08 de setembro de 2024.

Os respingos de sangue em sua camisa branca podem até ter chamado antes a minha atenção, mas os olhos foram os verdadeiros responsáveis por lançaram-me em um estupor. O verde das íris circula um anel acastanhado ao redor da pupila, formando um padrão inconfundível, do qual minha mente seria incapaz de esquecer-se enquanto a eternidade durar.

São os olhos dele.

O ônibus chacoalha quando as rodas acertam um buraco, e o homem na poltrona ao meu lado inclina-se levemente em minha direção. A simples noção de proximidade é capaz de congelar todos os músculos de meu corpo.

Fico apavorada com a ideia de fazer qualquer movimento errado, que o leve a reparar demais em meus traços. Sob a pouca luz do anoitecer, preciso tornar-me invisível para não ser reconhecida.

Isso porque, desde que os olhos desse homem quase encontraram os meus, a imagem do corpo de Erica sendo retirado do rio ficou presa em minha retina, repetindo-se como um sonho em má qualidade, enquanto as vozes que habitam o fundo da minha mente gritam que tratam-se dos olhos de seu assassino.

Tantos anos de buscas infrutíferas pelo Maníaco do Lado Leste, para acabarmos dividindo a mesma poltrona de um ônibus, no fim das contas.

Tenho vontade de gritar até as cordas vocais saírem pela garganta. Gritar para todos os passageiros que esse homem não tem alma, nem honra. Também tenho vontade de matá-lo com as mãos nuas, talvez. Mas a única coisa que consigo fazer, efetivamente, é ficar imóvel e em silêncio, esperando por algo inesperado.

Agora, sou parte do estofado azul do banco do ônibus. Até a respiração pede permissão antes de sair, silenciosa, por minhas narinas. Gasto o restante do trajeto procurando formas de desaparecer por entre as sombras do início da noite, até que ele faz menção de se levantar. O veículo estaciona em uma das paradas, as portas abrem-se para a calçada, e o homem vai descer.

As pessoas acotovelam-se até as saídas, desesperadas demais por suas razões secretas. Mal tenho tempo de piscar antes de juntar-me a elas: não é meu ponto de descida habitual, mas estou desesperada também.

Não quero perde-lo, não posso. Não depois de gastar um quarto de vida implorando aos céus por qualquer sinal de seu paradeiro. Eu estaria mentindo se dissesse que tenho um plano, mas minha única certeza é a de que nunca me perdoaria se o deixasse escapar mais uma vez.

O homem é alto o suficiente para que eu possa encontrar o topo de seus cabelos loiros entre o fluxo abarrotado de pessoas na rua. Ele move-se em passos confiantes, e nem sequer hesita ao dobrar a esquina. Está tão encoberto pelos anos de impunidade que não parece temer a justiça do mundo.

Mas eu o encontrei.

O céu acima adquire tons mais escuros de azul enquanto o laranja e o rosa desvanecem em sua superfície. Os postes nas ruas acendem-se, um a um, em estalos. Conforme a noite estende-se como um cobertor ao meu redor, caminho atrás de um pesadelo de nome desconhecido.

Por enquanto, o movimento de pedestres nesta parte do bairro ainda é intenso o suficiente para disfarçar minhas intenções. E, apesar do cuidado ainda ser indispensável, não acredito que ele reconheceria meu rosto a ponto de desconfiar que o estou seguindo, desde que mantenha os olhos baixos. Minha pele foi moldada por rugas nos últimos 14 anos, e os cabelos tingidos de preto ganharam mechas grisalhas. Honestamente, sinto-me como um retrato infiel de mim, sulcado pelos maus-tratos aos quais me condenei.

Mas é impossível manter a própria essência após sentir o mundo girar tão rápido ao redor, e a única consequência passa a ser desabar, tonta, no chão.