XXIV - Dia de limpeza
No final de novembro aconteceram avaliações intercalares e foi dado aos estudantes dois dias de folga. Eles não precisavam de ir à escola quando os professores se ocupavam com reuniões e toda a gente celebrou efusivamente os furos no horário. Combinaram-se saídas ao cinema, passeios no parque, encontros nos clubes de leitura, sessões de desporto ao ar livre, aparecer no Music and Chips, grupos de estudo e até festas clandestinas entre aqueles que tinham a sorte de terem os pais fora.
O Elliot ainda tentou que o Brad oferecesse a sua casa para um desses encontros, regados a álcool e música alta, mas o vampiro inventara uma desculpa qualquer e acrescentara que os seus pais eram uns velhos, que nunca faziam viagens para fora da cidade, que teletrabalhavam, que eram muito ciosos do seu canto. A casa não estava disponível para festas.
Não chegou a contar ao Mike, mas o Mike descobriu de alguma maneira que o Elliot andava a fazer propostas para receberem os colegas na sua casa. Confrontou o Brad com isso e ele assegurou-lhe que nunca iria levar visitas sem que os irmãos concordassem. Voto unânime ou nada feito. O Mike sossegou, mas alguma coisa deve ter ficado a martelar-lhe na cabeça, pois quando chegaram os dias que tinham livres propôs fazerem limpezas.
– Vamos limpar o quê? – perguntou Brad. – Só o faço se o Rob der uma ajudinha com os seus feitiços.
– O Rob já nos está a ajudar. Foi ele que comprou os produtos de que vamos precisar para lavar tudo.
– Lavar tudo? Vamos limpar a casa toda?!
– Não, Brad – explicou Mike, impaciente. – Só vamos tratar de um dos quartos.
– E vamos precisar desses tais produtos?
– Estive a investigar e as pessoas normais limpam as coisas com produtos. Óleos para as madeiras, amoníaco para os vidros, lixívia para desinfetar espaços, líquidos com aromas sintéticos e sabão para lavar o chão...
– Usaste a internet para saber mais sobre como limpar uma casa? Que desperdício, Mike Park – ironizou Brad. – Olha, não sei se me está a apetecer utilizar o meu dia nessa tarefa. Parece-me... enfadonha.
– Vamos ser os três juntos a fazê-la. Já tratámos da parte da frente da casa...
– Com a magia do Rob!
– E o Rob também nos vai ajudar!
– Ah, bom...
Juntaram-se os três na divisão mais pequena do primeiro andar. Era um compartimento mais comprido do que largo, com uma janela estreita, ideal para receber visitas. Caberia uma cama, uma estante pequena e pouco mais. Mike anunciou, pomposo, que aquele quarto seria a fachada do piso de cima. Quando quisessem receber alguém em casa, apresentavam o átrio impecável, subiriam a escadaria, o corredor também tinha de ser aprumado, e teriam aquele lugar para apresentar. O quarto teria três decorações disponíveis, depois viam como podiam fazer isso, porque era suposto ser o quarto deles. Um único quarto que seria apresentado como lhes pertencendo. O Mike teria elementos a seu gosto, o Rob e o Brad também, de modo a personalizarem o espaço e que desse a ideia de que lhes pertencia. Mas o lugar físico, o quarto propriamente dito, era sempre o mesmo, porque eles gostavam de ter os seus quartos verdadeiros com um aspeto mais lúgubre para as suas meditações e outras atividades equivalentes a um descanso humano. Mike concluiu que estariam todos de acordo com a proposta e que podiam dar início aos trabalhos. Continuava com aqueles modos exagerados e até soava mais eloquente do que o costume.
– Quem queres tu receber cá em casa? – perguntou Brad, desconfiado.
Surpreendentemente, Mike encolheu os ombros.
– Estava a pensar no teu amigo Elliot.
– O Charles Elliot... mas qual a razão?
– Qualquer dia será impossível não o convidares para vir aqui... e tens de ter um quarto, Brad. – Apontou para o feiticeiro. – O Rob também tem os seus amigos. Eu sou menos sociável, mas é provável que apareça alguém que se queira dar mais comigo e que eu tenha que trazer cá a casa para manter o nosso disfarce. Já sabemos como as pessoas são curiosas e insistentes...
Brad soltou uma gargalhada.
– Um amigo? Estás a falar em trazeres amigos para o nosso quarto... E amigas?
– Amigas não é próprio, Brad – censurou Mike fazendo uma carranca. – Só podemos trazer rapazes. Ouviste, Rob? Ouviram-me bem os dois?
– E o que fazemos às amigas? – quis saber Brad, apagando o sorriso gigante que lhe enfeitava o rosto.
– Para essa categoria de visitas temos a sala.
– A sala está um nojo.
– Algum dia temos de tratar da sala, Brad. É simples.
Brad analisou o tamanho do quarto e o trabalho que implicava deixá-lo apresentável. A sala era, pelo menos, cinco vezes maior do que aquele compartimento. O que podia significar o décuplo do esforço! Porque ele multiplicava sempre por dez as suas estimativas mais baixas, para não ficar demasiado surpreendido.
– Isso terá de ser numas férias... – suspirou. – Tratar da sala vai levar-nos dias e dias e dias...
– Sugestão apontada. Nas férias, antes de começar o segundo semestre, vamos tratar da sala.
– Não era uma sugestão, Mike – resmungou Brad.
– Mas passou a ser. O Rob concorda.
O feiticeiro aguardava que os dois terminassem a conversa para poder avançar com o que precisassem dele. Era normal. Os vampiros debatiam interminavelmente sobre uma qualquer questão. Depois chegavam a um consenso que era, muitas vezes, tácito. Ele obedecia às ordens que lhe dessem. Aprendera que a sua opinião valia de muito pouco quando Mike e Brad discutiam, a não ser que lha pedissem. Uma vez tentara fazer-se ouvir e foi ignorado. Nunca mais repetira a ousadia.
– O Rob não disse nada – observou Brad.
– O Rob nunca diz nada – comentou Mike e parecia ligeiramente espantado.
– E faz muito bem. Quando teimas numa cena, não vale a pena tentar contrariar-te.
– Vês? O Rob aprendeu.
– Eu sou um vampiro como tu, Mike Park. Pelos vistos, os feiticeiros são mais inteligentes.
– Eu não disse isso.
– Ah... não interessa... – tornou a resmungar.
– Muito bem. – Mike esfregou as mãos uma na outra e anunciou, entusiasmado: – Mãos à obra, irmãos!
No fim das contas, arranjar, limpar e arrumar o quarto revelou-se mais divertido do que Brad antecipara. Aplacou os resmungos e eliminou a sua má vontade. Nenhum deles ficou sobrecarregado com a incumbência e contou sempre com a ajuda dos outros dois. Os momentos foram todos tão preenchidos que as horas passaram até depressa demais.
Fizeram uma remodelação completa.
Primeiro, retiraram o lixo e os detritos acumulados. Utilizaram sacos grandes e pretos, que fechavam assim que enchiam. O Rob levava-os para junto do ponto de recolha, aos dois e aos três, utilizando apenas a sua força física. Com o espaço desimpedido, passaram à fase seguinte. Retiraram o papel de parede velho, as tábuas gastas do soalho, as gelosias empanadas, os caixilhos da janela desconjuntados. O Mike apresentou-lhes uma encomenda que tinha feito na loja de ferragens e utilidades para o lar, que chegara por um estafeta, naquela manhã.
– Mas nós não sabemos como montar essas coisas! – alarmou-se Brad. – Nem sei pregar um prego!
– Calma, Brad – sossegou Mike. Estalou os dedos. – Agora, vamos precisar dos teus dotes, Rob Park.
O feiticeiro avançou. Conferiram ideias de bricolagem em vídeos na internet, perceberam como fazer algumas das tarefas básicas, como colocar um chão ou proteger as paredes, estucar o teto ou arranjar uma janela velha. Com esse conhecimento incorporado e os materiais à disposição em grandes pacotes embrulhados em plástico, Rob precisou apenas de alguns momentos de meditação. Agitou as mãos e, aos poucos, o quarto foi ganhando uma nova vida.
O teto foi pintado de branco e colocaram um candeeiro. As paredes foram raspadas convenientemente e aplicaram um novo papel de parede que cobriu todas as imperfeições. O chão foi inteiramente remodelado com um piso de madeira composto por grandes tiras envernizadas. O trabalho na janela foi mais complicado, porque tiveram de desmontar tudo e voltar a montar o conjunto no buraco aberto.
O Brad encarregou-se da janela. Protestava ruidosamente para si mesmo por ser um desajeitado, teve de desmanchar o que tinha feito por duas vezes, mas lá acabou por conseguir produzir uma janela bonita que fez questão de ser ele a encaixar no devido espaço na parede. A seguir, limparam tudo com os produtos que o Rob trouxera.
Os três admiraram o seu trabalho e, de seguida, o Mike agitou o cartão de crédito. Estava na altura de comprarem a mobília para finalizarem o quarto. Uma cama, uma estante, um tapete, umas cortinas e estava feito. Consultaram várias empresas de móveis na internet que faziam entregas rápidas ao domicílio, garantiam o serviço numa hora após a finalização da encomenda. Escolheram rapidamente os móveis que lhes pareceram mais adequados e depois ficaram à espera, sentados no chão. O dia estava a terminar, era perto das seis da tarde, as sombras alongavam-se pelo soalho brilhante.
– Quanto tempo levámos a fazer isto? – perguntou Brad, orgulhoso do quarto. Tinha o cheiro de coisa nova, de coisa lavada e desinfetada.
– Umas doze horas... – respondeu Rob com a cabeça encostada na parede, os olhos voltados para cima, numa atitude alheada.
– Tanto tempo?
– O Rob deve ter razão. Começámos de madrugada... deviam ser umas cinco, seis da manhã – aquiesceu Mike, que voltava a cabeça de um lado para o outro, a admirar o que tinham feito.
– Pois, deve ser isso... Doze horas... – disse Brad. – Esqueço-me muitas vezes como não nos cansamos. Não precisamos de dormir e podemos trabalhar ininterruptamente sem nos maçarmos.
– Em teoria, somos baterias inesgotáveis – gracejou Mike.
– Na teoria e na prática!
Uma risada perpassou por eles. Até Rob se riu, que parecia estar a resvalar para um dos seus habituais estados de transe. Os seus olhos estavam vidrados e a boca entreaberta.
– Também precisamos de ter as nossas pausas – avisou Mike, ficando mais sério. – O mordomo ensinou-nos bem essa lição e, de vez em quando, gostava de nos lembrar da regra para que a cumpríssemos sempre, mesmo que tivéssemos dúvidas ou não acreditássemos totalmente nela. É obrigatório descansarmos. Nos nossos padrões, claro. Fecharmo-nos ao mundo. Como é que o mordomo dizia?
– Entramos no casulo.
– Isso, Brad. Entramos no casulo... – Mike afastou a franja da testa fria. – Casulo... Faz sentido. Somos quase animais, temos de ter modos de animais.
– Lá estás tu com esses pensamentos que só atrapalham e nos deixam confusos. Para com isso, Mike... – Faltou-lhe, no entanto, convicção na reprimenda. Brad olhou para a janela aberta. O céu escurecia. – Como é que vamos fazer com o quarto?
– Não sei... estava a pensar deixá-lo mobilado, para já. A seguir logo o enchemos com as coisas normais que os quartos dos rapazes têm. Livros, revistas, discos, uma consola de jogos, brinquedos da infância...
– Livros e discos? Acho que já ninguém tem isso no quarto, Mike. O quarto do Elliot tem um computador, cabos, fichas, telemóveis antigos... relíquias eletrónicas.
– Certo. Vamos ter um computador também. No centro comercial há uma loja que recolhe aparelhos usados para reciclagem, escolhemos um portátil avariado e está feito.
– Não pode ser um computador demasiado velho, não será credível.
– Se tiver uns autocolantes e uns riscos... sim, será bastante credível.
– Costumo usar os computadores da biblioteca para fazer os trabalhos.
– Eu também, Brad. Raramente nos cruzamos, mas a funcionária costuma dizer-me que o meu irmão acabou de sair, quando tu não estiveste lá. Quer fazer conversa.
– É uma mulher simpática e muito prestável.
– Hum...
– E de quem será o quarto, para começar?
– Pode ser teu – respondeu Mike. – Aposto que o Elliot quer vir visitar-te.
– Ele fala muito nisso, sim. Estive na sua casa algumas vezes, quer que eu retribua a generosidade.
– Acaba por ser normal, sabes? Os amigos visitam-se. Uns aos outros.
– Eu sei, Mike. Eu sei.
O Rob suspirou:
– A Anna sabe.
– Está bem, o quarto começa por ser meu – concordou Brad. – Depois tens de arranjar cenas para deixares na estante para que o quarto pareça ser teu, Mike. Já que estás a estudar artes, podem ser tintas, blocos de desenho... o que é que os estudantes de artes têm nos seus quartos? Posters nas paredes também serve. O Elliot tem alguns, com imagens de jogos eletrónicos. Já o Rob, que está em desporto, podia ter...
Mike levantou uma mão.
– O que foi? – indagou Brad, estranhando a interrupção.
– O que disseste, Rob? – perguntou Mike.
O feiticeiro não repetiu a frase que atirou, à laia de bomba de fragmentação, para o concílio dos irmãos. Manteve a cabeça encostada na parede, aquela expressão distraída que podia indicar indiferença ou um mergulho no tempo.
– O que foi que disseste... Rob? – insistiu Mike, uma ruga a vincar-se-lhe na testa.
– O Rob disse alguma coisa? – estranhou Brad, pestanejando. – Estávamos a falar do quarto.
O pequeno silêncio derramou-se, pastoso e quente no ar.
– A Anna sabe o quê? – insistiu Mike.
Rob cruzou o olhar com o do irmão.
– A Anna sabe – repetiu.
Mike pôs-se de pé num salto, todo eriçado, caninos a crescerem na boca, unhas em riste nas mãos crispadas em forma de garra. Brad compreendeu que a tranquilidade daquele dia estava definitivamente estilhaçada. Também se levantou e, num movimento rápido, agarrou no irmão vampiro e impediu-o de atacar o irmão feiticeiro.
– Tu!! Tu contaste à Anna o que somos! – vociferou Mike, furioso.
Rob manteve-se sentado no chão.
– Sim, contei – admitiu, num tom tão calmo que se tornava ainda mais irritante.
– Acalma-te, Mike... Deixa o Rob explicar-se...
– Não quero que ele explique nada! Merda, Rob. Foste contar à Anna o nosso segredo... Porquê?!
– Ela quer ser tua amiga. Quis avisá-la dos perigos que corre.
– O Mike não é perigoso, Rob – comentou Brad admirado com o argumento tão simplório que lhe saiu da boca.
– A Anna não vai desistir... ela está interessada no Mike.
– Rob, tu não tinhas o direito.
Mike recuou de repente e colou-se à parede oposta, abrindo braços e pernas. Calou as últimas rosnadelas e sentenciou, a fingir que resfolegava:
– Vamos embora!
Brad abanou a cabeça. Aquilo estava a acontecer demasiado depressa, mesmo para ele que era um vampiro que podia acelerar os seus movimentos para velocidades incríveis que acabavam invisíveis para as pessoas comuns.
– Vamos embora para onde? – indagou, confuso. – Estamos à espera que nos venham entregar a mobília para o quarto. Devem estar quase a chegar... Disseram uma hora, não foi?
– Vamos embora desta cidade! – esclareceu Mike tenso, colado à parede como se esta o tivesse capturado numa armadilha que o prendera aí. – O nosso disfarce acabou de ser descoberto e já não estamos seguros.
Brad riu-se numa casquinada histérica.
– Mike, enlouqueceste? Trata-se da Anna! Não acredito que estejamos ameaçados só porque a Anna...
– Sim, a Anna é uma ameaça! – gritou Mike.
Brad colocou-se à frente de Rob, como se quisesse proteger o feiticeiro. Espetou um dedo.
– Não, Mike. Nós não vamos sair da cidade só porque a Anna sabe. Isso é uma estupidez. Estás a ser precipitado, estás a agir de cabeça quente. Se queres deixar a cidade, vai-te embora. Não nos metas no meio da barafunda. O problema é teu! No fim das contas, a Anna só anda interessada em ti.
Mike guinchou. Descolou-se da parede, pairou à frente do irmão vampiro. Descreveu uma pirueta no ar e transformou-se num morcego. Voejou de forma errática pelo quarto e saiu pela janela entreaberta. Lá fora, já era de noite.
Brad voltou-se para Rob, mãos na cintura, cotovelos espetados. As sobrancelhas franzidas uniram-se por cima do nariz.
– O que raio foste tu fazer, Rob?
O feiticeiro mantinha a sua pose molenga, nada afetado com a tempestade que surgira e se tinha ido embora, na esteira do morcego Mike, naquele quarto que cheirava a tinta, a cola, a madeira nova e a óleo de cedro. Continuava sentado no chão, as pernas fletidas, os braços apoiados nas rótulas, a cabeça pousada na parede.
– Não fiz nada que não devesse ter feito.
– Tens tido visões... e não nos tens contado.
– A Anna vai ser importante.
– Em quê?
– O Mike não se pode ir embora.
– O Mike não se vai embora – assegurou Brad e passou uma mão pelo cabelo. Estava inquieto e disfarçava assim. – Porque ele sabe que se for, nós temos de ir atrás dele e vamos ficar zangados uns com os outros. O Mike não quer isso. Nós somos a sua companhia.
– Família.
– Amigos, companheiros, irmãos.
– O Mike está mudado.
– Achas, Rob?
– Sim. E a culpa é da Anna. O Mike ainda não o sabe, mas vai ficar a saber.
– Não fales por enigmas. Isso... Isso cansa-me. Eu não me quero ir embora da cidade.
– Nem eu. E o Mike também não.
Escutaram uma buzina. Brad debruçou-se no parapeito, perscrutou a rua mais abaixo.
– Olha! Chegou a nossa encomenda! – observou entusiasmado.
Rob levantou-se com um vigor inesperado. Abriu um sorriso inocente.
– Vamos lá receber as coisas. O Mike vai voltar em breve. Mostramos-lhe o quarto novo e ele vai ficar de bom humor. O Mike não sabe ficar zangado durante muito tempo.
Piscou o olho ao Brad e cruzou a porta, enfiando asmãos nos bolsos das calças. Demasiado descontraído, considerou o vampiro.
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