20 | Nada É Tão Ruim, Que Não Possa Piorar
Cadu
10/02/2018
Sábado, 17:23
Até demorei um segundo pra assimilar que era realmente isso que sentia ao entender que aquela coisa está no meu corpo e aquele gesto foi claramente pra única pessoa que eu sei que ela quer matar.
Tentei correr para o estacionamento, mas como se não tivesse controle, atravessei as paredes e praticamente deslizei entre os carros, vendo aquela coisa bizarra arrastando meu corpo entre carro e outro e tentei pará-lo, mas além das minhas mãos atravessarem meu corpo, ele passou por mim como se não fosse nada.
Tentei pará-lo outra vez, puxar essa coisa pra fora do meu corpo, atravessando carros e, por um momento muito esquisito, o atravessei e caí no chão, afundando no piso, pude ver apenas um breu e me ergui outra vez, vendo como ele alcançava o carro do Henrique e erguendo a arma, a usou pra bater na janela do carro.
Não vi Henrique dentro do carro, mas considerando que todos desapareceram, aposto que ele está ali dentro sim. Tentei impedir aquele bicho de bater no vidro com a arma quando vi a arma cara do Henrique quebrando e, como um louco, ele fechou o punho e socou o vidro.
"Precisa tomar seu corpo de volta ou ele vai matar o nosso porquinho!" ouvi uma voz bem clara na minha mente e bufei.
Porra, o que é que eu tô tentando aqui então? Brincar de casinha?
Antes que tivesse alguma resposta, aquela coisa socou o vidro outra vez, vi com horror como meu pulso se dobrava de maneira antinatural.
"NÓS VAMOS MORRER!" o berro desesperado daquela vozinha na minha mente me trouxe de volta "SAI DESSE LUGAR E VEM AQUI NOS SALVAR!"
Acenei, mesmo não tendo certeza do que fazer e quando vi o vidro da janela do carro começar a ceder com os socos daquela coisa, um buraco se abrindo e então, ele enfiando a mão pelo vidro, cortando meu braço todo e antes que cortasse meu corpo todo, respirei fundo, tentando me concentrar naquela sensação esquisita de sair desse lugar bizarro e pude sentir como se atravessasse por uma barreira invisível e gelada, que desfez aquela escuridão que me rodeava.
De repente ouvi gritos, o alarme do carro, tudo soando tão altos e ensurdecedores que perdi o foco por um instante, aquela coisa tentava agarrar Henrique que estava gritando lá dentro, encolhido contra a outra janela e agradeci por essa coisa burra não saber que a chave no meu bolso destranca o carro.
Segurei o braço daquela coisa, o forçando a tirar a mão do carro e o empurrei contra o carro estacionado ao lado, seu corpo pesado amassando um pouco a porta.
Um rosnado grotesco saiu daquela coisa quando tentou avançar e o segurei pelos ombros, o empurrando contra o carro outra vez e o segurei pelo pescoço, pensando em tirar aquela máscara, mas a minha mão atravessou a máscara e pro meu espanto, realmente segurei algo, que se sobrepôs a cabeça do meu corpo.
Pude ver que segurava um outro rosto, que empurrei mais até que uma cabeça branca bateu contra o outro carro e finalmente pude ver seu rosto. Os olhos negros e vazios, a pele branca como giz, o cabelo preto e longo, escorrendo pelo corpo magro e ossudo.
Aquela coisa se debateu, abriu a boca, emitindo um som animalesco, revelando três fileiras de presas afiadas que expeliam uma gosma negra nojenta e não esperei que me mordesse, batendo sua cabeça com força contra o carro outra vez, o alarme do carro soando alto pra caralho, vai atrair o dono a qualquer momento.
A coisa se debateu mais, tentou voltar pro meu corpo, mas aproveitei que já tinha tirado a cabeça e puxei meu próprio braço, tirando aquela coisa de dentro do meu corpo e me vi caindo no chão como um boneco. Ainda segurava a cabeça daquela coisa sinistra quando ela tentou me morder, mas é mais fraco do que parece.
Por mais que se debatesse e tentasse me bater, seus golpes eram como os soquinhos de um gato.
"FINALIZA ELE!" ouvi aquela voz outra vez e franzi o cenho. Finalizar?
"ARRANCA A CABE...!" não esperei ele terminar de falar, prendendo o maxilar daquela coisa com uma mão e com a outra, puxei sua cabeça na direção contrária, a pele da boca se rasgando como se fosse papel, aquela gosma negra nojenta jorrando e respingando pra todo lado enquanto eu tratava de arrancar a cabeça daquilo.
Contive uma careta de nojo, conseguindo partir sua cabeça ao meio, apenas a mandíbula inferior restando no corpo, que ainda se debatia um pouco, espasmos esporádicos que geralmente acontece quando o corpo ainda tá processando que tá morto, seus braços que tentavam me arranhar caíram do lado do corpo inerte.
"... Eita..." ouvi aquela voz murmurar e engoli em seco, recuando um pouco enquanto aquele corpo esguio deslizava pelo carro até cair no chão, sem vida.
Estava pensando no que fazer com essa cabeça quando ela começou a se desintegrar numa fumaça negra, lentamente se desfazendo e recuei com o estômago embrulhado, o corpo também desaparecendo e me vi me apoiando contra o carro do Henrique, minha mente processando o que acabei de fazer.
Podia sentir meus batimentos rápidos, as mãos trêmulas enquanto a adrenalina diminuía aos poucos e prendi o fôlego por um instante, soltando o ar com força, meus batimentos por fim se regularizando um pouco.
— CADU! — saltei de susto ao ouvir o grito do Henrique e quando me virei, recuei ao ver seu rosto bem próximo da janela, ele estava pálido, tremendo tanto que até parecia à beira de um colapso, mal conseguia destravar o carro por dentro e por um momento, pensei que ele pudesse me ver, antes de seu olhar focar no meu corpo estendido no chão.
Aquela vozinha dizia algo, ecoando lá no fundo da minha mente, mas não conseguia ouvir, muito menos entender o que tagarelava quando me aproximei do meu corpo.
Pensei que teria de me concentrar ou tentar voltar pra ele de alguma forma, mas só me aproximei um pouco e senti minha visão ficando turva, sequer tive tempo de assimilar o que acontecia quando abri os olhos outra vez, as cores parecendo desbotadas com minha visão fora de foco, minha cabeça doendo como o inferno e algo escorrendo pelo meu nariz como um chafariz.
Me ergui um pouco sentindo meu estômago embrulhar e só tive tempo de erguer a máscara antes de vomitar um líquido negro nojento no chão. Mesmo quando já não tinha nada pra vomitar, ainda sentia ânsia de vômito e espasmos e me obriguei a me sentar sob os calcanhares e cuspi o que restava na boca, estranhando a dor que não sentia.
Quer dizer, sentia sim, uma queimação infernal pelo corpo todo, como se ao invés de sangue, tivesse lava correndo nas veias, minha cabeça pulsando de dor e ergui a mão pra limpar o meu nariz, notando que meu pulso não estava virado de forma anormal.
Mas o sangue estava ali, meu braço cheio de cortes. Olhei pra mim mesmo, vendo o terno todo sujo de sangue e gosma negra, além do chão e olhei pro carro do Henrique, que estava tão sujo quanto eu, a janela com um buraco e Henrique ali, me encarando com os olhos arregalados.
Tinha alguns cortes em seu rosto, sangue escorrendo dessas feridas, além de marcas no pescoço. Respirei fundo, me apoiando contra o outro carro, tentando assimilar toda essa loucura.
Eu deveria ter morrido hoje, pelo menos em três ocasiões, duas no palco e agora, aqui, possuído por aquilo.
— Cadu! — ergui o olhar ao ouvir Henri me chamando, ele batia na janela. — Cadu! Abre a porta! Você... — sacudi a cabeça, negando. Abrir o quê? Ele está louco? — Abre a porta, presta atenção!
— Eu estou prestando atenção. Fica quieto aí. — Suspirei, esfregando as mãos no rosto e dei alguns tapas nas bochechas pra tentar focar no que interessa.
Por um triz eu não morri, aquela coisa não ficou com meu corpo e Henrique não foi assassinado. Depois de passar por tanta desgraça a vida toda, ser otimista e focar no resultado é minha melhor maneira de não ter um surto. Henrique está vivo. Eu também. E é isso.
Me senti tonto ao me levantar, uma estranha fraqueza pelo corpo que me fez ficar parado por alguns segundos tentando me recuperar, até sentir o sangue escorrendo nas mãos. Verifiquei se tudo estava realmente normal, tateando meu corpo até notar que a minha visão de um olho está normal e o outro, como um vídeo do YouTube em 144p.
Eu perdi uma das minhas lentes?
— CARLOS EDUARDO! — Henrique berrou do nada e o encarei alarmado. — ABRE ESSA MERDA AGORA OU EU JURO QUE VOU FICAR MUITO BRAVO COM VOCÊ! — dizia, tentando forçar a porta e tateei pelo bolso, procurando as chaves do carro, mas aí pensei que talvez, possa ter outras daquelas coisas por aqui e... — Você quer me ver bravo? — ele perguntou num tom mais baixo e nem hesitei ao destravar as portas.
Não quero ver ele bravo.
Ele saiu do carro já tirando aquela peruca e se aproximou, puxando meus braços, encarando meu pulso e o apertando como se fosse algo de outro mundo. Acho que é sim, pois estava virado do avesso um minuto atrás.
— I-isso... onde... e-eu vi como... eu pensei que tinha quebrado o pulso e...? — balbuciava e encolhi os ombros, nem sei exatamente por que meu corpo está normal agora quando aquela coisa quebrou meu pulso e fez esse monte de sangue jorrar por aí. — Espera aqui. Você está muito pálido...
Não prestei atenção no que ele seguiu dizendo, só conseguia pensar na minha lente caríssima perdida. Vou ter de usar óculos de novo até chegar as novas lentes que eu tenho que importar, pagar uma fortuna na porra daquela taxa ridícula e torcer pra não chegar danificada
— ... O que foi? — perguntei ao reparar que Henrique estava me encarando, seus olhos um pouco arregalados quando apontou pros meus olhos. — É, ele muda. — suspirei, olhando para o carro. — Outra bizarrice alfa. Por acaso viu... minhas lentes por aí? Quando estava tentando te matar ou... Antes? É que eu não vejo quase nada...
— ... Você está muito lerdo agora, senta no carro. Precisamos ir pra longe desse lugar, anda... — começou a me empurrar pro carro e fiquei feliz ao rever Puf quando já estava sentado no banco do carona. — Vou buscar minhas coisas, espera aqui. — falou rápido já batendo a porta do carro e voltou correndo, tentei lembrar onde as coisas estavam, provavelmente abandonadas na entrada do estacionamento.
"ESTAMOS VIVOS!" um berro repentino me fez pressionar as têmporas, a dor de cabeça piorando, até Puf bater na minha cara, rolando de lá pra cá soltando um "kriuuu", o olho cheio de lágrimas começando a ronronar. "É um milagre! Pensei que já ia voltar pra casa!" e ainda soltou outro "kiuu".
— ... Puf...
"Sim!" e a bolinha de pelos se afastou, me encarando, o olho atento como se esperasse alguma ordem importantíssima.
— Desde quando você pode falar? E por que não falou antes? — murmurei, o amassando um pouco.
"Eu já nasci sabendo, uai... nunca senti tanto medo na minha curta vida antes..." sua voz era um tom choroso quando começou a rolar e se esfregar na minha mão. "Se finalmente pode me escutar, significa que está mais do outro lado do que aqui, praticamente morto."
— Como assim? — questionei e Puf se ergueu no ar, me encarando muito sério.
"Que você já está à beira da morte! Isso não é normal! Me ouvir é um péssimo sinal, um sinal terrível, horrível..."
— Pensei que a maldição ficaria mais fraca se eu ficasse perto do Charles, como pode só ter piorado?
"Eu não sei, não sou adivinho..."
Respirei fundo outra vez e olhei no retrovisor, minha pele está pálida, minha boca num tom azul bizarro e uma gosma negra começou a escorrer pelo nariz outra vez.
Usei a blusa pra limpar e assoar o nariz, quando me lembrei de algo. Essa gosma bizarra estava naquela mordida na costela do Henrique... e ele disse que não viu nada no corredor, mas quando me encarou... essa coisa me possuiu no hospital também? Mas eu não me lembro de nada...
"Estamos lascados, sabia?"
— ... A situação está tão ruim assim?
"ESTÁ HORRÍVEL!"
— Se gritar mais uma vez, eu vou...
"TRISTE! DEPRIMENTE! DEPLORÁVEL! DESESPERÁVEL! Não entende que nós VAMOS MORRER?! POR QUÊ VOCÊ NÃO ESTÁ COM MEDO?!"
— Puf, já falei pra não gritar, minha cabeça está doendo, seu...
— Com quem está falando? — a porta de trás abriu de repente, um "AI CARALHO" soou na minha mente e vi Puf olhando surpreso para as tralhas que Henrique jogava nos bancos de trás, antes de tirar algo do bolso, prender no para-brisa do outro carro e se apressar em sentar no banco do motorista.
— Eu não posso acreditar que quebrou a janela do meu carro... — dizia rápido, antes de respirar fundo, cobrindo a testa com a mão. — Porra, é blindado, Cadu! E eu apanhei de dois alfas diferentes em menos de vinte minutos! Seu azar é mesmo contagioso! — e bateu a testa no volante, me fazendo sentir ainda mais culpa.
— Me desculpa. Foi sem querer. É só que... — não era eu. Mas era, meu corpo, minhas mãos e eu nem vi quando ele conseguiu machucar o Henrique. — Fui eu que te mordi antes, não é? — murmurei e ele ficou um instante quieto, antes de acenar e suspirei. Isso explica o gosto de sangue que senti.
— M-mas você não lembrava, e-então... acho que aqueles olhos pretos bizarros não eram mesmo seus quando me mordeu, então eu... quem diria que tentaria me matar... essa coisa... Fantasma, eu não sei...
"Devorador." Puf corrigiu e franzi o cenho.
— O quê?
— Fantasma, Cadu! Um fant...
— Você não, o Puf! — puxei Puf que voava ao redor da minha cabeça. — Você disse "Devorador", é como ele chama?
"Devorador é o que é. Não um fantasma. Fantasmas são fáceis de lidar, ficam presos em um looping da própria morte ou só vagam por aí até algum Guia buscarem eles. Devoradores não. São parasitas que nunca foram humanos antes, que buscam corpos fortes o bastante pra suportar sua energia corrosiva e drenam o dono original do corpo antes de substituí-lo. Em algumas lendas o chamam de Doppleganger e até 'O Outro'."
— ... Doppleganger? Tipo... daquelas lendas ridículas da internet? — questionei, ignorando o olhar estranho de Henrique.
"Algo assim. São muito possessivos. É difícil para eles encontrarem um corpo hospedeiro compatível e quando o encontram, começam a imitá-lo de alguma forma, seja na aparência, personalidade, interesses e quando conseguem tomar o corpo, podem se passar pelo dono do corpo sem levantarem suspeitas por algum tempo, mas tem como característica, uma gula infinita. Por isso são chamados Devoradores. Devoram e drenam tudo antes de tomarem o corpo... e se alimentam apenas de almas... bom, alguns tem características bem peculiares, roubam os corpos para saciar outros desejos mais primitivos como a fome por carne ou luxúria... Isso não importa, pois nós dois vamos MORRER! VOCÊ, EU, AQUELE SATANÁS LOIRO ALI SERIA A PRIMEIRA VÍTIMA POIS CASO NÃO PERCEBEU AINDA, ELE QUERIA MATAR O NOSSO PORCO!"
Ele chama Henrique de "satanás loiro" e "porco"?
— Está bem, mas e aí? Depois que ele terminar o rango e nós dois morrermos, o que rola?
"Vai saber... são bem imprevisíveis. De onde vim, são considerados parasitas inferiores, fracos e inúteis. Como não tem chances no meu mundo, costumam ir parasitando outros mundos pra sobreviver. E geralmente quando escapam pra cá, algum discípulo menor dos clãs vem para lidar com isso, mas apenas agem quando há vítimas para validar a passagem de um mundo para o outro e... além disso, geralmente é só um ou outro... não uma centena rodeando uma única pessoa..."
Acho que é disso que a dona bruxa disse, que não tem como me livrar. Esses... parasitas irritantes. Não tenho outra escolha senão lidar com eles, mas dá pra pelo menos me livrar da maldição. Voltei o olhar para Henrique, que nos encarava com os olhos arregalados.
— Está... falando com ele... — balbuciou, os olhos indo de mim pro Puf e do Puf pra mim e acenei, Puf soltando um "kiu" também. — C-Cadu... vamos queimar essa coisa antes que comece alguma lavagem cerebral ou...
"EI! Eu sou vivo! E Tenho sentimentos! Mais respeito, seu porco!" Puf exclamou e suspirei, relaxando no banco.
— Sim, ele tá falando na minha cabeça, não estou louco e ele me disse mais do que aquela dona bru...
— ME CHAMA DE BRUXA MAIS UMA VEZ E EU ACABO COM VOCÊ!! — a velha berrou do nada, me dando uma porretada na cabeça.
— E-ela! C-como..?! — Henrique apontava, mais pálido que antes, ainda sentia a porretada doendo na cabeça.
— NÃO APARECE DO NADA! — berrei, jogando Puf na cara da velha e na mesma hora, ouvi um berro de gato e aí uma coisa branca veio na minha direção, tentei usar o braço pra me proteger, o gato me arranhando todo enquanto aquela dona bruxa me dava murros na cabeça.
— PARA COM ISSO! VOCÊS DOIS PAREM! Como ela entrou pelo amor de- PUF! — podia ouvir Henrique berrando, Puf soltando um gritinho e afastei o gato branco do meu rosto a tempo de ver Puf voando pra longe com o gato preto quase pegando ele num salto preciso.
— NÃO COMA PORCARIA, FOFINHO! — e a dona bruxa berrou, pegando o gato.
— Porcaria é esse gato fedido! — joguei o gato branco de volta e Puf veio bater na minha testa.
"POR QUE VOCÊ ME JOGOU?! TRAIDOR!" e bateu de novo.
— PORQUE JOGOU MONSTRO, SEU... — e a dona bruxa ergueu o gato preto pra jogar em mim.
— TODO MUNDO, PARA! — Henrique berrou mais alto e por algum motivo, um silêncio bizarro surgiu, a velha segurando os dois gatos pelo cangote, eu segurando Puf pela ponta do rabo, Henrique com um rastro de sangue ainda maior pingando do queixo, o que me fez lembrar da situação bizarra que estamos.
Ele parou de pressionar o machucado na testa e agora está sangrando de novo. Acho que a dona bruxa o acertou numa dessas porretadas que me deu.
— Tem que tratar isso aqui! — segurei seu rosto com a mão livre, o forçando a erguer um pouco o queixo, o corte na testa era o que sangrava, mas tinha alguns arranhões pelo queixo, nariz e pela bochecha esquerda.
Procurei pelo lenço que entreguei pra ele antes, o pegando de cima do banco e pressionei no corte da testa dele, que gemeu de dor e se encolheu um pouco, fazendo uma careta.
— Eu estou muito confuso agora e aconteceu muita coisa nos últimos quinze minutos que eu nem sei como assimilar isso, tipo você quase morreu duas vezes, eu quase fui sequestrado e tive de lutar contra um alfa maluco vestindo roupa de empregada e então um coisa quebrou a janela do carro tentando me matar e agora tem uma mulher bonitona no meu carro e você fala com o Puf e... eu estou com um galo também. — Henrique dizia lentamente e acenei, confirmando. — Posso chorar só um pouquinho sem perder minha dignidade?
— Pra você perder alguma coisa, precisa ter ela em primeiro lugar. — apontei e ele ficou um instante me encarando, a expressão em branco antes de arquear as sobrancelhas e acenar, concordando.
Olhei de relance pra dona bruxa, parece tão feia (talvez ainda mais) do que quando a vi pela primeira vez e como ele concordou que não tem dignidade alguma, explodiu num choro alto com direito a soluço e tudo o mais, seu rosto indo do branco ao vermelho em um instante e ajeitei o pano em seu machucado pra ver se para de sangrar.
— Francamente, vocês... — a velha bufou, erguendo a barra da saia e enfiou os gatos ali, ajeitando a saia e cruzando os braços. Mais uma vez, coitados dos bichos.
Será que a saia dela é algum portal pra outra realidade? Ou os bichos só ficam entre as pernas ossudas dessa velha?
— Vim porque senti sua alma fraquejando, pirralho fedido. — Ela dizia e franzi o cenho. — Por muito pouco não morreu, para de largar seu corpo por aí! — seu tom era feroz, um olhar irritado.
Quando olhou para Henrique, sua expressão suavizou e até pareceu uma doce velhinha que faz café e broa pra fofocar na entrada de casa com as vizinhas.
— Para de chorar. — e tocou na testa dele, que segurava o lenço no corte. — Está tudo bem, querido. Se as coisas realmente fossem perigosas para você, eu o protegeria.
— Qual é a dessa diferença de tratamento aqui?
— Você cala a boca aí, energúmeno. — me encarou e franzi o cenho. Ué, qual é a dessa velha mocréia?
— Eu posso chorar tudo o que eu quiser, tá? Ele deixou. — e continuou chorando, a velha revirou os olhos e deu uns tapas nas minhas mãos pra afastar o pano do galo na testa dele.
Henrique ia falar alguma coisa, mas vi que seu machucado havia desaparecido. Não havia galo ou corte algum e ele tocou a testa com uma expressão estúpida antes de cutucar o rosto onde deveria ter uns hematomas feios.
— Pronto, que tal?
— Não dói mais... obrigado, dona... — e olhou pra velha medonha e ela sorriu e acenou.
— Se ferir meu linx outra vez... — e a velha me encarou com aquela carranca medonha de volta, aqueles olhos bizarros fixos nos meus, ignorando o fato de que essa bolinha nem foi tocada. — Eu vou vir pelas suas entranhas... — e numa explosão de fumaça, desapareceu.
Um silêncio esquisito ficou no carro enquanto Henrique dava tapinhas e petelecos no lugar onde tinha uma rachadura e um calombo até um segundo atrás.
"Acho que ele enlouqueceu." Puf disse num tom divertido e franzi o cenho.
— Henri? — o chamei no tom menos... grosseiro que consegui, o que não é muito, independente de como falo, sempre dizem que estou soando frio ou arrogante e ele me encarou, o olhar vazio. — Quer que eu dirija?
— Sim, pode dirigir hoje. — e abriu a porta, cambaleando pra fora e dando a volta no carro.
Ele mesmo abriu a porta do meu lado e já ia se sentando no meu colo, mas o empurrei para que ao menos me deixasse tirar o cinto e pulei pro assento do motorista enquanto ele parecia no mundo da lua.
Acho que agora sim viu mais do que pode assimilar.
Tive até de prender o cinto pra ele e enquanto dirigia até o prédio, ele e Puf ficaram estranhamente quietos, considerando que se não é um é o outro que estão sempre fazendo barulho e me atazanando, isso era muito esquisito.
Quando desci do carro no estacionamento subterrâneo do prédio, tentei acordar Henrique que dormiu em algum momento, mas ele não esboçou reação alguma, até parecia estar morto.
"Ilia deve ter colocado ele pra dormir. Vai ser melhor não acordar ele." ouvi a voz de Puf e suspirei, decidindo só carregar ele, posso deixar as tralhas no carro pra buscar depois.
O tirei do carro com cuidado, seu peso é uma coisa risível, acho que vou ter de levar mais á sério meu plano de engorda e alimentar ele três ou quatro vezes ao dia até chegar num peso saudável.
Quando finalmente consegui entrar no apartamento, deixei Henrique no quarto dele, tirei as botas que ele usava e aquela touca que prendeu o cabelo pra colocar a peruca.
Procurei uma toalha de rosto e um pouco de água morna pra limpar o rosto dele, não vai tirar a maquiagem toda, mas é melhor do que ficar sujo de suor e sangue e tomei cuidado pra não acordar ele até terminar.
Quando já estava limpo, mandei Puf vigiá-lo e me avisar se acontecer qualquer coisa antes de sair e voltar pro estacionamento pra buscar as coisas que o Henrique comprou no evento e a mochila.
Dessa vez não ousei brincar com a sorte e subi pelas escadas, pra minha tristeza, encontrei justo quem não queria descendo do sétimo andar: Rafael. Segundo ele, começou a fazer isso como um exercício, assim como eu, já que também se exercita na academia aqui do bairro e sempre me vê descendo as escadas. Ele até parecia querer dizer algo, mas desviei dele o ignorando, nenhum pouco afim de ter qualquer proximidade com ele e no instante em que saí pro corredor do décimo primeiro andar, senti o clima ficando frio e o corredor um pouco mais escuro.
Suspirei, vendo a dona bruxa parada perto da porta do apartamento do Henrique.
— Você vai...
— Já sei, já sei, deixa eu ver: vou morrer, sou um descarado, joga um gato em mim, a gente briga e blá blá blá, é o que rola cada vez que eu te encontro então virou roteiro. — a interrompi, me aproximando da porta. — Não tô com tempo pra ficar repetindo essa merda sem sentido, se não vai dizer alguma coisa que preste, volta outra hora. — destranquei a porta, ignorando sua carranca feia e já ia abrir quando ela me segurou pelo braço.
— Tome isso, seu insolente. — me estendeu um frasco estranho com um líquido branco espesso dentro.
— Quê que isso?
— É merda. Cala a boca e toma isso logo. — bufou, recuando e ergui um pouco o frasco, observando aquele líquido estranho.
— Pra quê serve isso?
— Não é da sua con... — joguei o frasco de volta antes que ela terminasse e a vi quase se desesperando pra pegar ele no ar. — Você está louco?! Sabe o custo que foi pra fazer isso?!
— Não, eu não sei, afinal você não disse. Acha mesmo que eu vou beber esse troço só por quê disse pra beber?
— Se quiser viver, você vai beber sim!
— Se não dizer que merda é essa, provavelmente vou jogar na privada e dar descarga. — ela ficou me encarando feio por um tempo, antes de bufar.
— É uma poção de purificação, usada em rituais do meu clã. Para purificar e expurgar qualquer rastro de corrupção de um corpo. No seu caso, teria de tomar um caldeirão dessa poção. — resmungou a contragosto e franzi o cenho. — Sua alma é podre, e é o que atrai essas criaturas. Um corpo forte o bastante pra guardar uma alma tão podre assim é o hospedeiro perfeito para esses parasitas, então querem te possuir... isso irá te limpar de dentro pra fora, te dar mais alguns dias.
— Por quê está tentando me manter vivo quando claramente não gosta de mim? — resolvi questionar, já que ela só me ofende e me maltrata desde o inicio, é claro que não gosta de mim.
Não faz o menor sentido. Se eu não gosto de alguém, eu quero é que ela se foda bonito. Ela ficou desconcertada pela minha pergunta, um ar melancólico surgiu em sua face por um instante, antes de franzir novamente a cara e fazer careta.
— Não é da sua conta. — e me arremessou aquele frasco sinistro. O segui com o olhar, o agarrando seu problemas, mas ao erguer os olhos, a bruxa já tinha desaparecido.
Enfiei o frasco no bolso, decidindo deixar pra pensar nisso depois (já que como as coisas estão, pior não fica) e no instante em que saí "daquele lugar", senti o celular vibrando no bolso com mensagens. Quando o desbloqueei, vi uma foto enviada pelo Sr. Novaes que fez meu sangue gelar.
Uma foto do terreno onde ficava o prédio que morava e que já foi demolido, seguido de duas mensagens.
💬 Sr. Demônio: Acho bom que tenha uma boa razão pra não ter me contado sobre isso, Eduardo. | 17:28
💬 Sr. Demônio: Diga logo onde mora para termos um acerto de contas, pirralho. Se eu descobrir por conta própria, vai ser pior pra você. | 17:28
Bloqueei seu contato na mesma hora e desliguei o celular.
É, tudo pode piorar sim.
Deus, pode levar, dessa vez é sério, seu filho está pronto...
Bruno Tiago Mendes
Gago de nascença, fez acompanhamento com fono durante a maior parte da infância e adolescência, mas às vezes ainda gagueja quando está nervoso ou estressado.
Sendo um Alfa comum, sua essência tem alguma familiaridade com o cheiro do oceano.
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