Capítulo sessenta e quatro
Sofia
Confesso que não é fácil ficar concentrada. É uma habilidade estranha controlar conscientemente todas as suas células. Eu nunca imaginaria que seria possível até tentar de fato. A sensação inicial não era agradável, apesar de não sentir dor. Talvez com o tempo, eu pudesse me habituar com isso o e não sentir incômodo.
Milla falou que iria usar a pouca energia que ela captara do próprio filho para me auxiliar. Eu me recusei na hora. Achei que isso poderia ser o fim para ela. Não sabíamos se essa energia era recebida apenas de filho para mãe ou vice-versa, ou se até pudesse acontecer com todos nós, sem necessariamente laços familiares, afinal, Jullian também tinha DNA dos Orvrils e isso foi possível entre eles.
Ela tentou me tranquilizar, dizendo que não teríamos nem tempo e nem escolha. E que no máximo ela se transformaria em uma humana totalmente ou até poderia receber alguma energia minha. Mas aí eu pensei prontamente que se Jullian sentisse minha energia nela, ele pudesse fazer algum mal para a mãe de uma vez por todas, por pura raiva, pela traição. Mas ela disse que não dá para distinguir energia. Ela sentia um retorno, há de fato as trocas, a energia é igual. O que muda é a potência, a eficiência.
E continuou dizendo que se fosse assim, de ela perder tudo, ela aceitaria esse destino. Se ela não conseguiu mudar os pensamentos dele, não seria ela a acabar com a vida de mais ninguém que ela amava e tão pouco dos humanos, já que ele provara que poderia ser um assassino cruel e indestrutível.
Diante de tudo isso, eu realmente não tive escolha. Pensei principalmente no meu bebê e no Timmy. Talvez se isso me envolvesse apenas, eu não seria capaz de aceitar a proposta, mas foi mais forte que eu. E eu não tinha culpa de nada do que estava acontecendo. Nunca tive e nunca teria. Sou tão vítima quanto a própria Milla e os demais, embora eles tiveram a chance de escolher seus destinos e eu não. Só que agora já não reclamava mais disso. Era passado. Havia perdoado Timmy, porque no fim das contas ele me salvou de tantas coisas que nem ele mesmo poderia se dar conta.
E não foi por me dar mais saúde e alguma habilidade, mas por me fazer acreditar em mim mesma, no amor próprio, em uma coragem que nunca pensei ter e de mostrar o amor puro e verdadeiro. E eu achava que isso nunca aconteceria na minha vida. E depois, ainda achando pouco, Deus havia me presenteado com o resultado desse amor. Um filho. E por ele, eu faria qualquer coisa, por isso entendia Milla, mas ao mesmo tempo sentia a ponta de decepção com o dela. A escolha não deve ter sido fácil. Admirei-a e entendi a razão do Gabriel ter se apaixonado por ela em primeiro lugar. Ele de fato conheceu a verdadeira Milla, antes de ela ser manipulada pelos Condros no planeta dela.
Demos as mãos e tentamos mais uma vez.
***
Aquele lugar era muito bonito, embora eu não entendesse o propósito de um muro enorme de vidro na cor verde e ainda espelhado, no topo de uma falésia de grande extensão, com uma altitude de mais de duzentos metros. Ao menos era o que me parecia. Nunca fui boa em mensurações, talvez fosse até muito mais que isso. Era demasiadamente alto, tanto que a ventania era estupenda, ensurdecedora até.
Parecia um quebra-vento a finalidade daquela muralha gigantesca, mas, ainda assim, sem propósito para mim. E o mar parecia violento lá embaixo. Uma queda daquela altura e naquele lugar, provavelmente, a pessoa morreria de ataque cardíaco antes mesmo do impacto.
Mas mesmo com todas essas observações negativas, havia beleza naquilo tudo. Era estranho, porém vendo aquela paisagem não poderia pensar em quanto a natureza era interessante, diferente, única e misteriosa. É um lugar que qualquer pessoa poderia pensar: "este mundo não tem fim" ou "espero que este mundo nunca acabe", porque ali você certamente sentiria gratidão por existir e por ter conseguido admirar um lugar tão especial. Nunca é a mesma coisa que olhar uma foto. Estar presente, sentir o vento querendo te levar para longe da beirada, como se quisesse que aquela visão fosse intocável pelo ser humano, ou talvez fosse uma espécie de proteção. Não sei. Só sei que era único e pacífico.
Voltando ao enorme paredão de vidro, existia na frente dele uma espécie de passarela, onde possivelmente a ideia seria para pessoas poderem passear e se deslumbrar com aquela imensidão de mar, correndo menos riscos se estivessem se aventurando nas bordas do penhasco. Atrás, nenhuma construção. Apenas um terreno enorme, descampado, só com uma grama verde e algumas flores bem pequenas de cor branca. Um cenário até bonito. Talvez ficasse ainda mais bonito não fosse essa tal muralha de vidro, ou seja, o mirante. Havia uma estrada, que levava lá longe numa espécie de floresta.
Apesar de achar que a vidraça quebrava a beleza natural do local, dava também para sentir uma certa calmaria por trás do paredão. Era como você se deslocasse de uma dimensão para outra apenas por se colocar por trás daquilo. A ventania praticamente acabava, o barulho do mar diminuía, dava até para sentir menos frio.
Toda essa descrição seria normal se eu não estivesse naquele campo, colada ao muro de vidro em uma de suas extremidades, nua, toda suja de lama. E todo aquele peso de areia por cima de mim, ainda molhado, dificultando minha marcha. Eu não sei como consegui chegar naquele lugar, simplesmente estava ali. A minha memória não colaborava muito. Mas sentia falta de alguém. Passei alguns minutos avaliando tudo o que estava ocorrendo comigo. Se fosse qualquer outra pessoa, estaria em pânico, poderia até gritar, chorar ou desmaiar. Mas, no meu caso, depois de tudo o que eu vivi, estar ali mais parecia com um dia comum. Eu já estava me acostumando com tudo o que estava me acontecendo e com o fato de que iria demorar um pouco para que eu conseguisse encontrar calmaria na minha vida.
Eu, como eu me vi em uma das pontas do mirante, sem entender como eu havia chegado ali, decidi caminhar para a outra ponta, que era inclusive uma subida. Quem sabe estando na parte mais alta da falésia eu poderia enxergar o outro lado daquela enorme forma geográfica, para que eu pudesse ver o encontro do mar com a rocha? Já que atrás de mim eu só conseguia ver pedras, sendo impossível avistar qualquer construção civil. Só tinham arribas fósseis e alguma vegetação rasteira sobre todo aquele lugar. De lado, um campo seguido de uma floresta; e do outro, pedras mais altas e difíceis de escalar. Só poderia seguir subindo para ter uma primeira impressão do local. Quem sabe uma cidade eu poderia ver mais adiante? A floresta me parecia densa ao fundo e estava longe demais. A subida, com certeza, era mais fácil e mais próxima. Ademais, andar pelada colada a uma parede era bem menos exposição que andar em um campo descampado! Pudores ainda faziam parte de mim.
Não existia, ou pelo menos não conseguia visualizar nenhum caminho específico até o local em que eu estava. Talvez existisse antes, mas o propósito quiçá fosse chegar ao local caminhando, apreciando o lugar tão bonito, andando pelas pequenas plantinhas de florzinhas meigas. Eu estava mesmo sem opções no momento.
A cada passo que eu dava, tinha a sensação de que alguém estaria chegando. Isso me dava calafrios. Tentei relaxar, mas não consegui. E quando finalmente cheguei à metade do caminho, alguém apareceu atrás de mim e falou algo que eu não consegui entender. E, para a minha surpresa, este alguém estava exatamente como eu!
Era um homem aparentemente de meia idade, igualmente coberto de lama. Mas ao contrário de mim, não tentou esconder suas partes íntimas, porque ele parecia vestido, e mesmo debaixo de tanta lama, ainda assim, dava para ver sua roupa. Eu até tentei me esconder ao máximo, apesar de basicamente não ter sucesso com meu pudor. E nem tentei falar qualquer coisa, até porque nesse instante nem saberia o que pensar, quanto mais o que dizer!
Ele, por sua vez, assim que o vi, já elevou uma das mãos na tentativa de dizer que veio em paz. Ele estava hiperventilando. E imediatamente começou a falar que eu não precisava ter medo e que ele não tinha a intenção de me machucar.
Finalmente comecei a raciocinar, pois segundos atrás eu estava sozinha e aquele homem apareceu do nada! E as perguntas que vieram a minha cabeça eram as mais óbvias possíveis.
- Quem é você? Como chegou aqui? Por que estamos assim??
- Não temos tempo para isso! Eles estão chegando, precisamos correr!!!
- Eles quem????????
- Os outros!
- Quem? Aqueles que estão subindo logo atrás de você? Mas parecem ser apenas uma criança e um adolescente!!! Espere um pouco! De onde eles vieram também? De onde nós viemos?
Os dois estavam vestidos normalmente. A criança era negra, com um cabelo enorme black power e de longe vi claramente que estava de camiseta, bermuda e tênis. Já o rapaz estava de calça jeans e camiseta. Assim que apareceram e nos viram, começaram a correr em nossa direção.
E aquele rapaz teve apenas tempo de gritar, com o rosto transtornado em desespero:
- Corra!!!!!
Eu não tive opção para discutir! Apenas corri em direção ao topo daquela falésia sem olhar para trás. E ao chegar no fim do muro, não tive muitas opções, pois era um precipício e só havia mar embaixo! Pensei em ir para a frente daquele grande espelho para tentar procurar uma descida até o mar. Comecei a fazer o caminho oposto e descer pela passarela, de frente para o mar agora, procurando algum caminho ou escadaria, mas não conseguia achar nenhum. O arrependimento se instalou em mim por não ter escolhido correr em direção ao campo. Talvez lá as opções de fuga fossem melhores.
O homem ficou na ponta, para retardar aqueles dois. Mas por que ele estava me protegendo? Quem era ele?
E à medida que eu retornava, olhava para baixo ainda na esperança de achar alguma saída. Foi quando vi na outra ponta da muralha que aquela criança, aparentemente de oito anos, resolveu voltar e me cercar pela parte baixa.
Eu estava encurralada! Acima, aquele homem já estava praticamente junto do adolescente e, abaixo, a criança corria ao meu alcance. Ou eu enfrentava aquela situação ou pularia mais de duzentos metros de altura, o que com certeza me levaria à morte com o impacto na água e também nas pedras!
Quando olhei novamente para o homem, vi o adolescente atacando-o após um salto incrível sobre ele, deixando-o sem defesas e ao mesmo tempo parecia que aquele rapaz estava devorando-o! Ele se transformou em um monstro. Tive tanto medo que não consegui olhar mais nada, pois já estava preocupada com a criança que já se aproximava de mim! Com certeza ela também era um monstro!!!!
E tive que fazer a única coisa que me veio à mente: suicídio!
Simplesmente me joguei do penhasco, não pensei em argumentar com uma criança, não depois da cena que vi com aquele pobre homem diante de um monstro! Ademais, aquele bicho iria atrás de mim após finalizá-lo. Aquela criança era provavelmente igual àquele adolescente, um assassino, um bicho! Talvez a morte ao me chocar no mar fosse mais digna, mesmo que covarde.
Para meu azar, eu ainda assim não estaria livre daquela perseguição. Aquele menino que aparentava apenas oito anos também se jogou logo em seguida. E eu caía de costas para o mar, de frente para ele, que incrivelmente estava chegando perto de mim na queda livre! Ele parecia voar sobre mim. Eu fiquei horrorizada.
Eu só consegui gritar: "Não faça isso!" E ele já estava modificando o rosto, se transformando em um monstro com dentes enormes, uma coisa tão feia, pronto para arrancar fora a minha cabeça em uma mordida.
Quando comecei a fechar os olhos para não ver o meu fim, vi que ele fez uma cara de susto olhando alguma coisa que vinha do mar. Ele soltou um grunhido alto, medonho. Mas eu não conseguia me virar, estava sem controle. Acontecia tudo muito rápido. Eu não sabia dizer se era algo bom ou ruim, mas aquela coisa estava visivelmente com medo e tentando mudar de direção.
E tudo ficou escuro, até que acordei dentro do mar em um lugar muito profundo.
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