XXVIII - Sem um coração que sente
Mike entrou em casa a gritar:
– Feito!!
Rob espreitou o átrio, enfiando a cabeça pela nesga criada entre a ombreira e a porta da sala que acabava de abrir.
– O que é que está feito?
– O meu trabalho de Desenho Gráfico! E tive um "A"!
– Parabéns, Mike – felicitou o feiticeiro com um dos seus raros sorrisos. – Hoje, o Brad também trouxe boas notícias para casa. Teve um "A mais" no seu projeto de química sobre a depuração da água da escola. O professor gostou muito do que ele fez e anunciou que irá enviar a proposta imediatamente para o conselho diretivo. As ideias do Brad serão aplicadas até ao verão do próximo ano. Ou seja, no final desde ano letivo.
– Excelente! E tu?
– Passei a todas as modalidades desportivas com grandes notas. Nunca tive menos do que "B".
– E esse "B"... foi a quê?
– Esgrima. A máscara distrai-me. Vejo mal com ela posta e erro algumas posições. Também descobri que não gosto de esgrima. Espadas, espetar alguém... Escolhi a disciplina por causa das espadas, mas sou muito desengonçado a usá-las. Pareço um pateta.
– Nunca tinhas praticado esgrima.
– Não, Mike. Nunca.
– Bem, um "B" não é mau.
– Não, não é.
– E o futebol? Com e sem nódoas negras?
– Um "A" com distinção e um lugar a titular na equipa. O treinador gosta muito de mim, dos meus dotes futebolísticos. Diz que se me aplicar mais poderei vir a jogar profissionalmente daqui a dois anos.
– Profissionalmente? – admirou-se Mike.
– Sim. Profissionalmente! – Rob repetiu a palavra com eloquência. – O treinador diz que há clubes que mandam olheiros às escolas secundárias e que costumam contratar jovens para jogar nas suas formações de juniores. Se forem mesmo bons, passam logo para a equipa principal e disputam o campeonato regional.
– E tu queres isso? – admirou-se. – No início do ano disseste que não gostavas dos gritos do treinador.
O feiticeiro acariciou o queixo, pensativo.
– Pois disse... Entretanto, mudei de ideias. Queria experimentar, um dia, fazer outra coisa para além de ser um estudante do secundário. Ser futebolista pareceu-me uma boa alternativa. Durante alguns anos, enquanto puder disfarçar os meus quinze anos, posso sê-lo. Jogar durante uma década, talvez. Depois simular uma lesão irrecuperável e acabar cedo a minha carreira. Abandonar os relvados em apoteose.
– Mas tu usas feitiços...
– Os verdadeiros craques são mágicos – contrapôs Rob com um sorriso.
Mike revirou os olhos.
– Não são mágicos como tu.
– Não uso feitiços quando jogo a sério. Descobri, aliás, que gosto bastante de jogar futebol sem recurso a truques. Dominar uma bola não é fácil. Exige muita concentração, uma coordenação especial entre o cérebro e os músculos. Força e precisão, em momentos diferentes. E também resistência, para aguentar correr durante noventa minutos... ou mais, se forem aqueles jogos decisivos que ainda têm tempo extra. Estou a revelar-me um interessado por futebol. Nunca pensei que me cativasse desta maneira.
– E eu também estou espantado com o que me estás a dizer. Nunca imaginei que pudesses gostar tanto de praticar um desporto em específico. Neste caso, o futebol europeu.
– Futebol só há um e é o europeu.
– E estás a mostrar-te fundamentalista! Olha só para ti, Rob Park.
– Quando gosto de uma coisa...
– Estás a fazer-me lembrar quando, há uns anos, aprendeste a tocar bateria e entraste numa banda.
– Cheguei a gravar um disco que vendeu algumas cópias naquela cidadezinha.
– Pois foi. Ainda temos um exemplar?
– Acho que sim. Está num dos baús ainda por arrumar. Nós costumamos colecionar muitas recordações dos sítios por onde passamos. Juntamos tralha especial.
– Isso não é uma indireta à minha capa e à minha medalha da águia, pois não?
– Não. Eu também gosto muito do meu chapéu de feiticeiro.
– Bem, Rob... Estou a ver uma falha no teu plano de te tornares num futebolista famoso.
– Qual é?
– É, precisamente, essa de te tornares um futebolista... famoso. A fama. Os jogadores que são muito bons passam a ser conhecidos. Tornam-se ídolos de muita gente. A sua fotografia aparece em todo o lado, a começar pelos jornais desportivos. Como é que ficas depois dessa lesão que te vai obrigar a terminar a carreira cedo? Por onde andares vão reconhecer-te como o tal futebolista.
– Hum, bem visto. Mas posso ser alguém parecido ao futebolista. Existem pessoas que são muito iguais a outras que não são parentes, que nem sequer se conhecem.
– Pois existem.
– E além do mais, volto a ser um adolescente de quinze anos. Nunca poderei ser o tal futebolista com essa idade.
– As pessoas vão achar que é uma grande coincidência e podem querer investigar o adolescente com cara de futebolista famoso.
– Depois de terminar a minha carreira, terei de desaparecer durante alguns anos. Regresso à mansão, ajudo o mordomo num dos seus projetos de recuperação de criaturas famosas. Faço algo diferente.
Mike assobiou.
– Tens tudo muito bem pensado. Vais querer avançar com esse plano.
Rob meditou durante alguns segundos.
– Estive a pensar nisso, sim, um pouco mais seriamente do que o habitual. Mike, só estamos no fim do primeiro semestre do primeiro ano. O treinador falou-me que poderei vir a ser contactado por um clube daqui a dois ou três anos, quando estivermos a finalizar o secundário. Por isso, não precisas de ficar muito preocupado com a minha saída da irmandade. Não vai acontecer para já.
– Se deixas de estar comigo ou com o Brad, teremos de chamar um outro irmão Park para ficar connosco. O Joe ou o Dave...
– Ou o Chester.
– Ou o Chester – concordou Mike, mas não deu particular ênfase a essa ideia. – E o mordomo terá de arranjar um sexto irmão Park. Talvez o Mark que antes fez parte dos irmãos, logo no início. Lembras-te? Hum... tiveste alguma visão do futuro recentemente?
– Não. Tenho estado ocupado com os exames, tal como tu e o Brad. Nunca mais fiz as minhas meditações reveladoras.
– E vais querer ver esse futuro? Tu a jogares futebol, eu e o Brad com outro irmão Park na nossa aventura numa outra cidade, numa outra escola?
Rob voltou a calar-se por mais um punhado de segundos.
– O nosso futuro vai ser diferente, Mike. Sei disso há algum tempo, mas estou a deixar as coisas acontecerem.
– Vais mesmo ser esse futebolista famoso? – E Mike franziu a testa.
– Talvez... Estão muitas variáveis à nossa disposição. Se selecionarmos as corretas...
– E quais são as corretas?
– Não posso dizer. Sabes que me é proibido divulgar as minhas visões. Irei criar um paradoxo se me puser com revelações antes do tempo certo.
– Ah! Os feiticeiros são sempre tão complicados! – queixou-se Mike.
– E os vampiros costumam ser impacientes até saciarem os seus apetites.
– Vou concordar contigo, irmão. – Esfregou as mãos uma na outra. – Sinto-me, neste momento, saciado. Tudo resolvido. O trabalho de Desenho Gráfico era o último que me faltava entregar e defender. As minhas avaliações terminaram! Um alívio. As tuas também terminaram e o Brad estará a terminar as suas.
– Sim. Hoje tinha o último teste, de Biologia.
– Ele vai safar-se bem. O Brad consegue sempre superar-se. Apesar de continuar a achar que ele é um pouco preguiçoso...
– Tu consegues ser mais exigente do que os nossos professores, Mike.
O vampiro fez um gesto, como que a desvalorizar a observação do feiticeiro.
– O primeiro semestre está feito. Temos de ir fazer alguma coisa para comemorar.
– O que sugeres?
– Ir ao centro comercial. Chegaram muitas novidades de jogos, por causa do Natal. Vamos fazer uns recordes de pontuação. Hum? O que me dizes?
– Boa ideia, Mike! – exclamou Rob. – Vamos esperar pelo Brad.
– Eu posso começar a esperar já.
Mike sentou-se no primeiro degrau da escada e ficou quieto, a fixar atentamente a porta da rua. Rob juntou-se a ele. De vez em quando, olhava para a sala e parecia meditar sobre um qualquer problema insolúvel que reciclava vezes sem conta na sua cabeça.
– O que se passa?
– Devíamos arranjar e limpar a sala, como fizemos com o quarto lá em cima – respondeu Rob.
– Isso já estava nos nossos planos para as próximas férias.
– Podemos não ter tempo...
– Nós temos o tempo que quisermos! – riu-se Mike. – E também o engenho. Mais uma pitada de magia. Temos tudo a nosso favor. Basta só querermos e os nossos desejos concretizam-se. É muito fácil.
– Podemos não ter tempo – repetiu Rob, e os ombros estremeceram.
– Estás muito tenso. As provas físicas esgotaram-te, ou quê? Nunca te tinha visto tão... apoquentado. Não é possível, pois não? Ficares esgotado.
– Posso ficar. Se não gerir bem a minha energia, posso ficar muito cansado ao ponto de precisar de dormir alguns dias de seguida.
– Mas não estás assim, pois não? É alguma doença?
– Não é nada.
– É falta de distração. Vamos jogar ao centro comercial e isso passa. Nem vais precisar de dormir.
Nisto, o feiticeiro confessou com timidez:
– Gosto desta casa.
– Também eu e também o Brad. Acho que o Brad gosta mais do que nós. Tem orgulho do átrio e do quarto, do alpendre e do relvado com a cerca pintada. O nosso irmão vampiro é um materialista. Se o deixássemos, acumulava coisas sem parar nos seus baús. Acho até que terá coisas a mais, que tu ajudas a camuflar com alguns feitiços de encolher.
– São pedaços do passado. O Brad aprecia agarrar com as mãos o que perdeu.
– Estás muito inspirado. Para a próxima não queres tirar um curso de literatura e deixar o desporto de lado?
– Pode ser.
– Tens jeito com as palavras.
– Tenho jeito para muitas coisas.
– Pois tens. És um tipo excelente para termos por perto. Especialmente se formos fazer obras dentro de casa. Rob, se não fosse a tua ajuda, nem eu nem o Brad dávamos conta do recado com o quarto lá de cima. Ou mesmo com a sala... é um bom projeto para as férias de inverno, sim. Precisamos de vários dias para tratarmos da sala, deixá-la apresentável. Nem falo em mobílias, nem em decoração. Só para deixar o espaço limpo e bonito, igual a uma sala normal. – O Mike ia dizendo estas coisas e mexia as mãos, a mostrar um entusiasmo satisfeito. O facto de ter terminado o período de avaliações, ao ter concluído o seu último exame e ao ter a certeza de que obteria boas notas, contribuía, seguramente, para o seu bom humor. – Será uma boa prenda para o Brad. Não concordas? Olha, agora tive essa ideia. Vamos tratar da sala só tu e eu, para surpreendermos o Brad. Oferecemos a sala limpa e bonita no Natal.
O Rob assentiu. Disse, a mastigar as palavras, relutante na revelação:
– Temos de adiar a remodelação da sala. Vai acontecer uma coisa.
– Que coisa?
O Brad apareceu, de repente. Escancarou a porta da rua com um baque, deixou-se ficar na soleira a arfar como um animal que acabara de fugir para salvar a própria vida. As suas costas formavam uma corcunda e havia gotas de suor a escorrer-lhe pelas faces. Um excelente teatro feito por um excelente ator, porque eles não tinham reações físicas às situações do dia-a-dia. Gostavam desse exagero dramático para terem alguma emoção postiça, embora também fossem incapazes de se emocionarem genuinamente.
Mike levantou-se, esticando-se de tal maneira que quase tocou no teto do átrio. Retraiu-se. Ele também era dado a rasgos trágicos e a inclinações cómicas como resposta ao que via nos outros, principalmente para não destoar. Quando se tratava de outro vampiro exagerado e intenso, acontecia deixar-se levar pela brincadeira e replicar as ações do mesmo modo, cheio de hipérboles.
– O que se passa? Essa aflição toda é por causa do teste de Biologia? – perguntou com uma gargalhada. – Acalma-te! Era o teu último teste, não era? Já terminou. Estamos todos livres dos exames. O primeiro semestre foi concluído.
Enviou uma curta mensagem telepática a Rob. «Não lhe fales na sala, por favor. Vai ser uma surpresa.» O feiticeiro não se mexeu.
– Então, Brad?
O vampiro fechou a porta da rua. O átrio, subitamente, ficou demasiado quente.
– Brad...
– A Anna Hillinger desapareceu – cuspiu Brad como se se quisesse livrar de um veneno que lhe enchia a boca. – Convidei-a para vir cá em casa, ela não veio. Julguei que tivesse ficado com medo... que tivesse desistido à última hora... Hoje, uma das amigas dela veio ter comigo e perguntou-me o que tínhamos feito com a Anna. No início, ri-me. Mas depois achei estranho e pus-me a fazer perguntas. A Anna não é vista desde anteontem, quando lhe dei a nossa morada. Portanto, concluí que alguma coisa lhe aconteceu. A Anna está desaparecida.
Mike escutou o relato do irmão atentamente, muito tranquilamente também.
Rob levantou-se e colocou-se entre os dois vampiros. Não iria haver nenhum ataque, mas o Mike, quando se tratava da Anna, podia ser imprevisível. O Brad não estava diretamente implicado no desaparecimento da moça, mas só o facto de que a sua ausência se pudesse dever a ela ter a sua morada e combinado vir visitá-los, lançava uma suspeita desagradável sobre Brad que levaria a uma discussão feia. Mike abanou a cabeça e continuou a abaná-la de forma automática, mecânica, repetitiva, o que era assustador.
– E o que sabe o Elliot? – perguntou Rob.
– Não falei com o Elliot... Achas que ele sabe alguma coisa? – arquejou Brad, trocando as inspirações pelas expirações, baralhando o mecanismo da respiração, a simular uma apreensão muito convincente.
– O Elliot sabe sempre muitas coisas.
– E tu, Rob?
– Eu sei as minhas coisas. Telefona-lhe. Usa o meu telemóvel.
Brad abriu o pequeno roupeiro do átrio. Agarrou na mochila do feiticeiro, vasculhou os bolsos exteriores e, à terceira tentativa, encontrou o aparelho. De alguma maneira, Rob tinha registado nos seus contactos o número do Charles Elliot.
O rapaz atendeu ao fim de dois toques. Já sabia que o Brad iria falar com ele, acabava de saber do desaparecimento da Anna. Tinha os seus informadores em campo, bastava fazer alguns telefonemas e já lhe dava mais informações. Perguntou pelo Mike, como é que ele estava a reagir. Brad olhou para o irmão vampiro que se mantinha a abanar a cabeça como um demente. A sua temperatura corporal tinha subido. A raiva cozia dentro dele. O Mike não estava a reagir bem. Pediu-lhe que se despachasse, que lhe ligasse para aquele número. Desligou.
– O Elliot vai descobrir o que se passa. E tu, Rob? Não podes também ficar a saber o que raio aconteceu com a Anna?
– Podia, mas não o quero fazer. Vou interferir e a situação já é suficientemente complicada.
– Mike, acalma-te.
Mike parou de se movimentar. Atirou-se para cima dos degraus, sentou-se com espalhafato, a madeira rangeu. Por pouco, não partia o início da escadaria.
– Estou calmo.
– Não parece...
– Como querias que reagisse quando vens nesse estado enlouquecido e dás-me uma notícia dessas?
– A notícia não é boa. Não sabia como podia dar uma notícia que não é boa. Pensei que o histerismo iria condizer com o que tinha para contar.
– Não. Não é uma boa notícia. De certeza que não é uma boa notícia.
O telemóvel apitou, uma série de bipes irritantes que fez Mike cobrir as orelhas com as mãos e Rob cambalear, chocado. Era a primeira vez que estava a escutar o toque de chamada recebida do seu telemóvel... e era uma melodia horrorosa e irritante. Brad atendeu. Disse vários hum-hum ao que o Elliot contava do outro lado da linha, num discurso um pouco atropelado. Agradeceu no final e voltou a desligar.
Encarou o Mike. Escureceu. Tudo ficou mais penumbroso em redor deles. Sério, começou:
– O Elliot diz que corre o boato de que viram o Johnny na cidade, anteontem, ao final do dia. Veio com o carro dele. Ele nunca chegou a sair do carro, não passeou pelas ruas a exibir-se. Mas era ele, de certeza, porque mais ninguém conduz aquele automóvel. Só o Johnny. Rondou a escola, há quem o tivesse visto na zona residencial do Oeste. Onde mora a Anna... É uma grande coincidência. O Johnny esteve na cidade, a Anna deixou de aparecer. O Elliot disse que a família do Johnny tem uma casa de férias numa povoação aqui perto, na zona balnear do lago. São, mais ou menos, dez milhas de distância. A casa está vazia nesta altura do ano. Seria um bom esconderijo para levar alguém. O Elliot pode tentar saber mais, mas a história parece-me plausível... Sei lá... O Johnny está à procura de vingança e sabe que a Anna é o teu ponto fraco, Mike. Faz sentido. Para mim, faz todo o sentido.
O Rob aconselhou:
– Não nos devemos precipitar.
– O que fazemos, Mike? – perguntou o Brad. – Acreditamos no Elliot e vamos espreitar essa tal casa de férias para ver se o Johnny tem lá a Anna?
O lábio de Mike arrepanhou-se. Os seus caninos tinham crescido e escorria por eles uma saliva pastosa e amarela.
– O Johnny tem a Anna nessa casa. E eu vou salvá-la – regougou.
O Brad apertou-lhe o ombro.
– Não, Mike. Nós vamos salvar a Anna. Iremos juntos. Os três.
Mike concordou e, de seguida, soltou um uivo como o mais tenebroso dos lobisomens.
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