Minha culpa
Miguel
Eu tive uma grande rejeição a literatura no início da minha vida. Meus pais e meus professores me introduziram a leituras como Graciliano Ramos; Monteiro Lobato; Clarisse Lispector. São ótimos autores, mas para uma criança de quatro anos? Lê-los foi um inferno.
Para eles isso não importava. O que era importante era formar uma criança culta. Com capacidades de raciocínio melhores que a maioria. Toda criança que nasce na pobreza ou classe média cresce ouvindo, de maneira pífia, de pais fracassados que a formação cognitiva de um indivíduo inteligente vem da sua capacidade utilitarista do aprendizado as ciências exatas.
"Deixem que eles construam nossas pontes, e que nós debatamos como o ser humano deveria agir." Papai dizia isso da maneira mais violenta possível quando queria me ensinar algo a mesa.
Pensamentos utilitaristas só serviam para criaturas ocas que não saberiam nem raciocinar sobre uma única centelha do que estavam verdadeiramente fazendo com suas próprias vidas. Contudo... se estivessem ganhando dinheiro, coisa que sempre lhes faltou na vida, era o suficiente.
Seres humanos que não sabem mais pensar por conta própria, e serem felizes por questões mais subjetivas, acreditam que o dinheiro é a única forma de alcançar a felicidade.
—Claro. Falo tudo isso no seio da minha riqueza.
A gente jantava em silêncio. Como acontecia na maioria das noites. Eu cagava para o trabalho do meu pai. Meu pai cagava para os afazeres da minha mãe. Mamãe nem se importava sobre eu ser seu filho.
Não era o exemplo de família boa que eu poderia dizer ao mundo. Contudo, em nossos mundos, não chateávamos uns aos outros.
—O que houve com o rapaz? —Mamãe perguntou a mesa. Nunca a vi falar de boca cheia, aqueles lábios finos nunca se abriram enquanto comiam.
—Ao... —Engoli a carne de peixe. —Caim? —A encarei. Papai e mamãe tinham parado de comer para me ouvir. Algo raro.
—Para não ter voltado durante a semana inteira... Deve ter gostado bastante de lá. —Papai pontuou.
—Não! —A voz subiu ao tom, sem intenção de ser grosso. —O Vargas ordenou que ele ficasse por lá. Ele quer treiná-lo por conta própria.
—O Vargas quer treiná-lo? —Papai me encarou, os olhos estavam frios. —Ele não gostou do garoto.
—Hã?
—Seu pai me contava que na época dele, os que eram treinados pelo Vargas iam justamente para desistir dos treinos. —Mamãe completou.
—Ele só treina alguém em particular quando o aluno está em um nível muito alto. —Papai aumentava em mim o medo em meu peito. —Ele não treina ninguém isolado. Só quando ele odeia. Até porque, ninguém que sobrevive ao Vargas chama aquilo de treino.
Com medo permaneci. Pensei que meu amigo estava progredindo, mas provavelmente era o contrário. Só Deus sabe as coisas que ele poderia estar passando na mão do mestre. A ansiedade começou a me deixar pensativo sobre inúmeros métodos de maus-tratos que podiam ocorrer.
"Eu não posso deixar isso acontecer! Amanhã! Amanhã eu vou!" Olhei para meu pai, pois algo me dizia para fazer. O enxerguei balançando a cabeça. Era como se ele estivesse ouvindo todos os meus pensamentos. Ou apenas havia visto o fogo em meus olhos. Era sua forma de dizer que eu não poderia fazer nada.
"Não há nada que eu possa fazer..." Só me restava esperar que Caim desistisse. Seria o melhor dos mundos. Eu continuaria fazendo essa tortura, mas ele não precisava.
Após a janta tomei meu banho e fui para o quarto. Meditei e orei pela alma de meu amigo. Já que era incapaz de tomar qualquer ação agressiva, então que minhas orações tocassem em sua alma.
No dia seguinte eu me aprontei mais rápido que o costume. Queria chegar no templo de treinamento o mais rápido possível. "Seis dias." Eu havia negligenciado a existência de Caim por seis dias. Como se não importasse o que estava ocorrendo a ele durante esse tempo.
Quando cheguei lá, encontrei apenas Vargas. Ele limpava o lugar com a calma de um senhor de idade —que era.
—Veio mais cedo hoje, Miguel.
—Mestre! —Eu pisei de sapato no templo.
Vargas rapidamente tirou do bolso uma moeda de cinco centavos e jogou contra minha traqueia. Pude senti minha respiração falhar, e o desespero agonizante de implorar pela vida através na garganta. Eu fiquei agachado, tentando me recuperar.
—Miguel, eu tenho extrema confiança em você, e em seu potencial. —Ele chegava perto, com calma. —Eu não treino muitos alunos por escolha, pois não quero fama ou dinheiro. Quero apenas criar guerreiros que consigam levar meu nome em honra. —Ele pegou em meus cabelos, e me encarou. —Não ache que nada do que eu disse lhe dá o direito de desrespeitar minha casa.
—Des-Desculpa! —Foi tudo que consegui proferir.
Assim que me soltou, e o ar voltou a circular para meu pulmão, comecei a controlar as batidas aceleradas.
—O que queria dizer?
Comecei a retirar os sapatos. —Onde está Caim?
—Ele está vivo, ainda. É tudo que você precisa saber.
—Mas...
—Miguel. Eu percebo que vocês possuem um vínculo, nojento, de amizade. —Ele respondeu. —Mas para mim ele não passa de um macaco sem família. Aquele verme vai sair daqui por desistência, ou morto.
—Você o odeia... —Eu sussurrei.
—Odeio qualquer macaco que acredite ser algo além de um animal. —Ele terminava de varrer. —Contudo, enquanto ele estiver aqui, você também estará. —Falou. —Trate de ficar forte desta vez. Eu nunca falhei em treinar um Sólis.
Arrastara Caim para essa teia de mentiras. Que espécie de amigo eu era? Tinha colocado ele nas mãos de um velho rancoroso. Temia que algo pudesse ocorrer de pior para Caim, algo além da desistência.
A culpa pairou em meu semblante. Fiquei calado e em choque enquanto os outros alunos começaram a aparecer conforme o horário da aula batia. Eles me viam, mas não chegaram a trocar palavras. —Ricardo até havia tentado, mas pela falta de sucesso deixou para lá.
—Miguel! —Batista chegou próximo, e deu algumas pontadas na minha perna. O suficiente para que eu acordasse. —Erga-se. Um parasita apareceu. É trabalho nosso.
—O que aconteceu contigo, prodígio? —Ricardo inclinou o tronco. —Parece morto, e nem enfrentou um monstro ainda.
—Vamos. —Batista ordenou outra vez. —Não temos tempo.
—Miguel! —Vargas abriu a porta do quarto onde torturava Caim. Lá eu pude ver o corpo dele pendurado por correntes que estavam presas no teto. Ele estava desmaiado, e cheio de feridas no tronco. —Irei assisti-los pela televisão. Me mostre que você não é um pedaço de merda, e eu alivio as coisas com seu amigo. — A porta se fechou.
Era isso. Eu só teria agora um caminho a percorrer. Ser o destinado mais capacitado para esse combate.
—Qual a localização? —Me levantei.
—Aterro do Flamengo. —Ricardo pegou o telefone. —Aparentemente alguns parasitas gostam de jogar basquete!
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