Deus odeio meninos pretos
Caim
No retorno para casa, naquele mesmo dia, Miguel me acompanhou. Ele não ia subir até o morro da Rocinha. Cleiton, nome patético, não o permitiria fazer isso, e eu compreendia.
—Caim. —Miguel me chamou. Após o cenário caótico que havíamos passado, a felicidade se apoderava de nós. —Você luta bem. Nunca pensou em ser um Destinado?
—Existiu uma época que eu tinha pensado em ser. —Apertei meus dedos contra a palma da mão. —Eu sinto que existe algo em mim além, sabe? —O olhei de relance. —Uma força não explorada.
"Merda. Expus meus desejos a Miguel." As pessoas sempre zombaram dos objetivos que tive. E eu sempre os retirei da minha vida nesses momentos. Bem... foi bom tê-lo como companhia por este raso tempo. Eu era contra qualquer pessoa que diminuísse minhas ambições. Mesmo que dentro de mim, sentia ser incapaz de alcançá-las. Não cabia a mim dar resposta a capacidade de realizá-los, mas também não dava a ninguém o direito de menosprezar minha vida.
—Eu acredito que você seria um Destinado incrível! —Miguel me falou com brilho no olhar.
Aquilo me deixou em choque. Nunca tinham acreditado em minhas palavras. Pior! Nunca apoiaram meus objetivos. Senti um aperto no peito e meus olhos se encheram de lágrimas. Lutei contra a vontade de chorar, mas algumas gotas teimaram a rolar pelo rosto. Não queria demonstrar fraqueza frente a alguém tão forte.
Miguel foi a primeira pessoa que acreditou em mim depois do meu pai, mas papai não contava da mesma forma.
—Seu pai é um pelo visto. Quer seguir o caminho dele? —Perguntei de maneira genuína.
Miguel balançou a cabeça em negação. —Quero ser tudo, menos ele. — Respondeu. — Tive uma ideia! Por que não vens treinar com a minha família? —Ele ficou debochado. — A minha família conhece um ótimo treinador, mas ele é... grosseiro.
—Eu agradeço. —Fiquei feliz com o convite. —Vou recusar. Preciso cuidar do meu pai. Se eu não o ajudar a comer, se proteger, beber, e sair da vida dele do nada. O velho vai acabar sucumbindo.
—Oh... —Miguel se chateou, mas compreendeu. Os olhos dele deslizaram por baixo. —As portas sempre estarão abertas! Eu sempre irei para a praia, principalmente para a gente curtir. Ainda mais agora nas férias da escola.
Nós paramos pelo caminho. Cleiton olhava para Miguel em silêncio. A seriedade simbolizava nosso limite. Miguel não iria além dali. O sol começava a descer o véu. Apertamos as mãos. Eu gostava daquele aperto, sabe? Miguel transmitia confiança através do toque. Aos poucos conseguia entender o significado da palavra "amigo".
—Até amanhã Caim!
Ele se virou e começou a caminhar conversando com Cleiton. "Até amanhã...Miguel..." O meu caminho não tinha segurança. Para mim, que mal havia tocado em livros —um analfabeto funcional —esse caminho também não havia Deus. Ele era frio, cruel, e me relembrava a vida que tinha.
Quando cheguei próximo a entrada da rocinha, meus pensamentos absortos pararam de me consumir como uma carne apodrecida coberta por vermes. A atenção que tinha foi voltada a realidade ao meu redor, mais especificamente, a luz vermelha que piscava em meu rosto.
Como um garoto nascido nas ruas, medo era algo estranho. Fui criado no meio do ódio e violência, visto como o diabo pelos considerados santos e a doença a ser curada pelos salvadores. Existia apenas uma criação humana que podia me parar. Pois ela não nasceu apenas para me matar, ela foi feita para me usar de cachorro. Me castrar. Utilizar meu corpo de mártir.
"O que a merda da polícia está fazendo aqui?" Fui tomado por um súbito nervosismo. Os pelos do corpo arrepiaram. Não havia escutado nenhum tiroteio. Até que me recordei.
— Seu pai me ligou! Disse que está ocorrendo dois ataques de parasitas na cidade!
Um ataque próximo a favela, é claro que os "heróis" da cidade não iam dar tanta atenção.
"Papai!" Eles estavam próximos demais do nosso abrigo. Por impulso, corri em direção a muvuca. Além da polícia, muitos moradores estavam ali. De repente, um deles me agarrou com firmeza.
—Não vai pra lá guri! —Disse no pé do meu ouvido.
—Que porra!? Me larga! Eu só quero ver meu pai! —Comecei a me debater. —Me larga filho da puta! —Mordi o trapézio do homem. Ele me largou na mesma hora.
Ele me xingou enquanto gemia de dor, mas não me importava. Corpos. Velhos, grandes, de pernas gordas e pelancudas. Me debatia em algumas delas para conseguir atravessar a maré de gente.
Quando entrei no meio da roda, meus olhos se recusaram a acreditar no que viam. As vísceras de uma criatura colossal — Um deus de carne. —Pendiam dos postes de luz., entrelaçadas nos fios elétricos. Um chuvisco rubro escorria delas, manchando o chão de sangue.
A criatura em questão jazia no chão, um ser grotesco e amarelado, semelhante a um pus. Seu corpo invertebrado lembrava uma lesma. Tinha dentes afiados que ladeavam uma boca vertical. Entre os dentes, as vísceras dos cães de meu pai: patas, cabeças, órgãos. Morreram protegendo o velho. Meu pai estava junto à eles, decepado, seu corpo assava no asfalto.
O sol ainda tocava seu sangue, o rosto falecido, as vísceras de um homem diabético.
Caí de joelhos no chão, e engatinhei até ele. —Pai... —Sussurrei. —Pai... acorda. —Era inútil. Tudo que eu fazia era me banhar com o sangue do único homem que se importava comigo.
—PAI!
O grito silenciou os murmúrios.
—Sai de cima dele garoto, a gente precisa limpar a cena. —Um dos policiais se aproximou de mim.
—DEVOLVAM O MEU PAI! —berrei para ele.
O policial me acertou uma bicuda na ponta do queixo. —Peixoto! Tira esse moleque daqui. Vai sujar a porra da rua toda de sangue o fedelho. —O brutamontes do seu capanga me pegou pelo pescoço como se eu fosse um saco de lixo. Fora da multidão, ele me arremessou na poça de mijo que ficava embaixo da passarela.
Eu demorei para sair dali. Comecei a aceitar que eu merecia a merda. O mijo. A escória. Meu pai e os cachorros. Mortos. Não havia sobrado mais nada no mundo que eu poderia considerar amor.
—Garoto. Moleque! —O rapaz que eu mordi veio para próximo. —Você é filho daquele homem?
Sai da poça, tentei limpar meu braço daquele líquido espesso. Balancei a cabeça, afirmando, e limpei os olhos.
—Após a Covid-29, essas criaturas que aparecem por causa do vírus têm causado uma desgraça... —O homem falava sozinho. —Desculpa pela perda, criança.
—Eu vou matá-los. —Cravei ali, minhas ambições. —Eu irei me tornar um Destinado, e vou matá-los.
Miguel. Era o único caminho qual eu poderia seguir.
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