54 | Uma Verdade Dolorosa
ATENÇÃO:
Esse capítulo contém MENÇÕES á abuso, violência física e psicológica, princípios de crises de ansiedade e traumas.
Leia por sua conta e risco.
Cadu
10/04/2018
Terça-Feira, 10:28
Parado diante da porta do quarto, me vi hesitando um instante em entrar.
O Sr. Demônio me disse que como a maioria dos tratamentos não tinham efeito, ela preferiu não alongar nada disso e apenas deixar a vida seguir seu curso.
Com seu estado debilitado, qualquer flutuação emocional intensa pode mandar essa mulher pros braços do capeta, então ele repetiu diversas vezes pra não desmentir o que ela acha que é a minha vida, e não ser grosseiro.
Como se ele não me conhecesse.
Internada na ala psiquiátrica de um hospital (área VIP) com policiais armados na porta, praticamente qualquer resposta que eu queria eu já tive e nem vi a mulher ainda.
Respirei fundo, decidindo acabar com isso o quanto antes e bati na porta, aguardando um instante antes de entrar. Henri achou uma boa ideia, se ofereceu pra vir comigo, mas acho melhor ele não ver ela. Qualquer coisa e ele desmorona chorando, mas de domingo até agora, já quase tive diversas crises, eu estou mais perto de ter uma crise de choro do que ele, que é chorão por natureza.
O lugar parecia realmente uma sala de visitas, com sofás, tevê, mesa de centro e estantes de livros, bem chique pra uma prisioneira. Um cheiro suave permeava o local, um aroma que parecia familiar, mas decidi não pensar nisso ao me aproximar de outra porta que havia ali, provavelmente o quarto onde a mulher estava.
Quando bati na porta, ouvi uma voz suave e fraca dizendo pra entrar e no instante em que a abri, vi um esqueleto deitado em uma cama. Ainda bem que ela não lê mentes, morreria de desgosto por ser a primeira coisa que penso ao ver ela.
Era uma mulher de meia idade muito magra e muito pálida, um aspecto doentio e cansado com olheiras profundas, parecia que ia fechar os olhos e bater as botas cada vez que piscava e isso me fez hesitar outra vez. Ela não vai morrer só de me ver, né?
Ela usava um lenço preto amarrado ao redor da cabeça, nem sobrancelhas tinha além de usar um respirador. Seus olhos eram de um azul impressionante e vi como se enchiam de lágrimas, a pele tão pálida que as veias marcavam e os lábios ressecados tremiam. Me aproximei, vendo ela engolir em seco, respirando fundo como se tentasse conter as emoções.
— Nicolás... — sussurrou tristemente, estendendo a mão, querendo me tocar, mas uma sensação de desconforto se instalou no meu peito e me vi recuando alguns passos, sua mão caindo de volta na cama enquanto espremia os lábios numa linha fina, seu olhar ainda mais melancólico diante da minha clara rejeição. — Nico... está tão crescido. — tentou sorrir, me analisando fixamente. — Sim, é muito bonito, como o esperado... idêntico ao seu pai...
Respirei fundo outra vez, tentando engolir o bolo que surgia na garganta, me detestando por me sentir minimamente afetado ao ouvir isso, me relembrando que ela é uma estranha. Uma desconhecida.
Por alguns minutos, o som das máquinas que enviavam ar em seus pulmões e monitoravam sua frequência cardíaca eram os únicos sons que se ouviam, aquela pressão no meu peito se intensificava enquanto tentava organizar meus pensamentos.
— Nico...
— Eduardo. Meu nome é Carlos Eduardo. — ela acenou outra vez, os olhos secos enquanto parecia ter dificuldades até pra engolir. — O Sr. Demônio não me disse quem você é. Seu nome, idade, o que faz...
— Ele não disse nada? — neguei, apesar de já ter uma confirmação depois de ter visto as fotos dela na internet e ela ficou em silêncio, parecendo surpresa enquanto apertava os dedos no cobertor, antes de acenar devagar. — Então... acho que posso começar do mais importante. Eu me chamo Antonella. Meus pais e amigos me chamavam de Nina, não me pergunte o por que, nem eu mesmo sabia. — sorriu fraco, desviando o olhar de volta pra janela. Então é mesmo ela. Vi suas fotos no auge de sua carreira. Uma mulher com cabelos cheios de cachos negros, olhos azuis brilhantes, sorriso largo, a mulher diante de mim ainda tem traços daquela jovem bonita. — Me casei aos vinte e três e... e aos vinte e cinco, dei a luz aos meus primeiros filhos. Seu irmão mais velho e Alice. Então, aos trinta eu... descobri que esperava você, não era planejado, mas me apaixonei desde o momento em que soube que existia. — sua voz era rouca, melancólica enquanto sua mente parecia vagar pra longe.
"Eu... nunca... quis que crescesse em um lar de adoção seria temporário, apenas alguns dias para tirar o rastro da família dele de você e seu irmão... eu não conseguia confiar neles, não depois de... não importa agora... uma amiga minha os adotou depois de uma semana naquele abrigo, eu soube que tudo correu como planejei, ela apenas precisaria tirá-los do país e pronto, estariam seguros, mas ela... faleceu antes mesmo de embarcar no vôo e vocês dois retornaram ao abrigo... — e soluçou, agora tinha lágrimas escorrendo pela face, sem conseguir me encarar. — A última coisa que pensei que poderia acontecer, aconteceu e isso trouxe tanto sofrimento pra vocês... você e seu irmão não...
— Então... quem é ele? Quem é esse irmão? — ela hesitou outra vez, mordendo o lábio inferior ao desviar o olhar. — Ele não quer contato? — e me olhou de esguelha antes de acenar devagar.
— Ele prefere não se prender ao passado e se manter distante de tudo... de mim e de tudo o que eu represento pra ele... — ela hesitou por um momento, me olhando aflita e sinalizei para que continuasse, confirmasse o que eu já sei. — Eu... cometi um crime. Um erro e... não, não foi um erro. — sussurrou com a voz embargada. — Foi premeditado. Planejei por meses e em detalhes. Ele descobriu, achei uma carta dele no seu escritório depois que eu... terminei. Não pretendia me entregar pra polícia, iria fugir para outro país antes que encontrassem o... ele... e então encontraria minha amiga depois de tratar meu problema psicológico, teria você e seu irmão de volta pra criar longe de tudo isso, mas eu apenas... pensei que isso me aliviaria do inferno que vivia, mas não consegui lidar quando encontrei aquela carta, ele sabia e... as drogas que usei para dopá-lo não funcionariam, ele apenas... permitiu que eu fizesse aquilo... — seu tom diminuiu enquanto a voz embargava pela dor. — Planejei tudo com tanto cuidado, mas não consegui lidar com o que veio depois... — e voltou a chorar, abraçando o próprio corpo trêmulo.
Esperei que ela se acalmasse, aquele desconforto no peito se misturando com outra sensação desagradável que nem sei nomear. Por isso Enrico mudou o testamento antes, sabia o que ela faria e não tentou parar isso. Vai ver estava cansado, depressivo, cheio de remorso pelo que fazia ou só era maluco mesmo.
Quando ela se acalmou, encarou as mãos no colo com uma expressão vazia por longos minutos.
— Me arrependo de muitas coisas... e realmente pensei que com essa carta, sem... respostas ou "por quê's" faria você vir... funcionou com seu irmão, então...
— E comigo também. Só que me deixou puto. — ela ergueu um pouco o olhar, que parecia divertido com isso.
— Já esperava por isso... também tem o temperamento dele, como seu irmão... você não... me odeia? Sabe o que eu fiz, eu... matei o seu pai... não parece surpreso com nada que eu te contei...
— Eu não me importo. Não o conheço e não sinto nada por ele. — ela ergueu o olhar outra vez, dessa vez parecia assombrada.
— Você... infelizmente se parece muito com ele... — sussurrou, quase voltando a chorar. — Não digo da aparência, seu irmão também tirou tudo dele, mas... o que você diz e como age... me lembra ele e aquela... frieza inabalável... — isso sim me deixou abalado, mas disfarcei. Não queria ser comparado com um estuprador maluco, nem com seu jeito. — Mas eu sei que não é como ele. É um bom garoto e tem uma boa índole. É inteligente e muito capaz... e... soube que tem alguém agora...
— Aquele velho fofoqueiro te contou? — nem o Henri ele deixou de fora das fofocas dele?
— E-eu que insisti pra saber! Alberto me fez um grande favor todos esses anos e... sempre insistiu pra que eu ao menos deixasse de ser tão covarde e o procurasse... mas eu... me contentaria apenas em ouvir uma ou outra coisa de vez em quando... soube que sempre foi o melhor da classe, com notas impecáveis e... e agora está fazendo medicina... — sorriu e franzi o cenho, confuso. Eu estou fazendo o quê? - e que se casará em breve e...
— Espera, ele disse que eu estudo medicina? — e ela acenou, sorrindo. Olha que velho sem vergonha! — Eu não... — parei de falar, mordendo o lábio inferior pra me impedir de desmentir aquele velho descarado. É melhor deixar ela achar que estou me formando em alguma coisa e não só perdendo tempo de emprego em emprego, como o velho costuma dizer. — Eu... vou me casar sim. — murmurei entredentes, o rosto cheio de sardas do Henri me veio em mente e, pelo menos isso, é verdade.
Ela me encarou divertida e demorei um segundo pra lembrar que não estou com lentes, sou um livro aberto pra essa estranha e senti minhas orelhas esquentarem enquanto espremia os lábios.
— Oh, deve ser alguém muito especial. — sorriu contente, se ajeitando um pouco na cama, parecia mais frágil e fraca do que antes. — Ama muito ela? Ou ele? É um ômega? — acenei, sentindo meu rosto esquentando agora, não sei por quê e ela sorriu mais, seus olhos azuis deixando a melancolia, pareciam mais bonitos. — Seja um bom alfa, Ni... digo, Eduardo. Não deixe ele tocar água fria, nós ômegas temos a pele muito sensível, o frio é sempre terrível. — e soltou um suspiro suave. Ah... por isso ele reage de forma exagerada pra água fria? — Ele era assim no começo... não tinha amor no nosso matrimônio, mas ele era muito gentil... infelizmente aquela... condição bizarra dele o fez definhar e enlouquecer... — pisquei atordoado, vendo seu olhar cada vez mais sombrio.
— Condição? Que condição? — senti minhas mãos começarem a suar frio, meu coração acelerando ao pensar que meu pai tinha o mesmo defeito que eu.
— Ah... não sei explicar, ele era um alfa muito forte... seus cios eram muito intensos, eu fui escolhida pela família dele por nossa alta compatibilidade, mas ainda não servi de muita ajuda... nosso vínculo não era forte, não tínhamos sentimentos pelo outro e com os anos, sua demência piorou, ele se tornou agressivo, irracional e... me feria... sempre se deixando levar por instintos agressivos.
Mesmo com uma alta compatibilidade, ainda posso definhar e enlouquecer depois de formar um vínculo?
— E ele conseguiu. Eu o odiei. Desprezei. Quando ele me forçava eu... não pensei que acabaria grávida de novo... — parou de falar de repente, como se percebesse o que dizia, mas não precisei que terminasse pra entender seu olhar de culpa e vergonha.
Eu sou fruto de um estupro.
E no instante em que pensei nisso, senti aquele desconforto aumentar, minhas mãos tremeram e um arrepio de repulsa desceu pela minha espinha.
Fui estuprado antes.
Diversas vezes. Por anos no orfanato, por uma funcionária e depois por dias em um carro sempre seguindo viagem por uma voluntária, drogado ou não e isso me faz sentir nojo constante de mim, do que fizeram comigo e me sentir patético o tempo todo por não conseguir reagir a isso. Quis rir ao perceber que desde o início, nasci errado.
Sei que eu não amaria um filho de um estupro. Não conseguiria olhar pra ele e sentir o menor amor ou afeto, sentiria que é uma aberração vinda de um....
Engoli seco, sentindo meu peito arder, se comprimir e doer, meus olhos começaram a arder e embaçar e ela, com um olhar cheio de culpa e dor, estendeu a mão querendo me tocar, mas recuei, sentindo seu toque queimar como fogo.
Um fruto de um maldito estupro.
E ainda ousei vir com a mesma cara e temperamento daquele filho da puta. E a mesma anomalia alfa, uma aberração nojenta desde o começo.
Comecei a recuar, sem querer ficar perto dela servindo de lembrete constante daquilo, mas ela me estendeu as mãos, me olhando meio em pânico.
— Nicolás... por favor, não vá embora, eu... — ela sussurrou, a voz trêmula embargando. — Por favor, eu... apenas me ouça... eu... não pretenda contar isso, apenas... escapou... — parou por um momento, tentando secar o rosto e respirei fundo, soltando o ar devagar, me arrependendo de ter vindo. — Nico, por favor, me escute... — suas mãos ainda estavam estendidas e por um momento, quis muito só fugir daqui, parar de me sentir como um lembrete ambulante do cara que ela matou, mas não posso fazer isso só por saber que sou o resultado de algo que eu abomino. — Eu temia que um de vocês herdasse aquela condição dele... seu pai... era uma dessas anomalias. Sua avó também. E pelo que sei, é algo de família. — murmurou com pesar. — Ele esquecia de muitas coisas e então, se tornava agressivo... cedendo para aqueles instintos, cada vez mais impulsivo e... infiel... eu queria ser de ajuda, mas chegou ao ponto em que queria... fazer ele sofrer tudo o que sofri... — soluçou, antes de me olhar meio em pânico e senti um aperto ainda mais doloroso no peito, tentando controlar isso, manter sob controle qualquer resquício de uma possível crise, mas não conseguia. Eu não tô nada sob controle agora.
É congênito.
Um filho meu também seria uma anomalia como eu e eu prefiro que essa porcaria morra comigo do que passar pra frente essa anomalia, não conseguiria ver um filho meu sofrendo com essas dores durante o cio, revirando em cada canto atrás de alguém e saber que ele pode viver com o mesmo pavor de matar quem ama por causa de um deslize.
Não queria mais ficar ali, ouvindo qualquer outra coisa, mas vir aqui seria inútil se for embora sem ouvir tudo o que ela tem a dizer.
— Eu... mencionei antes que meus sogros levaram meus gêmeos depois que eles nasceram... — neguei e ela respirou fundo, continuando: — Eu... b-bem, eles os levaram minutos depois de nascerem. Eu mal os via, fora algumas raras reuniões familiares, meu esposo não permitia, dizia que já não eram meus filhos, minha sogra os registrou como adotivos dela e... e meu esposo permitiu, dando guarda total á eles, naquela época, como ômega, eu não podia ir contra a decisão dele. Eu estava com uma séria depressão, quando soube que esperava você, eu soube que não o tomariam de mim quando nascesse, então eu... comecei a voltar a vida. Era meu bebê e eu poderia cuidar de você, mas quando estava com sete meses de gestação, e-eu soube que minha filha, Alice, sofreu um acidente doméstico e faleceu já havia semanas e nunca me contaram, e pelo choque eu sofri um aborto e esse foi o pior dia da minha vida. Pensei que você não sobreviveria, que perderia dois filhos que nunca segurei nos braços. Felizmente você sobreviveu depois de meses em um hospital, mas eu sequer pude ir ao funeral da minha menina, e isso me corroía por dentro. Eu... entrei em uma depressão terrível, nada me feria, nada me abalava, até me devolveram Be... s-seu irmão pra tentar me acalmar, mas era tarde, aquela família já havia me destruído e eu me sentia morta. Sentia que enlouqueceria, queria... e-eu planejava fazer com você. Percebi que estava louca quando levei você e seu irmão para a piscina e tentei afogar nós três, pensava que quando encontrasse Alice, poderíamos ser felizes, só nós quatro. — cobriu o rosto com as mãos, chorando mais alto. — Com o seu choro e o desespero de seu irmão pra viver, eu voltei em si e percebi que estariam seguros longe de mim. Mesmo que eu me livrasse de Enrico, ainda sentia que não podia viver, mas era incapaz de ir sem vocês, então eu... e-eu fiz o que fiz. E eu lamento tanto, tanto, tanto... fui fraca... e me tornei um perigo para todos vocês...
E continuou a chorar, tremendo de forma incontrolável. Demorou longos minutos até que se acalmasse e como segui em silêncio, processando todos esses absurdos que ela viveu, ela tentou secar o rosto, adquirindo uma postura mais tensa ao me encarar.
— Não o chamei para pedir perdão, sei que não mereço. — seu olhar era sério, o rosto ainda úmido pelas lágrimas, o nariz e o canto dos olhos vermelhos. — Nem mesmo para tentar formar um vínculo, como Alberto pensa, sei que é tarde e não mereço isso. Apenas queria vê-lo, mesmo que uma vez. Ouvir sua voz e saber como é. Mesmo que seja a cara dele, tenha sua voz, temperamento, altura e até a condição anomalia, você não é ele. É só o meu... bebê... — sussurrou, soltando um suspiro trêmulo, fechando os olhos por um instante e lentamente se acalmou, respirando fundo e se impedindo de chorar outra vez. — Por favor, não se sinta mal por isso... não é sua culpa... e seu irmão agora quer esquecer tudo e... nunca me contou o que viveu na casa dos avós ou como Alice realmente faleceu, mas os odeia tanto quanto eu... ele não quer se envolver com nenhum de nós, me dói pensar que vocês estarão afastados... mas... bem, pensando que nunca se conheceram antes, é minha culpa que estejam separados agora... — sua voz era ainda mais fraca e pisquei atordoado, percebendo o quão pálida estava.
Comparado bem, sua palidez do início a fez parecer até saudável agora, seus lábios estavam roxos, sequer parecia tragar o ar direito e, entorpecido, observei como ela perdia aos poucos as forças e se recostava na cama com dificuldade.
— Fico feliz que tenha vindo. — murmurou. — E me desculpe por contar coisas tão terríveis... queria que nosso encontro fosse mais leve... ouvir você me contar do meu genro ou algo que gosta de fazer... — sorriu fraco e a observei se ajeitar na cama outra vez, parecendo desconfortável. — Confesso que me iludi um pouco, pensei que você viria e me deixaria te tocar, abraçar e... mesmo que não me perdoasse, eu conseguiria explicar as coisas menos... feias... haha... acabei contando todos os absurdos possíveis e... — me aproximei um pouco, talvez sentindo um pouco de pena dela.
Ômega nenhum deveria passar por tudo isso. Os sogros dela são monstros, roubando seus bebês assim e então, o alfa sendo um esquizofrênico perturbado, ela não merecia nada disso. É uma vítima de tudo isso e daquela família doente.
Entrei aqui sentindo indiferença e agora só sinto culpa e nojo de mim mesmo por existir, por ter nascido daquilo que eu mais abomino, por ser uma cópia do filho da puta que destruiu essa mulher antes.
Contrariando minha decisão de não me envolver ou demonstrar algum sinal de empatia, me vi me aproximando dela, me abaixando ao lado do leito e estendendo a mão, ignorando um arrepio de repulsa ao tocar em sua mão, seus dedos frios e ossudos tremendo ao primeiro contato, seus olhos se arregalando por um momento, antes de me encarar cheios de emoção.
— Lamento por tudo o que você passou... não vim pra te dar perdão ou qualquer coisa assim e... Alberto mentiu pra você. — ela piscou devagar, parecendo surpresa e antes que dissesse algo, respirei fundo, decidindo só contar a verdade.
Não sou estudante de medicina porque cedi a vaga, eu já me esqueço das coisas e minha mente é uma confusão. Tenho oito cios por ano, eu nunca conseguiria exercer uma profissão de tão alto risco e comprometimento sem colocar várias vidas em perigo. Apesar de chocada, ela me encarou por um instante, dando um sorriso suave ao apoiar a outra mão por cima da minha, fazendo um carinho suave.
— Obrigada por me contar... eu... mencionei antes com ele, que adoraria que você tivesse uma profissão boa como essa... que salvasse vidas, talvez ele tenha mentido pra me confortar já que não tenho muito tempo... — e tragou o ar com força, um sorriso reconfortante surgindo nos lábios. — Mas não quero que se sinta pressionado a fazer algo que não quer... melhor, você quer fazer algo? É óbvio que quer, é jovem ainda, deve ter muitos planos e... — engoli em seco, sem saber como explicar que qualquer plano que eu tenha, vai ser arruinado por essa maldição.
Ela queria saber qualquer coisa sobre mim e não sei porquê acabei contando as coisas chatas que gosto de fazer, coisas que uma idosa também faria, além de querer saber um pouco sobre o Henri, além de mencionar que queria abrir um estúdio de tatuagens e como pretendo fazer isso, algo que não contei pra ninguém ainda.
— É um bom plano... se é algo que quer fazer, faça. Não fique esperando aprovação dos outros, Nic... Eduardo. Ainda mais daquele velho cabeça dura, ele nunca vai aprovar. A vida é sua, não viva pelos outros como eu vivi, esperando aceitação e suportando todo tipo de abuso, querendo ser reconhecida por quem não merecia. — sorria, estendendo uma mão como se quisesse tocar meu rosto e me vi inclinando em sua direção, permitindo que fizesse o que queria.
Seus dedos primeiro tocaram meu queixo, antes de deslizar da minha testa aos meus olhos, tocando meu nariz, boca, queixo outra vez, apertando suavemente minha bochecha antes de seu indicador tocar onde surgem as covinhas nas minhas bochechas, ainda sorrindo enquanto me encarava.
— Lembro que tinha covinhas adoráveis cada vez que sorria pra mim... — sua voz era fraca, apertando de novo onde as covinhas surgem e me vi sorrindo, seu sorriso aumentando enquanto apertava minha bochecha, começando a falar que sua irmã mais nova também tinha covinhas assim e até começou a contar algumas histórias de sua infância com um ar nostálgico, mas como estava cansada, adormeceu enquanto falava sem soltar minha mão.
Em algum momento, sua respiração pareceu mais lenta e calma e observei sua expressão cada vez mais relaxada. Um suspiro suave escapou de seus lábios, sua mão ainda segurando a minha como se não quisesse que eu me afastasse.
Por longos minutos, a encarei sem emitir um ruído, uma sensação esquisita de irrealidade me consumindo enquanto processava o lance de que essa mulher é a minha mãe. E que por mais torta que seja essa história toda, ela me amou mesmo depois da forma em que fui concebido, algo que eu com certeza não seria capaz.
Hesitei por um instante, observando sua mão apoiada contra a minha no colchão, sua pele quente contra a minha me causando desconforto, mas ainda não tive coragem de tirar sua mão quando de repente, alguém me puxou pra trás, várias pessoas a cercaram, os sons pareciam distantes e só então me dei conta do som do monitor cardíaco soando alto, um apito longo, sem alterações de um batimento, tão alto que parecia ressoar no meu cérebro e recuei, atordoado, parando perto da porta, uma médica subiu no leito, por cima de seu corpo e começou a pressionar seu peito com as mãos, tão forte que pensei que quebraria suas costelas.
Pareciam dizer algo, alguém me empurrou pro lado e levaram um desfibrilador, tudo parecia distante, irreal, meu estômago se revirou outra vez e cobri os lábios, me impedindo de vomitar, não quero ver.
Ela estava fraca e ainda assim passou por muitas flutuações emocionais por minha culpa... outra pessoa que morre por minha culpa e eu estava tão absorto pensando que não percebi...
No instante em que me virei, me deparei com Benjamin na porta, seus olhos arregalados encarando a cama e senti o ar escapar dos meus pulmões, o som alto dos pneus derrapando na pista me veio em mente, o clarão que surgiu, o som da batida e o impacto violento que arremessou o carro fora da estrada e então, o calor do fogo, o gosto do sangue, o cheiro da carne humana sendo queimada junto do carro, seus gritos e seu choro desesperado, tudo vindo de uma vez me deixando paralisado, meu coração parecia prestes a explodir e, quando seus olhos se fixaram nos meus, em choque, ouvi a a voz de um dos médicos.
— Hora da morte, duas e vinte e... — não terminei de ouvir.
Escapei do quarto desviando de Benjamin, o pensamento horrível de que é isso que eu causo martelando na minha mente enquanto avançava pra entrada da clínica à passos largos, eu sou um desastre, uma maldição, e se eu não tivesse vindo, ela ainda teria mais algum tempo, eu não deveria...
Parei de andar, mal conseguindo respirar, tentei secar as lágrimas outra vez, nem sei exatamente quando surgiram, detesto chorar. Sempre que começa, é difícil parar, é como abrir uma represa, tudo o que não chorei nos últimos oito ou nove anos jorrando de uma vez como uma maldita enchente e mesmo desafogando das lágrimas, a dor não diminui, ela só piora e se intensifica e por um momento, pensei que meu coração ia parar.
Irritado, sequei o rosto usando a barra da blusa, podia ouvir alguém me chamando, dizendo algo, então apressei o passo, não querendo ver mais ninguém e no instante em que saí da clínica, uma luz forte surgiu de repente, minha visão indo pra casa do caralho e voltando.
Mal enxerguei alguma coisa e outro clarão me cegou, o som dos flashes e vozes falando ao mesmo tempo me deixaram atordoado, ainda mais quando percebi que não conseguia dar um passo pra frente ou sequer recuar, cercado por pessoas e câmeras, vozes falando em uma enxurrada confusa de palavras ao mesmo tempo.
Comecei a abrir caminho, os afastando até que um deles socou um microfone na minha cara.
— Como se sente a respeito do terrível assassinato do seu pai? Sente algum remorso da sua mãe por isso? — uma mulher começou, outros microfones surgindo, mais flashes.
— Esteve em contato com Antonella Castellani por todo esse tempo?
— Por onde esteve nos últimos vinte anos?
— Teve contato com seu irmão, também desaparecido? O que Benjamin pensa a respeito da assassina do pai de vocês?
As perguntas pareciam não ter fim, ainda podia ouvir o som daquela máquina ecoando na minha mente, os médicos se aglomerando ao redor daquela cama tentando reanimar minha mãe, Benjamin e seu olhar cheio de ódio por mim, a consciência de que sou um mal desde antes de nascer e que talvez, me torne louco como meu pai e acabe ferindo o Henri, tudo isso vindo à tona, a cada flash, as vozes dos repórteres se misturando, como abutres em cima de uma tragédia, tudo parecia apenas um ruído distante enquanto sentia meu peito sufocar.
Quando tentei avançar onde minha moto deveria estar, bloquearam meu caminho outra vez e me senti encurralado, como naquela época depois de ser sequestrado do orfanato, a mídia me cercando quando deixei o hospital, querendo saber como seduzi aquele ômega e o matei jogando o carro contra um caminhão, mais memórias horríveis que seguiram depois daquele acidente me causando náuseas.
— Como é sua relação com seu irmão diante de toda essa... — antes que aquela pergunta se concretizasse, senti todo o meu corpo gelar, uma onda fria se espalhou em todas as direções enquanto sentia a dor se misturando à culpa e a confusão, sequer consegui controlar o que acontecia quando minha essência se expandiu, o ar se tornou denso, quase irrespirável.
Me apressei em direção á minha moto, aquela multidão de abutres desmaiando, corpos caindo sob corpos e não esperei pra ver o que viria a seguir, subindo na minha moto e ao ligá-la, só tive tempo de ver um vislumbre de Benjamin surgir na porta da clínica, seus olhos arregalados olhando para as pessoas caídas e então, olhando ao redor antes de me encarar e cerrei a mandíbula, me arrependendo por ter vindo ao acelerar.
O ouvi chamar meu nome, "Nicolás", mas não conseguia pensar em nada além de fugir.
Fugir daquela clínica, dos repórteres, do meu irmão, da culpa que ele jogava em mim e de seu ódio e de "Nicolás", e todo o resto que essa identidade representa.
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