Lua Crescente III
Palavras não ditas ou mal ditas
Rebeca penteava os cabelos da mãe, quando seu celular apitou uma mensagem.
"Oi amiga, o Igor me contou o que houve com a sua mãe. Não sei nem o que te dizer, queria estar com você e te oferecer meu ombro amigo. Tantas coisas acontecendo nas nossas vidas, me perdoe à ausência, não sei se sou capaz de te explicar... Só me culpo por não estar ao seu lado, para chegar nesse ponto, significa que já estava tudo pior do que eu sabia há um tempo. O que eu posso fazer para te ajudar?"
Rebeca leu a mensagem que Thaís enviou pelo celular. Deixou o aparelho cair sobre o colo e levou as mãos à boca. Seus olhos encheram de lágrimas, estava muito surpresa pelo retorno inesperado da amiga. "Ao menos uma boa noticia".
"Eu realmente preciso de você. E sinto muito sua falta e não se culpe, eu me culpo mais por não conseguir te ajudar. Você viria a minha casa hoje mais tarde? Eu saio do hospital as 17:30. Seria bom preencher o vazio com a sua companhia."
Thaís aceitou o convite ou pedido de socorro. Sabiam eram diferentes nisso, Thaís preferia a solidão nos piores momentos enquanto Rebeca precisava de companhia. "Ela me conhece, sabe do meu limite, não vai me encher de perguntas e me obrigar a respondê-las."
Quando Thaís chegou, Carol já estava lá com Caio. Ouviam musica em seu quarto. Era prazeroso tê-la deitada ao seu lado, fazendo cafuné. Um mundo paralelo, longe da realidade, até que Carol o chamou de volta:
− Falou com o seu pai?
− Não vou falar com ele — Caio mudou de posição na cama e franziu a testa. —, vi que ele me ligou, mas não atendi. Achei estranho, ele não retornou a ligação de Rebeca. Por que quer falar comigo e não com ela?
− Talvez ele não saiba o que aconteceu...
Caio deu de ombros, não conseguia deixar de sentir raiva. A avó tinha planos de levar Regina para o sítio por um tempo, o pai acabaria impondo sua presença. Mas enquanto pudesse, adiaria esse confronto.
— Obrigada por ter vindo amiga — disse Rebeca assim que recebeu Thaís. — Carol acabou de me contar que você foi à aula hoje. Fiquei feliz com a notícia, porque foi tão estranho nosso encontro ontem...
Thaís abaixou a cabeça e caminhou até o sofá. Rebeca se sentiu estúpida por tocar naquilo, sentou do lado dela e a abraçou.
— Desculpa, você vem aqui me acudir e eu toco nisso...
— Tudo bem. Não dá para fingir que não aconteceu. Mas eu já estou indo na psicóloga do colégio, estou me sentindo melhor. — Thaís esboçou um sorriso. Depois de um breve silêncio, completou: — Eu gostaria de voltar a ser quem eu era. Apagar tudo e me sentir segura de novo.
— O que... — Rebeca segurou a pergunta quando viu Thaís virar o rosto em outra direção, era uma recusa.
Gostaria de entender, era tão estranho aceitar que Thaís pediu para se tornar noviça. Por mais que ela fosse fechada, não combinava com ela... Mas estava evidente que não poderia ultrapassar a barreira e lhe perguntar sobre aquilo.
— Você sabe que pode contar comigo, certo? — falou Rebeca diante do olhar fugidio de Thaís — É bom saber que tem uma psicóloga boa no colégio, vai que eu não dê conta sozinha...
Finalmente Thaís viu o foco da conversa se deslocar dela para Rebeca e sentiu um imenso alívio. Rebeca também sentia alívio ao derramar as palavras junto das lágrimas, ao contar como encontrou sua mãe. Thaís compreendia sua dor e pavor. O medo que uma tinha de perder a mãe, já fazia parte da realidade da outra. Aquele buraco impreenchível.
Então o celular de Rebeca apitou uma mensagem de Igor.
"Como é que você está? Eu estou saindo do inglês, queria passar aí e te ver. A Carol falou que ia para sua casa, ela está aí? Posso chamar a Thaís e pedimos uma pizza."
Elas leram a mensagem e riram. Igor é daqueles amigos desesperados por fazer alguma coisa ou qualquer coisa para ajudar. Outra mensagem dele.
"Eu exagerei! Desculpa! Talvez você queira descansar ou esteja no hospital..."
"Vem para cá! Thaís já está aqui e gostamos da ideia da pizza. Beijos". Respondeu Rebeca.
— Antes que ele chegue, eu quero te contar mais duas coisas.
— Fala logo — respondeu Thaís.
— Vamos começar pela boa. Eu fiquei com o Gustavo ontem — Rebeca abriu um imenso sorriso que transformou o rosto marcado pelo choro.
— Não acredito! Essa é uma notícia linda. Quero saber dos detalhes! — Thaís franziu a testa e apagou o sorriso — Aliás, fiquei confusa, você disse ontem? Eu achei que você tivesse saído mais cedo da escola por causa da sua mãe. É o que todos pensam...
— Então, eu preciso contar sobre outra coisa, que aconteceu depois que te encontrei. Sabe o babaca do Rafael?
Rebeca contou tudo desde o princípio. Uma narrativa raivosa que apertou o peito de Thaís. Sentiu-se sufocada na sua própria prisão. Inevitavelmente se comparou a Rebeca que reagiu de imediato e denunciou o abusador.
— Eu só concordei em encerrar esse assunto porque ele recebeu uma punição, mínima na verdade, e vai ficar longe de mim. E, sobretudo, se há um ganho nisso, foi ter saído mais cedo da escola e conseguido socorrer minha mãe.
Thaís não conseguia dizer nada, engolia sem sucesso um bolo estranho na garganta. Foi salva pelo interfone, anunciando a chegada de Igor. Ele tinha o dom de dissipar nuvens cinza com seu embaraçado carinho. Aquela noite transformou, pelo menos temporariamente, angústia em alegria.
Carol e Caio se juntaram aos três na área externa, pediram pizzas ao som de rock enquanto contavam a Thaís sobre os últimos acontecimentos. Ela, Rebeca e Caio distraíram se suas dores ouvindo as gafes cometidas por Priscila. Carol só se absteve em defender a amiga porque eram situações praticamente indefensáveis e porque era uma oportunidade para falar mal de Lavínia na ultima festa.
Igor puxou Rebeca como se tivessem dançando forró e quase se beijando, enquanto Carol se aproximava com os olhos faiscando de raiva. De repente, encenação cômica da ultima festa foi interrompida pela chegada surpresa do pai dos gêmeos.
O olhar de reprovação do pai foi imediato e constrangedor para os convidados. Igor separou-se de Rebeca e Carol soltou: "Boa noite sogro", na tentativa de recuperar o clima. Mas foi parcialmente ignorada. Ele acenou para a namorada do filho e se retirou para a cozinha, esperando que os outros se despedissem e saíssem de sua casa.
O desconforto de Caio era evidente, relutava em abrir mão da companhia da namorada e dos amigos por causa do pai. Eles insistiram que era hora de partirem. Rebeca não entendia a reprovação estampada em seu rosto.
− Eu não esperava encontrá-los fazendo uma festinha enquanto a mãe de vocês está no hospital.
Caio não aguardou nem um segundo, a resposta está estava afiada em sua língua.
− E você? Estava festejando com a sua amante enquanto sua esposa tentava se matar?
Rebeca viu nos olhos do pai, a sombra da culpa buscar alívio fácil na tentativa de encontrar algum delito cometido pelos filhos.
− Você está sempre contra mim! – gritou o pai.
− Por culpa sua! – acusou Caio.
Rebeca queria desaparecer. Viu a impossibilidade de explicar a visita dos amigos e ter uma conversa saudável com o pai. Viu o ódio entre pai e filho contaminar onde deveria haver amor. Ela gostaria de estar com Gustavo, ou aprender magia com a avó ou até mesmo sentir o frio do hospital ao lado da mãe. Ali ficou insuportável: os dois de pé, frente a frente, olhos vermelhos e línguas afiadas.
— Você me respeita! — ordenou o pai.
— Já chega — tentou Rebeca.
— Você abandou essa casa, não é bem-vindo aqui! — falou Caio com o som pronunciado entre os dentes.
Caio não tinha a menor intenção em abaixar a guarda. Rebeca não vendo saída, alcançou a jarra de cristal, herança da família do pai de Regina. Aquilo que carregada tudo aquilo que se repete através das gerações. Uma 'joia valiosa', como Regina dizia. Então a jarra espatifou-se no chão, em cacos mínimos. Nada poderia reconstruí-la. Rebeca saiu da sala puxando o irmão pelas mãos. Caio sentia o corpo enfraquecer e o coração partir, como a jarra. O pai jogou o corpo no sofá e a cabeça explodindo em agonia.
Do outro lado da cidade, Miguel sentou-se a mesa onde iria jogar. Os participantes concentravam-se. Ele já podia sentir suas estratégias, ansiedades, desejos. Não era preciso mais estar encarando o adversário para ouvi-lo, bastava centralizar sua energia nele. Mas isso não era o bastante para vencer, precisava concentrar-se no próprio jogo, formular uma estratégia a cada jogada depois de tentar 'ler os pensamentos' de todos os jogadores. Miguel sentiu seu sangue pulsar rapidamente pelo corpo, Lâmina o observava do outro lado do salão, não se aproximou em nenhum momento. Miguel não sabia bem o que isso significava, mas aquilo lhe incomodava mais do que suas ameaças faladas.
As horas avançavam e o raciocínio declinava. Seu corpo dava sinais de exaustão. A cabeça latejava a cada esforço. A concentração era o mesmo que deitar numa cama de pregos, tantas informações ao mesmo tempo lhe exigindo uma ação. Cada ação era um golpe na boca do estômago. Já passava de cinco horas de jogo. Restavam apenas três jogadores. Então, Miguel mirou em Lâmina, seus pensamentos invadiram sua mente: "rapaz brilhante como o pai. É capaz de me conquistar a confiança. Quem sabe não contarei tudo sobre seu pai, quem sabe eu...".
− Senhor! Sua vez de jogar.
Miguel olhou sua mão, as cartas embaralharam em sua cabeça. O raciocínio travou. As vozes ressoavam desordenadamente. Sentiu suas mãos tremerem, a visão embasar, de repente, apagou.
Horas depois, Miguel acordou suando. A mãe ao seu lado cuidando de sua febre. Não fazia a menor ideia de como voltou para casa. A mãe o olhava silenciosa e distante. Tentava se lembrar do que aconteceu, mas sua cabeça latejava e poucos flashes vinham à consciência, só sabia que estivera num torneio com Lâmina. Tentou se levantar, mas a dor espremeu seu cérebro.
− Fique quieto, descanse. — falou Joana empurrando sobre a cama — A febre está baixando.
− O que aconteceu, mãe?
− Depois você conversa com o Luís — Joana manteve as mãos sobre seu peito, evitando que se levantasse. Seu olhar estava fugidio e assustado.
− Cadê ele?
− Daqui a pouco está de volta.
Então, ele cedeu ao peso das pálpebras, cerrando-as e apagando a consciência por exaustão.
Escudo
Marina estancou o passo ao notar que um carro a acompanhava. Ela acabava de se separar de Priscila no caminho para o cursinho. Virou-se lentamente, o carro de vidros escuros estacionou ao seu lado. Marina deu alguns passos para trás, intimidada com a situação, então o motorista abriu a janela. Ela assustou-se ao reconhecer quem a perseguia:
— Entre no carro, Marina.
— Perla? O que está acontecendo?
Perla não lhe respondeu. Ela tinha seu objetivo muito claro naquela viagem e Marina deveria apenas seguir suas ordens.
— Me leve até a garota que possui o outro par de Olhos da Deusa.
— A mãe de Rebeca está no hospital, não sei se ela irá ao colégio hoje.
— Onde ela mora?
— É próximo ao colégio que eles estudam, eu te mostro. Siga por essa rua e vire a segunda à esquerda...
Elas chegaram até a portaria do prédio onde Rebeca mora. Marina queria fazer perguntas, mas Perla parecia transformada em uma fera a espreita de sua caça, concentrada e ameaçadora. Ela não poderia estar ali à toa. Deve ter descoberto algo precioso ou perigoso.
— Você pode ir para o seu cursinho. Não preciso de você agora.
Marina saiu imediatamente do carro, o tom de Perla foi firme o suficiente para ser inquestionável. Quase uma hora depois, Rebeca e Caio saíram do prédio. "A idade, a descrição e o irmão gêmeo, sim, é ela". Perla desceu do carro e tentou alcança-los.
— Você acha que ele dormiu em casa, Caio? — perguntou Rebeca sobre o pai.
— Só se foi no sofá, a cama do quarto deles estava sem as roupas de cama, como você deixou. Tomara que ele não volte mais.
Aquela frase apertou os pulmões de Rebeca, desejava tanto a paz. Ela não percebeu a presença de Perla, mas as pedras sim. Os cabelos vermelhos brilhavam mais que o sol e meneavam com seu passo apressado. Quando ela estava a poucos metros de Rebeca, aconteceu. As pedras de Rebeca emitiram feixes de luzes que tomaram a direção de Perla, antes que ela entendesse o que estava acontecendo, suas orelhas arderam como se lanças de ferro em brasa atravessassem sua pele.
Perla sentiu as pernas bambearem, encostou-se em um muro e arrancou os brincos de suas orelhas. Quando voltou o olhar na direção dos gêmeos já não havia nem sinal deles por perto. Seu corpo estava dolorido e a cabeça latejava, com dificuldades voltou para o carro e adormeceu de imediato.
Rebeca sentiu uma energia estranha em torno deles. Os sons dos carros e as vozes de pessoas que cruzaram com eles mudaram de frequência, havia uma barreira entre os sons e seus ouvidos. Até mesmo o vento quente de verão suavizou-se, sentia-se dentro de uma enorme bolha invisível. Olhou em volta e nada viu, então respirou fundo, fechando os olhos por apenas um segundo e desejou que aquele estranhamento desaparecesse. Naquele piscar de olhos, tudo voltara a ser aparentemente normal. "Uma coisa de cada vez, minha senhora. É só o que eu te peço...", orou Rebeca em pensamento.
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