Moldando um destino
Caim
Passei dois meses sem ver Miguel direito. Quando nos encontrávamos, eu mal tinha forças para falar. Ele ficava ali comigo, em silêncio, aguardando uma resposta. Sem forçar.
O frescor da maresia e a timidez do sol tornavam a praia mais fria às cinco da manhã. A praia do Leblon estava deserta, apenas algumas silhuetas solitárias se moviam na areia. Alguns vendedores ambulantes, transportando barracas e mantimentos.
Eu enxergava neles, valor, mas não em seus atos. Sobreviver como? Para que? —Meu pai está morto... —Tudo que se refletia em meus pensamentos era esta afirmativa. O que se faz quando tudo que você conhece como amor, sucumbe? Quando tudo que te valoriza, é arrancado de você? Viver uma vida com propósito? Não... Isso é papo de gente medíocre que não entendeu nem mesmo qual o sentido absurdo da vida. A falta de propósito.
"Se viver vale a pena, e a morte faz parte da vida, então morrer também vale a pena." Maldito e medíocre seja Deus... Queria ser capaz de matá-lo, matar também o parasita que causou mal ao meu pai.
—O ódio tem me consumido... —Respondi a mim, enquanto as lágrimas desciam por meus olhos frágeis.
Minutos mais tarde senti a presença de alguém que já me sentia familiar. Deixei meu corpo imóvel, para que não soasse como um ansioso. —O que faz aqui tão cedo? O que aconteceu? —Miguel sentou ao meu lado, preocupado logo nas primeiras impressões.
—Desde que meu pai morreu, tenho me sentido perdido. — O respondi.
—Você tem a mim. —Ele afirmou, voraz.
Quando o encarei, vi nele os olhos de caçador que havia circundado em outros momentos. Era o olhar de confiança, e de certeza nas próprias falas.
—Me perguntou uma vez sobre o desejo de ser um Destinado. —Olhei para o horizonte. —Sabe. Eu acho que atualmente não possuo outro caminho.
—Então vem! —Ele ficou de pé, e me estendeu a mão. —Eu vou te apresentar ao meu mestre, e você vai decidir por conta própria. Até lá, vamos para o teu novo lar.
Eu peguei em sua mão, e me ergui. "Novo lar..." Miguel era doente? Eu nem casa tinha. Como pode simular a ideia de que estaria indo para outro lar?
Cleiton o aguardava longe. Desta vez ele não se incomodou ao ver minha presença. Apenas entramos no carro. —Cleiton, vamos para casa. —Miguel deu a ordem para o segurança.
—Ei! —Cleiton gritou. —Você está bem? Parece fodido.
—Eu estou bem...
Ele ligou o carro, e caminho a dentro fomos até a casa de Miguel. O lugar onde ele morava era distante. Não no sentido de bairro, pois ainda era o mesmo, mas eu adentrava a uma área de mata que nem sabia que se podia morar.
A rua dele era de paralelepípedo e parecia ter sido ornamentada por uma escolha individual. Quando se atravessava a floresta, um enorme portão preto surgia no fundo. Pessoas vestidas que nem o Cleiton eram mais comuns.
Assim que passávamos por eles, adentrávamos em um jardim. Com chafariz no meio, e uma mansão ao fundo. Uma casa de cor madeirada e paredes de vidro. Dava para ver todo o movimento em seu interior. —Que era feito apenas por alguns empregados. —As domésticas, assim que viram o retorno de Miguel, logo se ajeitaram para atendê-lo.
Saímos do carro, e fomos juntos até a porta. Ela foi magicamente aberta pela mão calejada de trabalhadoras com a mesma cor que a minha. Soava-me confuso.
O que eu era naquele presente momento? Óbvio que não era como o Miguel. Pois sua pele brilhava conforme o sol dançava nela. Contudo, não estava servindo como meus pares. Não era tão negro quanto meus pares? Não igual a Miguel, mas um traidor dos meus semelhantes.
—Miguel! Quem é esse garoto!? —Mesmo tendo a mesma cor. Elas me olhavam como se eu fosse um pecado. —Ele está imundo, e fedendo! É um morador de rua!? A criança tá fedendo a mijo!
—É o meu amigo. Meu irmão. —Miguel afirmou com veemência. —Por favor senhora Cláudia, trate-o como se fosse de casa!
—Mas! —Desconcertada. Cláudia tenta contornar a situação. —Mas Miguel! Esse garoto é de rua! Colocar ele aqui em casa!?—Ela falava como se o ambiente fosse dela.
De maneira cruel o pobre fazia isso, não é? Protegia as coisas do rico como se fossem suas. —Seus pais não vão gostar nada disso!
—Eu me responsabilizo por eles. Quando for o momento para conversarmos. —Miguel afirmou. —Agora, por favor, fala para as meninas ajudarem ele a ficar confortável em casa. Deem a ele as coisas para tomar um banho, e ficar no quarto de hóspedes. Será o quarto dele daqui para frente.
Nos entreolhamos, e Miguel sorriu para mim. Eu fiquei surpreso com tamanha voracidade em proteger minha permanência. Ninguém queria que eu permanecesse no mesmo espaço que o outro durante todo uma vida. O cheiro de podre e mijo que a empregada argumentou me segue desde meus cinco anos. Eu sou tão nojento quanto as ruas que me acolheram.
As moças me orientaram para o banheiro, e lá me deram toalha, sabonete, coisas para passar na cabeça e eu só havia visto em comerciais de televisão.
Á água era quente, e doce. Eu bebia a água que caia do chuveiro pois me parecia mais limpa que as tomadas nas bicas ao ar livre. O sabonete que passava em meu corpo tirava dele um peso. Era incomodo a sujeira que descia junto ao escorrer sob minha pele. Eu de fato era imundo.
Meu cabelo, o mais maltratado pelo tempo, começou a ficar mole. Ele estava um black pequeno, já que a última vez que o havia cortado foi a seis meses atrás. O xampu —meu primeiro experimento com aquele químico —fez espuma. Que caiu em meu olho, e por alguns segundos eu fiquei limpando para que a ardência parasse.
Era isso que era ter o básico? Água quente, produtos de higiene, e toalha? Caralho, isso era gostoso para cacete! Queria que papai tivesse tido isto comigo. Pude até mesmo limpar minhas partes íntimas. —Meu pai sempre me assustou dizendo que se não limpasse, ela iria apodrecer e cair.
Quando sai do chuveiro, uma das domésticas havia deixado em cima da privada uma roupa nova. As minhas antigas não estavam mais ali. Eu vesti a roupa. Confortável, fresca, limpa. Estava com cheiro bom de perfume.
Quando sai, ninguém estava presente para me instruir. Eu pude caminhar sozinho pela casa. O lugar tinha coisas que nunca tinha tateado aos olhos. Esculturas de um material que parecia pedra limpa. Quadros? Acho que era esse o nome. Móveis que eram frágeis demais para o toque bruto de um imbecil. O chão não tinha sensação de poeira.
Distraído, olhando para o lado, bati naquilo que parecia uma muralha. Quando olhei para frente, apenas enxerguei um homem com o dobro do meu tamanho, e com a largura de um homem farto. Não me enganava. A gordura corporal dele não indicava só glutonia, como também uma força fora do comum. Ele tinha barba preta e usava óculos, e me olhava com ignorância.
—Quem é você? —Me questionou.
—Seu novo filho. —Debochei.
—Pai! —Miguel apareceu no fim do corredor, segurava na mão dois pratos com pão, presunto, queijo, alface e ovo. —Preciso conversar com o senhor.
—Fale. —O homem era carrancudo e ranzinza.
—Este é Caim. O amigo de que te falei. Ele vai morar conosco agora, e ele quer ser um destinado.
—Então cumprirá a promessa que me fez? —Promessa?
Miguel, cabisbaixo, acenou com a cabeça. Ele me encarou sorridente. —Eu vou ser um Destinado junto com Caim. O melhor que já existiu!
—Eu já não te disse? —Sorri de volta. —Ser o melhor, e ser o vencedor, são coisas diferentes!
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