A Lua Nova I
Festival
Caio acordou angustiado com o sonho que se dissipava toda vez que acordava. Naquela manhã, sentiu seu corpo dolorido como se tivesse dormido numa cama de pregos. A única coisa que se lembrou foi do cheiro de terra molhada misturado com gosto de sangue. Ele buscou um caderno e escreveu tudo o que se lembrava. Precisava contar aos outros, mas não agora. Naquele dia precisava estar com a cabeça livre para o show.
Marcos lia as mensagens de incentivo da galera no grupo. Abriu a foto que a Priscila mandou vestindo a camisa customizada para ela. Ombros à mostra, cabelos jogados para um dos lados, shorts jeans curtinho. "É linda".
Miguel dedilhava seu baixo, sabia que tinha uma responsabilidade muito grande, o solo da música era seu. Que músico não sentiria a mistura de excitação e peso em seu lugar? Queria impressionar Thaís, mais do que aos jurados. Aliás, queria beijar Thaís e não havia dia melhor para isso acontecer.
O parque da cidade estava repleto de fãs de rock. A torcida por Avalon era grande, muitos colegas do colégio vestiam a camisa que Priscila vendeu. Ela criou um grupo privado de mensagens pelo celular somente para os amigos mais próximos, com exceção dos componentes da banda, onde ela ajustava as instruções:
"Todos ensaiaram para o coral? Ao meu sinal, ok?"
Todos responderam com: "OK."
− Eu tenho que admitir que a Priscila mandou muito bem na organização dessa torcida. O lance do coral, igual a música original, foi um golpe de mestre – falou Rebeca, sentindo as pontadas do ciúme.
− Nem parece que ela está envolvida com a mesma tensão que nós. Só falta uma semana para o presságio se cumprir e eu já quase não consigo pensar em outra coisa – disse Thaís.
− Vai ver isso faz parte dos planos delas... O que mais me assusta é o quanto ela está mudada, isso não pode ser algo banal... – as duas ficaram matutando o assunto até Priscila interromper.
− Olá meninas! Onde estão os três?
− Estão confirmando a presença atrás do palco – respondeu Rebeca.
− Eu preciso conversar com você Thaís, pode ser? Gustavo acabou de chegar com Lavínia, Rebeca – Priscila apontou na direção em que a galera se sentava no gramado – Vai até lá, daqui a pouco chegamos.
Rebeca se espantou com o comando, mas decidiu se retirar, Thaís lhe contaria tudo depois mesmo. Aproximou-se de Gustavo e Lavínia. Ele a abraçou maliciosamente. "Nessas horas eu preferia acabar com o segredo e ser livre com ele. Mas, será que isso nos faria sentir realmente mais livres?" Lavínia a cumprimentou sem entusiasmo.
Thaís voltou com o rosto corado e chamou Rebeca para comprar uma bebida e contar o que Priscila lhe falou.
− Priscila quando quer alguma coisa comigo é para me deixar sem graça... Ela disse que eu tenho que arrumar alguém para me levantar na hora que ela sinalizar.
− Só você? — perguntou Rebeca.
− Não. Eu, ela e Carol.
− Os pares dos componentes da banda! — deduziu Rebeca.
− Eu não sou par de Miguel – Thaís corou de novo.
− Você é mais par de Miguel do que Priscila é par de Marcos! Você vai pedir para o Igor te levantar?
− Em primeiro lugar, seria feio da minha parte, dadas as circunstâncias, e em segundo lugar, Priscila já pediu para ele.
Elas observaram Igor ficando com Renata entre as árvores.
− Achei que ela fosse pedir para Gustavo! — espantou-se Rebeca. — Está aí uma prova de que ela gosta mesmo é do Marcos! Quer que eu peça ao Gustavo para te subir? Ou você prefere o Pedro da nossa sala?
− Não. Eu vou pedir para a Fabi, eu sei que ela me aguenta tranquilo.
Rebeca concordou com a cabeça, Fabiana, da sala delas, era uma garota forte e extrovertida, certamente toparia colocar Thaís que era leve nos seus ombros.
O promotor do festival anunciou o início dos shows. A multidão se aproximou do palco. Sabiam que Avalon seria a quarta banda a se apresentar. Os meninos se aproximaram da galera para assistirem a abertura com a banda vencedora da edição do ano passado.
Miguel pegou a mão de Thaís, sua própria mão estava suada e gelada, precisava do seu calor. Carol não desgrudava de Caio e Marcos não desgrudava o olhar de Priscila. Lavínia não estava disposta a deixar Gustavo livre, e olhar para Rebeca com desdém era parte da estratégia para tentar afastá-la. Assim, tudo cumpria mais ou menos a ordem que Priscila planejara.
Quando a terceira banda subiu no palco, os rapazes sabiam que era hora de ir para o backstage. Priscila enlaçou Marcos num abraço demorado e sussurrou no seu ouvido: "Boa sorte meu baterista favorito.". Miguel puxou Thaís pela mão até a entrada do palco, esperou Caio e Carol se despedirem e pediu:
− Quero um beijo de boa sorte – não esperou resposta. Beijaram-se. A mistura incomum e perfeita de suavidade e fervor. O mundo parecia girar lentamente e os dois pareciam que nunca mais iam se soltar.
A galera se reuniu próximo ao palco. Priscila repassou as ultimas instruções.
− No palco agora a Banda: Avalon! − a galera aplaudiu e gritou o nome sem parar – Vão tocar a música: 'Just a man' da Banda Faith No More!
A energia da galera era gás e adrenalina pura. Desde o primeiro acorde, a energia circulou entre eles e os Olhos da Deusa se acenderam. Aquele foi o estopim para a energia que circulou pelo parque através de cada voz da platéia que cantava a música. Instantes antes de Miguel começar seu solo, Priscila deu o sinal para que Carol e Thaís subissem. O olhar de Thaís cruzou com o olhar de Miguel, à medida que ele dedilhava as cordas do baixo, seus pés foram descolando do chão e ele flutuou a poucos centímetros do palco. Ao mesmo tempo, Priscila, Carol e Thaís estouraram o lança papel laminado. Talvez isso tivesse servido para confundir a visão de muita gente e proteger Miguel do assédio em torno da suposta flutuação.
A voz de Caio encorpou, ficou áspera e grave. Expressava a visceralidade da música. A letra que desvelava misteriosamente a angustia dele sobre a lenda. Gustavo olhou para Rebeca, segurava em sua mão, queria levantá-la, ela delirava assistindo ao show do irmão.
− Você quer... – Gustavo tentou falar ao ouvido de Rebeca, mas Lavínia o puxou, parando em sua frente.
− Me levanta agora! Rápido!
Gustavo não soube cortar a prima, Rebeca sentiu seu coração partir-se em desgosto. Priscila não perdeu a cena, sorriu para Lavínia que estava no alto ao seu lado e, em seguida, sinalizou para a galera começar a segunda voz. O coral, que acompanhou as vozes de Miguel e Marcos ao fundo da voz principal de Caio, o que deu ainda mais potência a música.
Quando terminaram de tocar, a platéia inteira ardia em aplausos, gritos, assobios. O apresentador levou um tempo até conseguir começar a falar.
− Acabamos de presenciar o show mais irado de todas as edições do festival. Primeira vez que vejo tanta energia circular entre uma banda e a platéia aqui.
As meninas correram para a entrada do palco. Rebeca não conseguiu controlar sua decepção e evitou olhar para Gustavo, então, simplesmente saiu atrás de Thaís.
"Ok Lavínia! Você acabou de conseguir me tirar do sério. Mimada insuportável! E Gustavo é o verdadeiro bundão come corda, não sei se dou conta disso.", gritava o pensamento de Rebeca.
Elas esperaram na saída do palco. Thaís estava tão alegre que foi capaz de fazer Rebeca relaxar.
− Você viu Miguel flutuar?
− Não! Como assim? – espantou-se Rebeca.
− Ainda bem, tomara que mais ninguém tenha notado.
Então eles saíram. Caio abraçou e beijou Carol e em seguida Rebeca. Miguel agarrou Thaís pela cintura, subiu-a no alto antes de beijá-la. Marcos saiu com as duas baquetas na mão e estendeu uma para Priscila:
− Presente para você. Uma fica comigo e a outra com você.
− Assim vão ficar separadas – disse ela, mordendo um canto dos lábios.
− Não acho justo – respondeu Marcos antes de beijá-la.
Foi nesse exato instante que Lavínia chegou. Amarrou a cara mais contrariada e olhou para Gustavo:
− Vamos embora! O que eu tinha para assistir aqui já terminou.
Caio conversava com Miguel, abraçado a Carol. Ela tinha dúvidas se os ciúmes eram por Marcos ou por ele. Lavínia olhou para os outros sem graça.
− Nós estamos indo, galera. Ótimo show! Amei — disse Lavínia batendo palmas.
− Mais tarde é o resultado, não vai esperar? – respondeu Caio.
− Que isso, prima! Roqueiro não morde! – falou Marcos.
− Você também vai embora, Gustavo? – perguntou Thaís, reparando a decepção de Rebeca.
− Não – respondeu Gustavo buscando os olhos de Rebeca que o evitava – eu te ajudo a arrumar um taxi lá fora, Lavínia.
Ela acenou e saiu. Gustavo foi atrás. Rebeca virou para Thaís e falou ao seu ouvido:
− Não vou dar conta disso. Que garota insuportável.
− Você é mais inteligente do que ela Rebeca, use isso a seu favor.
Por um instante Caio se preocupou com Lavínia, mas logo todos voltaram a conversar e seus pensamentos diluíram. Quando Gustavo voltou, a configuração de três casais mais os dois era clara e ele tomou atitude para encerrar o impasse. Parou diante de Rebeca, na frente dos amigos, puxou-a pela cintura, passou as mãos debaixo de seus cabelos e a beijou. Rebeca sorriu antes do beijo, também não estava a fim de passar o resto da noite se escondendo de todos só para ter o que já era seu.
A galera aplaudiu e brincou. Até Priscila parecia a mais companheira das amigas. Ela reuniu os oitos e pediu para alguém tirar uma foto, que imediatamente postou nas redes sociais.
***
Marina abriu o aplicativo e viu a foto que Priscila postou. Ela não imaginou que revelava para as sacerdotisas mais do que a confirmação de que seu plano em reuni-los no carnaval estava dando certo. Ela revelou a identidade da menina da fogueira. Marina identificou Thaís na foto e enviou para Perla: "A garota entre Rebeca e Priscila é a destinada à lenda. É quem eu encontrei perto das cinzas e da pedra. Priscila afirma que ela vai estar na praia na lua de sangue.".
Marina mantinha contato frio e pontual com Perla. Ao mesmo tempo, se fortalecia em rituais individuais, sabia que a grã-sacerdotisa não hesitaria em sacrificá-la caso houvesse necessidade. Seu lema no momento era: prudência, fortalecimento e atenção. Sem saber, agia com Perla exatamente como Perla agia com ela: "manutenção até saber qual será o destino".
Perla também se concentrava em fortalecer e agradar a Deusa, ainda tinha esperança em não perder o par de pedras mágicas. Preparava rituais e sacrifícios oferecidos à Deusa. Depois de ler a mensagem de Marina, se dirigiu aos fundos da casa da Irmandade.
O ar parecia parado, nem as folhas das arvores se moviam. Ela lançou o círculo mágico. Aproximou a foto do celular para enquadrar o rosto de Thaís que perdeu um pouco de nitidez. Ainda assim, seus traços delicados transpareciam fragilidade. Buscava a razão para aquela menina ser a escolhida pela Deusa, mas o orgulho a cegava, não era capaz de encontrar um brilho no olhar da menina. Depois de um tempo, ela abandonou o celular fora do círculo e desenhou o rosto de Thaís na terra, ao lado da fogueira:
— Essa menina ainda é muito jovem minha Deusa, não suportará e nem saberá como utilizar esse poder. Eu lhe servi todos esses anos fazendo o melhor uso de seus amuletos. Dirigi a senhora todo o meu desejo e disciplina. Mereço seu reconhecimento! — suplicou Perla.
Todos aqueles dias, depois que voltou da cidade em que Marina e os outros moravam, Perla se isolou na Irmandade. Pediu que as sacerdotisas a deixassem por alguns dias a sós, a fim de se aproximar da Deusa e obter as respostas que procurava. Algumas discordaram, disseram que teriam mais forças juntas, mas foi em vão. Ela passou noites e claro lendo escritos antigos, fazendo rituais e feitiços.
A exaustão por tanta energia gasta naqueles dias misturada à cobiça dominou Perla. Diante da imagem da sua rival, ela sucumbiu à maldade. Sem aviso, uma chuva caiu torrencialmente sobre seus ombros, mas ainda assim, Perla se entregou a um ritual destrutivo.
***
As apresentações do festival chegaram ao fim. Os jurados trabalhavam na apuração, em breve o vencedor seria anunciado. Os amigos se dispersaram em casais. Alguns foram lanchar nas barracas em torno da arena do show e outros foram descansar debaixo das arvores.
Gustavo e Rebeca escolheram uma arvore imensa e que abria em vários galhos fortes. Sentaram-se embalados por alguns rocks antigos que o DJ tocava no palco. A arvore ficava no alto de uma pequena colina, bem próximo à arena, e eles podiam ver os roqueiros pulando e se esbarrando em frente ao palco.
Caio sentiu-se sufocado no meio da multidão, convidou Carol para passear na beira do lago do parque. Poucas pessoas caminhavam ou conversavam no gramado em volta do espelho d'água. A noite de lua nova estava negra e salpicada de estrelas, era possível ver apenas as sombras das arvores mais próximas e as águas do lago que refletiam o céu.
− Aqui é mais bonito à noite, não é possível ver a outra margem da lagoa, é meio arrepiante – falou Carol.
− É como se algo inesperado pudesse sair de lá a qualquer momento — angustiou-se Caio sem se lembrar do porquê.
De repente as águas do lago começaram a se agitar ao longe, não era possível compreender o que acontecia. À medida que a agitação se aproximava da margem, o barulho também aumentava.
− O que está acontecendo? – disse Carol, se levantando da grama.
A velocidade da coisa incompreensível aumentou e o vendaval chegou, antecipando a força do que viria a seguir. Então, Carol e Caio sentiram as gotas da chuva bater na pele como pontadas de faca. Correram o mais rápido que conseguiram, mas a tempestade foi mais rápida. Atingiu a arena antes deles.
Imediatamente houve um susto geral com a força da tromba d'agua. As gotas espessas e em grande volume caíam na grama e na terra formando as poças rapidamente. As rajadas de vento intensificaram o tumulto. As pessoas começaram a correr e se aglomerar em direção à saída do parque. De repente, as telhas de alumínio do palco voaram em direção à aquelas pessoas.
Thaís e Miguel estavam no olho da multidão e não conseguiram evitar que o desespero os arrastasse. As telhas voaram sob suas cabeças atingindo pessoas a poucos metros deles. Eles sentiam seus corpos se esmagarem. Thaís, mais baixa e frágil, tinha dificuldades para respirar. Miguel sentia seu sofrimento. A água no chão já cobria os tornozelos e continuava a subir rapidamente. Ele olhou para cima, havia uma passarela à quase dois metros sob suas cabeças. Quem estava lá em cima tentava puxar quem estava lá embaixo. Não era possível alcançá-los com as mãos. Miguel fez Thaís escalar em suas costas, mas ainda assim era impossível tocar os braços salvadores. Então, Thaís olhou nos olhos de Miguel:
"Você pode flutuar", disse dentro da sua cabeça.
Ele foi tirando os pés do chão até que alguém da passarela agarrou a mão de Thaís, puxando-a.
− Agarra o meu pé! − gritou ela.
Mas, já era tarde demais, distante demais porque a multidão arrastou Miguel para longe. Lá de cima, protegida pela cobertura da passarela, Thaís não sentia mais as gotas grossas como cristais quase perfurarem sua carne. Mesmo com os olhos encharcados com as lágrimas, ela podia ver a multidão se esmagando, pisoteando uns aos outros numa busca covarde por sobrevivência.
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