24 | Voltando a Ser o Vizinho Pelado
Cadu
12/02/2018
Segunda-Feira, 04:49
Eu morri.
Encarei a tela da tevê enquanto me perguntava se perderia tudo o que reuni correndo por aí com a ruivinha cabeçuda do jogo ou até mesmo reiniciaria tudo e teria de fazer do começo e encarei o Henrique em busca de alguma resposta, mas ele estava dormindo.
Verifiquei as horas no relógio, quase cinco da manhã e não me sinto nenhum pouco bêbado.
Henri arranjou um monte de bebidas depois que o Nando e aquele porco foram embora e depois de tanta perturbação, aceitei beber com ele só pra ver se depois disso ele desiste já que eu não fico bêbado. Tomei vodka, uísque, vinho, cerveja, nem sabia que ele tinha tanta bebida escondida nessa casa e ele nem bebeu muito, mal terminou duas garrafas e ficou tagarelando o tempo todo sobre sua época de escola onde só sabia aprontar além de não estudar nada.
Henri passou a maior parte da noite tagarelando sobre sua vida. Sobre como já foi modelo, já foi medalhista de karatê, já foi preso por escalar a Torre Eiffel ou por dirigir sob efeito de LSD, parecia até me contar suas tentativas de gabaritar o código penal. O bom é que ele fala por dois, igual aquele alfa bocudo que o Nando arrumou.
Quando Nando surgiu na minha porta ano passado, marcado e semi-falido pelo rompimento do contrato com a empresa que o assessorava na época, nem pensei muito quando o acolhi. Pelo que me contou, o assistente que a empresa arranjou pra ele o drogou durante uma festa e tentou empurrar ele pra cama de um dos CEO da empresa, mas ele conseguiu fugir e ainda assim, acabou marcado por outro alfa que ele não tinha ideia de quem era.
Tentou reunir provas disso pra romper o contrato, mas a empresa virou as coisas e ainda o ameaçaram, acabou com o contrato rompido e ele pagando uma multa absurda por isso, ficando praticamente falido, então saiu de lá empobrecido, falido, marcado e enganado.
Essa nem foi a pior parte, claro que não, ele sofreu muito mais pela abstinência da marca, era dias chorando e tendo surtos, até descobrir que esperava o Bê, aí sim foi tenso. Queria abortar de qualquer jeito e eu teria pago pelo procedimento se ele não tivesse se arrependido e voltado atrás.
Porra, apoiei ele nessa merda toda, até paguei pra conseguir manter o feto já que não tinha a essência do alfa dele pro bebê se desenvolver e o Nando ainda sofria com a abstinência, o tratamento pra ele conseguir manter o bebê foi uma fortuna, gastei todas as minhas economias.
Pretendia comprar um terreno e construir um estúdio de tatuagens, além da minha casa, mas adiei todos os meus planos só pra ver meu afilhado nascer e aí vem o Nando e simplesmente casa com o filho da puta que fez parte do inferno que ele viveu ano passado. E ainda deixa ele segurar meu afilhado! Tanto absurdo depois de tudo, traição tem nome e é isso que rolou aqui ontem.
Aquele ordinário ainda veio garantindo que cuidaria bem deles, mas onde ele estava ano passado enquanto meu irmão sofria de terrores noturnos, quase definhava de fome, crises de ansiedade, pânico, abstinência e quase afundou em depressão? Ah, mas ele me paga... Nando vai ver só uma coisa...
Ajeitei o Henrique no sofá pra ele não ficar todo dolorido quando acordar e até busquei um cobertor pra ele, antes de ir tomar banho pra poder ir pra academia. Fiz um bolo enquanto esperava dar seis horas, já não vale a pena parar pra dormir e mesmo se tentasse, não conseguiria.
Essa queimação horrível pelo corpo persiste desde o evento. Até tomei aquela maldita poção achando que iria melhorar, mas só piorou, além de ter um gosto amargo horrível que ainda persiste na boca. Nem todas as bebidas que o Henrique me fez tomar tirou o gosto e nem bêbado eu fiquei.
Além do gosto ruim da bebida, nem pra embebedar ela serve, parecia até estar tomando suco. Um suco ruim, de caju ou qualquer coisa assim.
Depois de guardar o bolo e o recheio pra terminar de fazer depois de voltar da academia, saí da cozinha pra buscar minhas coisas quando vi Henrique seguindo pelo corredor com a coberta na mão, que arrastava no chão e enquanto ele bocejava, parou, me olhando por cima do ombro com aquele ar distante e sonolento.
— Bom dia, filhote de cruz credo. — murmurou. — Já vai pra academia? — acenei, enquanto ele esfregava o rosto com uma mão. — Espera aí. — e se enfiou no quarto dele, fechando a porta e deixando a coberta pra trás.
Peguei a coberta e a dobrei, antes de levar até o lavabo e voltei pro quarto pra arrumar as coisas pra sair, mas senti meu nariz ficando úmido ao começar a sangrar de novo. Me enfiei no banheiro pra limpar e demorou alguns minutos até parar de sangrar.
Já estava reconsiderando a ideia de ir a academia por além de estar meio bêbado, estou dolorido até onde nem sabia que podia doer, mas quando saí do banheiro, Henrique saiu do quarto usando roupa de academia, o cabelo preso no topo da cabeça e até carregando uma bolsa de mão.
— O que você está fazendo?
— Indo treinar. — sorriu, ajeitando os óculos no rosto. — Vamos? — estava até animado. Como não ir depois dele se arrumar todo?
— ... É, vamos. — nem vou discutir. Ele deu alguns saltinhos como se estivesse se aquecendo e até socou o ar enquanto eu abria a porta e me obriguei a parar e perguntar. — Por quê?
— "Por quê?" o quê? — piscou confuso com aqueles olhos enormes pra mim, inclinando um pouco a cabeça com uma expressão meio estúpida na face e fiquei tentado a beliscar o rosto dele só por parecer fofo nessa hora ingrata.
— Por que diabos está querendo se exercitar de repente? Se é pelo capiroto, relaxa, ele não me persegue na academia. Deve ser tão preguiçoso quanto você. Pode pegar seu notebook e seus lanchinhos, ninguém vai te julgar não. — eu vou, mas ele não precisa saber.
— Qual é, eu só quero seguir uma rotina saudável, me exercitar e praticar luta outra vez. Assim, se o demônio vier, só dou um soco nele e fujo! — até socou o ar de novo, mais animado do que pensei que estaria com a ideia de treinar. Já faz um mês que trabalho aqui e esse soco foi o mais próximo de um "esforço físico" que vi ele fazer. — Então vamos juntos pra academia, vou seguir o mesmo que você.
— Por que eu?
— Ué, você acorda cedo, faz exercício, trabalha e não parece cansado o resto do dia, como uma maldita máquina. Algum segredo deve ter pra essa resistência bizarra aí, talvez te seguindo eu vire monstro também. Então quando encontrarmos quem te amaldiçoou, podemos subornar, espancar ou implorar misericórdia caso as outras duas opções falhem! — seu sorriso era enorme.
— Admiro seu entusiasmo. — murmurei, sem vontade nenhuma de contestar essa baboseira aí.
— Quando saí do orfanato eu fiz balé por alguns meses, era muito agitado e minha mãe estava ficando maluca comigo correndo de lá pra cá, daí me colocaram na dança pra gastar um pouco de energia, mas eu odiava fazer balé, doía pra caralho e aí fui estudar fora, pra fugir dela e do quarto cor de rosa que ela montou pra mim quando soube que eu era um ômega e comecei a lutar desde os quatorze. Participei de um monte de competições de karatê antes e até tinha medalhas, mas larguei tem uns dois anos já, então nunca voltei a treinar, mas todo dia você sai daqui pra treinar de segunda a segunda, faz parecer que eu tô morto jogado no tapete da minha sala e só falta enterrar, porque você faz tudo de lá pra cá e eu nem desço mais na portaria pra pegar um pacote, o porteiro vai achar mesmo que eu morri e... ei, está me ouvindo? — já estava no terceiro lance de escadas quando percebi que ele está me seguindo nas escadarias só pra continuar tagarelando.
Tudo o que ele disse, entrou por um ouvido e saiu pelo outro, se me perguntar qualquer coisa, vou nem saber do que ele tá falando agora. Sei que fez karatê e fugiu pra fazer balé em algum lugar porque a mãe o odiava em casa porque era um morto no tapete pra enterrar. Eu acho.
— Henri, eu ouvi tudo o que você falou, mas eu não tenho ideia do que você está falando. Não gosto de bater papo depois que acordo. — ainda mais por quê eu nem dormi e minha cabeça está doendo.
— E eu aqui empolgado falando... — murmurou e respirei fundo, soltando o ar devagar. — E se eu falar mais baixo? — sussurrou.
— Ainda vai me dar vontade de afundar sua cara no asfalto.
— ... Okay. — acenou, recuando alguns passos pra longe de mim, ficando quase um lance de escadas inteiro de distância. — E se eu estiver fora do alcance das suas mãos e falando mais alto? — e realmente falou mais alto. Entrecerrei os olhos, o encarando e ele perdeu o sorrisinho, acenando rápido e passando os dedos nos lábios, como se fechasse um zíper e bufei, voltando a olhar pra porta. Vai falar de novo em menos de cinco segundos. Um. Dois. Três. Qua... — Ranzinza. — sorri, ele rindo junto e voltando a tagarelar, ignorando o que eu acabei de dizer só por que soltei uma bufadinha de ar pelo nariz.
* * * (=^・ェ・^=) * * *
Segunda-Feira, 08:41
Dois anos sem se exercitar é tempo suficiente pra perder o costume, sei disso. Fiquei só quatro meses sem treinar e precisei me readaptar com um treino mais moderado e ir aumentando lentamente pra não ter nenhum dano no meu corpo. Só por isso não vou ficar zombando do Henrique por não dar conta de um treino leve.
Observei como ele lentamente subia enquanto eu segurava seus pés pra ele parar de escorregar e fazer corpo mole. Sua cara era a de quem viu pessoalmente a face da morte, todo suado, vermelho, arfando, uns fios de cabelos desgrenhados do rabo de cavalo. Deitado no chão, até parece que fez muita coisa.
Quase fiquei com pena vendo que ele não acompanhava nem uma rotina pra iniciante, pulou números sem vergonha alguma enquanto fazia flexões, bateu a testa no chão várias vezes e na esteira, correu só um quilômetro, quase cuspindo os pulmões de tanto que arfava.
Continuou praguejando mesmo durante a aula de luta e só calou a boca quando o arrastei pro vestiário, onde ele retornou a vida.
— Finalmente vamos embora! — sorria alegre como se não estivesse a beira da morte desde que começamos a treinar. — Vamos tomar sorvete antes de voltar pra casa?
— Vai mesmo levar a sério o treino?
— Claro que sim! Quando eu tiver essa resistência bizarra que você tem, nada vai me segurar...
"Ao invés de usar os punhos, ele poderia usar os puns, são mais mortais que um soco."
Sorri ouvindo Puf chiar de algum canto e Henrique sorriu mais, como se eu estivesse rindo do que ele disse e nem fiz questão de repassar a provocação. Já ia tirar a bermuda quando vi Henrique descer o olhar e ficar me encarando quase sem piscar. Enrolei mais um pouco e ele voltou a encarar meu rosto.
— Não vai tirar não?
— É que você encarou tanto que eu acho que vai cair se eu realmente te mostrar.
— É que eu estou curioso.
— Sobre...? — ele ergueu o olhar, me encarando cheio de curiosidade.
— O Fael disse que alfas são diferentes, eu quero ver se é verdade.
— Diferente o quê?
— Você sabe já que é alfa. — sussurrou num ar conspiratório e entrecerrei os olhos.
Eu não sei de nada.
E acho que quero continuar sem saber, então decidi terminar de tirar a roupa lá na ducha. Só carreguei minhas coisas pra dentro ignorando Henrique que ainda falava alguma coisa sobre alfas.
Quando saí, Henrique estava entrando, com uma cara suspeita que ignorei. E ele nem demorou, pois eu mal terminei de me vestir e ele já se apressava pra fora todo vermelho, ainda usando as roupas.
— Vamos logo embora. — guardou as coisas apressado na própria bolsa e saiu quase fugindo.
Terminei de vestir a blusa e puxei a mochila do armário, seguindo pra saída também. Só consegui alcançar ele quando ele já estava na rua.
— Não tinha toda essa energia enquanto treinava. — sorri e ele me olhou por cima do ombro, antes de bufar e continuar andando. É, não está pra gracinha. — Rolou alguma coisa?
— Vai ao mercado? — acenei sem entender essa mudança brusca no humor dele. Estava felizinho, saltando feito um cabrito e falando sem parar antes... — Vou voltar pra casa, pode ir sozinho. — e acelerou o passo, nem me esforcei em seguir. Eu hein...
Resolvi não demorar muito no mercado, comprei só o que precisava e acelerei o passo pra saber o que ele tem e quando entrei no apartamento, encontrei o Henrique no sofá, fingindo que não saiu fugindo da academia depois de me seguir, tagarelar na minha cabeça o tempo todo e me deixar plantado lá feito bosta de cachorro.
Tentei falar com ele e saber o que deu nele, mas me ignorou e se trancou no quarto pelo restante do dia. Não sou bom puxando assunto e já ouvi que sou bem... direto e grosseiro, mas não é como se conseguisse pensar em outra forma de abordar alguém, então não tenho ideia de como encurralar ele sem parecer que estou intimidando.
Deixei ele em paz, sentindo um pouco de falta da perturbação sem fim falando de séries que eu não tenho ideia do que são, ou celebridades que não conheço e fofocas de influenciadores que nem sabia que existiam e nem mesmo veio atrás de mim com a mão na barriga pedindo pra ser alimentado fazendo a maior cara de coitado.
Quando deu meu horário, arrumei minhas coisas pra ir embora, não era muito e não pretendo levar as roupas que o Henri comprou antes. São bem grandes e de marca, mas ainda é muita coisa pra levar além de ser meio caras, uma camisa ali quase quinhentos reais. Me sentiria mal usando essas peças já que posso ser atropelado, cair de escadas, ser borrado de bosta de pombo da cabeça aos pés á qualquer momento, arruinaria qualquer roupa ali, melhor não arriscar.
Ao chegar na sala, ele estava grudado na porta, os braços cruzados e a face emburrada.
— Você não vai não.
— Henri...
— Não, é sério! — me olhou aflito. — E a sua maldição? E os bichos te perseguindo? E... e-e se sua nova casa pegar fogo? Está mesmo disposto a colocar seus vizinhos em risco? Hein? — suspirei, ajeitando a mochila no ombro. — E nem está levando suas coisas, só essa mochilinha que você veio e faz parecer que eu estou te expulsando! Pode ficar até arranjar toda a mobília...
— O lugar já é mobiliado.
— Ela é uma estranha, Cadu...
— É uma idosa, Henri. Um casal de idosos. O que poderão fazer contra mim? — ele bufou, olhando ao redor outra vez, como se procurasse mais argumentos na mesa do telefone ou na tela da tevê.
— Mas você precisa mesmo ir?
— Tá com medo de morar sozinho, Henrique? — debochei e ele fez careta. — Anda, sai daí.
— Vai ter de carregar, pois eu não-AH! — berrou quando o segurei pela cintura e o ergui, o jogando no ombro feito um saco de batatas. — CADU!
— Você quem pediu, fica quieto. — abri a porta e saí do apartamento dele. — Não disse que queria ver? Então vamos, vou te levar pra ver meu cafofo.
— Me larga! — se debateu, dando uns soquinhos nas minhas costas e tentando escapar, mas já estava no oitavo andar das escadas quando ele finalmente se aquietou e começou a resmungar que eu era um maluco tirânico, sequestrando ele assim.
Continuou reclamando mesmo quando saí na portaria, o porteiro nos cumprimentando meio esquisito quando avistei um carro parado no meio-fio e a porta se abriu. Nando surgiu ali, usando óculos escuros e uma roupa cara, com um ar de burguesinho.
— Demorou.
— Meu senhorio esqueceu que existe a Lei Aurea. — brinquei, soltando Henrique no chão e abri a porta de trás do carro do Nando pra ele entrar. — Anda, Henri. Se não entrar, vou te deixar pra trás.
— Eu tô de pijama, seu... — reclamou entredentes e sorri ainda mais, vendo aquele pijaminha longo amarelo cheio de desenhos de coelhinhos e uma touca branca na cabeça dele. Ainda tem umas pantufas com orelhas de coelho enormes e até um rabinho onde fica o calcanhar, todo infantil.
— Está uma gracinha, combina com você.
— É claro que combina, eu sou lindo, tudo combina. — empinou o nariz, cheio de despeito.
— Parem de flertar e entrem de uma vez. — Nando fez careta e Henrique revirou os olhos, entrando no carro resmungando que não tinha flerte nenhum.
Eu teria entrado no banco de trás também se soubesse que meu afilhado estava na cadeirinha de segurança ali atrás e tive de aturar o Henri brincando e conversando com ele o caminho todo e soltando um "oh, você me ama mais do que seu padrinho, não é?" toda hora enquanto Nando ria da minha cara.
Quando finalmente estacionou na frente da casa da dona Carmen, lá estava a dona parada na entrada e olhando ao redor. Ao descer do carro, vi sua expressão se iluminar e um sorriso enorme surgir nos lábios.
— Dudu! — sorri também, recebendo seu abraço, antes dela recuar um pouco, cumprimentando o Henri.
Nos nossos poucos encontros do mercado, ela disse que tinha uma quitinete livre em cima da casa dela e era difícil achar um inquilino que não causava problemas, o último saiu sem pagar dois meses de aluguel e ainda roubou alguns dos móveis que já deixavam no lugar.
Acabei trocando número com ela no sábado de manhã e de noite, vim dar uma olhada. Ela e o marido (Josué) pareciam de acordo em alugar pra mim, segundo ela, eu "salvei" ela e fiz companhia pra ela num momento assustador como aquele, então arrumaram toda a papelada pra alugar isso rápido e nem pediram pelo calção.
E ainda diminuíram o valor do aluguel, ou pelo menos tentaram. Como se eu fosse recusar, uma casa perto de um parque, de um mercado, de um posto e ainda há menos de uma hora de ônibus até a casa do Henri, seria até burrice recusar.
— E esse seria...? — ela olhou curiosa pro Nando, que tirava meu afilhado do carro e enquanto apresentava ele como meu irmão, ela sorriu ainda mais e até fez gracinha pro Bê enquanto nos guiava pra dentro, insistindo pra que tomássemos café que ela fez, junto de um bolinho.
Ela contou tanta fofoca da vizinhança que vi os olhos do Henri brilhando de pura curiosidade enquanto eu me unia ao seu Zé, pra ficar observando esses três fofocando e comendo já que eu não estava com fome.
Depois, finalmente pude ir pra minha nova casinha com uma entrada separada. Como da primeira vez que vim, não tinha muita coisa na casa, as paredes brancas e o teto azul claro, o piso de cerâmica tipo madeira escuro.
Na sala tem duas janelas, uma que dá vista pro jardim na lateral da casa e a outra, pra varanda da entrada, onde tem duas cadeiras de jardim e vários vasos de planta, alguns suspensos e outros enfeitando ao redor do parapeito.
Na sala não tem muita coisa, um sofá azul escuro, um rack e duas estantes onde vou poder colocar meus livros, além de uma mesa redonda com quatro assentos em um lado, onde fica a divisória pra cozinha americana, que tem uns armários planejados e o fogão cinco bocas, além de uma geladeira.
Preciso comprar algumas coisas e abastecer essa geladeira, assim como os armários. Não tem utensílios de cozinha, apesar da dona Carmen ter colocado algumas panelas, alguns pratos, copos e talheres.
O quarto é espaçoso, o banheiro também, com um box. Só vou ter de instalar uma ducha com torneira, já que o chuveiro bate na altura do meu ombro e eu não estou afim de adquirir escoliose tomando banho todo torto. Precisei comprar uma cama também, já que a que tinha era pequena e entregaram hoje de manhã. Dona Carmen até colocou um jogo de cama novo e estava feliz me mostrando os bordados do travesseiro.
— Eu fiz às pressas quando soube que já viria morar aqui hoje, de sábado pra hoje, não ficou muito bonito, mas posso fazer outros melhores depois. — sorria.
— Eu também quero um travesseiro bordado. — Henri disse, pegando o travesseiro. — Vou levar esse pra mim, Cadu. Você consegue outro depois e...
— Nada disso, deixa meu travesseiro de crochê aí.
— Mas eu gostei desse. — ele abraçou o travesseiro. — Não devolvo.
— Se ele vai ficar com um, eu levo o outro. — e Nando pegou o outro e eu já ia contestar esse aparente roubo de itens na minha casa já empobrecida quando Nando usou a cartada que nunca falha: meu afilhado.
Disse que ele iria adorar o travesseiro como presente do padrinho e eu não consegui tomar do bebê meu travesseiro. Dona Carmen ria divertida, dizendo que faria outros pra mim depois e tive de me contentar em comprar outros travesseiros.
Mas eu só vivo rodeado de ômega folgado, sem vergonha e cara de pau. Cadê os fofinhos, dóceis e submissos que aparece em todo canto? Eu só fiquei com os possuídos mesmo.
Foram embora juntos depois do jantar carregando meus travesseiros, Henri furtando um vaso de planta da varanda, dona Carmen dando cacho de banana, goiabada e até pote de geleia de mocotó e Nando nem me deixou segurar meu afilhado, outra coisa pra adicionar nos meus rancores que eu vou me vingar.
Quando eu tiver um filho, ele não vai nem tocar nele. Talvez quando ele tiver vinte anos, vou deixar ele dar apertos de mão.
Pelo menos agora posso voltar a ser o vizinho pelado de alguém.
Quando me deitei pra dormir, ouvia Puf ronronar enquanto se embolava no meu cabelo e tentei ignorar as dores pelo corpo até sentir algo escorrendo pelo canto do meu olho. Não parecia lágrimas, nem lembro quando foi a última vez que chorei e quando passei a mão, senti que era algo espesso.
Ao erguer a mão diante dos olhos, vi uma gosma negra asquerosa sujando meus dedos.
Pronto, agora estou chorando petróleo.
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