele dizia que tinha virado um lugar aborrecido sem ela para reclamar de tudo que ele fazia. Se perguntava pela mãe, escutava-o falar que Loveday estava feliz em saber que a filha estava bem cuidada. Ele tinha uma resposta curta para tudo, isso quando não se mantinha em um silêncio incômodo, mandando que ela se distraísse com um livro enquanto ele se distraia com outro.
Com o passar dos dias, Kathy melhorava. Passava mais tempo desperta e, por isso, mais tempo reclamando sobre como James estava errado em mantê-la ali. O rosto desinchava, a pele voltava a coloração normal e, com as canjas da Sra. Abbey, poderia até dizer que estava ganhando um pouco de peso. O tédio, porém, crescia a galopadas, e James era sempre a vítima de seus comentários ferinos.
— Não é porque nós dormimos juntos que você tem que fazer isso! Eu prometo que vou pagar cada xelim que você gastou. Você e esse seu amigo advogado.
— Eu estou farto de você reclamar sobre isso, Katherine. Já passou pela sua cabeça que eu não me veria confortável com você definhando na casa da sua mãe? Que eu meu importo que você esteja bem o suficiente para que brigue comigo? Por Deus, mulher! Isso não é só sobre você! É sobre mim. É sobre meu coração que se preocupou quando você não apareceu no jornal, que doeu quando eu vi você naquele estado. Eu não ligo para quanto dinheiro eu gastei, desde que eu pudesse ver você bem, mesmo que esteja muito aborrecido com você neste momento! Porque eu queria beijar você, mas também queria mostrar os últimos textos que escrevi para o jornal e dizer que estava pensando que talvez seja a hora de encontrar um lugar melhor para viver, onde eu possa ter uma cozinheira, um mordomo e uma criada! Uma sala com um papel de parede bonito e um escritório espaçoso onde pudesse organizar meus livros, mas você só se preocupa com quantas malditas moedas eu gastei e eu estou cansado de escutá-la reclamar toda vez que abre a boca para falar algo!
Ela não esperava por uma explosão, não quando ele passara a última semana calado demais para seu gosto, longe demais das suas mãos. Ficou muda, os olhos arregalados para a figura descomposta que não demorou a se afastar, batendo com força a porta do quarto depois de sair dele. Aquelas olheiras estiveram ali por todos aqueles dias, ou ele apenas dormira mal na última noite? E se fosse ele quem estivesse na situação dela, o que ela faria?
Kathy cobriu os olhos com as mãos e se sentiu a maior das estúpidas. Quando escutou a porta se abrir novamente, ergueu o rosto na esperança de que fosse James. Ver a figura da Sra. Abbey, porém, jogou um balde de água fria em suas expectativas.
— Você realmente aborreceu aquele menino, mas não se preocupe. Ele passou tantos dias dormindo nesta cadeira ao seu lado que a cabeça não deve estar funcionando bem pelo cansaço. Amanhã vocês conversam com calma.
Sem o láudano e depois do que conseguiu extrair da Sra. Abbey, Kathy teve dificuldade em conciliar o sono naquela noite, enquanto pedia a Deus que raiasse logo o dia.
Não estava de todo livre de dor na manhã seguinte, mas, depois do café da manhã, pediu que a Sra. Abbey a ajudasse a se vestir mesmo assim. Nos dois dias anteriores tinha feito pequenas caminhadas pelo quarto, mas temeu que as escadas fossem um desafio grande demais depois de sua convalescença. A Sra. Abbey ficou do lado dela o tempo todo, e Kathy não tinha dúvidas de que a mulher poderia segurá-la caso ela perdesse o equilíbrio, o que não aconteceu. O sorriso que recebeu ao chegar ao térreo, porém, não foi de quem esperava.
— Fico feliz que tenha se sentido bem o suficiente para descer, Srta. Farley. Parece muito melhor do que quando chegou aqui. Sou Harvey Prescott, amigo de James e dono desta casa.
Kathy cumprimentou seu anfitrião com toda a educação que lhe era possível. Depois de agradecer pela hospedagem gentil e a disponibilidade em ajudar uma desconhecida, perguntou por James, sentindo-se esmorecer quando o homem lhe revelou que ele havia saído muito cedo. Deixou-se guiar até a biblioteca, a Sra. Abbey erguer suas pernas sobre uma chaise e Prescott colocar um livro em suas mãos antes que os dois saíssem dali, com a promessa de que James saberia que ela o estava a esperar tão logo pusesse os pés em casa.
Não se interessou pelo livro, nem pelo chá. Os biscoitos ficaram intocados. Seu único interesse era na porta do aposento que havia demorado tempo demais para ser mais uma vez aberta.
— Se você tivesse se dedicado às artes médicas, nós dois já estaríamos ricos! Olhe só que recuperação excelente temos aqui!
Ela escutou o tom de brincadeira com o qual Harvey falava. Por mais que o advogado tivesse apontado para ela, não demorou mais do que um segundo para sair da biblioteca, deixando os dois ali sozinhos, com as portas fechadas.
— Eu desci as escadas sozinha e estou certa de que posso voltar a corrigir seus textos.
— E agora vai me deixar?
Aqueles olhos diziam muito a ela. Muito do que ele havia sentido na última semana, muito do que ela deveria aprender. Tinha mais dor ali do que no corpo ferido que ela ainda tinha que terminar de sarar. Ao mesmo tempo, tinha ela. As escolhas dela, todas ali. Se ela decidisse deixá-lo, ele jamais impediria.
— Na verdade, eu estava pensando em perguntar o que fez você pensar em comprar uma casa, e que textos tinha para me mostrar.
— Você sabe o porquê de uma casa.
— Eu não posso deixar minha família, James.
— Eu não estou pedindo para que você faça isso. Eu estou pedindo que você aceite ser sócia em um jornal pequeno, escreva muitas matérias e revise quase todos os textos que saírem nele, inclusive todos os meus textos, sem ganhar muito dinheiro por isso, pelo menos no começo.
— E depois?
— Que nós dois possamos sentar juntos para jantar e, de preferência, dividir a mesma cama, nem que seja para que você brigue comigo porque eu tomei muito café com conhaque e por estar muito tarde quando, no dia seguinte, nós dois temos que acordar cedo.
— Você está certo sobre isso?
— Não. A única coisa da qual eu tenho certeza, hoje, é que eu não quero perder você.
Ela demorou a ter força suficiente para levantar-se da cadeira. Respirou fundo antes de caminhar até ele, encarando aquele olhar que era metade tristeza, metade esperanças, quando ela pousou a mão no seu rosto bem barbeado.
— E o resto, James?
— Eu estou contando você para encontrar soluções comigo.
Ela sorriu. Aninhou-se no peito dele como um passarinho em busca de aconchego. Por mais que o desejo de James fosse esmagá-la contra si, passou os braços ao redor dela com suavidade, beijando aqueles cabelos loiros antes que ela lhe oferecesse os lábios com o mesmo fim.
— Eu sinto muito. Eu também teria cuidado de você, mesmo que você também estivesse feio.
A risada dele ecoou por toda a biblioteca e os lábios cobriram mais uma vez os dela.
Os dois eram muito inexperientes nos assuntos do amar, mas teriam todo o tempo do mundo para descobrir juntos suas mais variadas nuances.
Era provável que James jamais colocasse um charuto nos lábios e que seu corpo continuasse com um aspecto magro até que ele fosse um feliz senhor de 50 anos de idade, tendo que escutar os desaforos de uma mulher que era pequena demais para o grande nome que tinha. Ainda assim, aquele parecia um futuro com todo o sucesso que ele desejava.
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