A vítima errada
Caim
Merda... Que verão dos infernos! Uma vez ouvi dizer algo sobre um tal de aquecimento global. O mundo ficar mais quente? Soa quase como um fetiche. Igual o evangélico cheio de tesão pelo fim do mundo.
"Estamos matando o planeta!" Quando a tevê do bar não passa tragédia, diz que o planeta está morrendo. Baboseira... já viram o tamanho desse mundão!?
Os únicos que morrem nesse calor somos nós... E quando digo "nós", quero dizer aqueles desprovidos de teto. Afinal, qualquer morte é mais bem-vinda do que passar fome.
Deus. Será que essas pessoas aqui na praia passaram fome? Não me refiro àquela fome passageira. Falo da fome de virar o lixo da rua e encontrar lodo, chorume e fezes... Lembro-me que a última vez que fui dominado pela fome cheguei a comer...
Não imaginam a devastação que a fome causa. Ela retira seu ego. Desnuda o respeito. Viola a honra. — O termômetro apontava: 45 graus. O asfalto era um forno, e cozinhava o morador de rua.
Em quem eu pensava ao dizer tal coisa? Moro nas ruas! Ao me lembrar soltei uma risada amarga.
O que separa os seres humanos de mim? Dinheiro e beleza? É algo além? Eles não são iguais a mim... Suas peles brilham sob o sol. Já a minha? Enegrece. Queima como carvão. Torna-se Opaca. Rejeita a luz. O filho bastardo da pomba da paz.
Até o cabelo deles é distinto do meu. Para eles, a barba grisalha é símbolo de honra, beleza e maturidade. Para mim? Mais um motivo para a polícia desconfiar.
Privilégio. Meu pai dizia. Uma escravidão nova. Onde os mais aptos e inteligentes, segundo eles, se tornaram o topo da sociedade. Observe os homens brancos... Mal conseguem jogar o lixo no latão. São patetas privilegiados.
A existência de Deus. Um enigma. Um dia acompanhei a conversa interessante entre dois alunos da faculdade. Um deles lançou a pergunta:
— Se deus não existe, tudo é permitido?
Essa pergunta é de má fé. É quando Deus existe que matar em seu nome, estuprar em seu nome, roubar em seu nome, escravizar em seu nome, é permitido. Só existe mal, porque existe Deus.
Ele não existe. Ou possui cor, classe, ideologia, moralidade deturpada. Tudo que ele pode ser me faz odiá-lo.
Vaguei os minutos, e quase esqueci do objetivo de estar aqui. — Acabar com essa porra de fome. — Não dá para comer aqui na praia. Precisava subir a Rocinha com algo para vender, e conseguir comprar comida. Só precisava de um celular para vender! Compraria uma marmita farta e saborosa para mim e para o meu pai.
A fome me deixava fraco e indeciso. A praia movimentada do Leblon dificultava a escolha. Tinha que ser rápido. Brancos possuem síndrome do herói.
Um lampejo de oportunidade cruzou meus olhos. Achei uma presa: um garoto de uns quinze anos, sozinho, com a bermuda ensopada e suja de areia, e o celular desleixado ao lado.
Esse celular valia mais do que eu! Só precisaria furtá-lo e vendê-lo aos traficantes.
Saltei da orla para a areia. A areia queimava meus pés. Meu corpo fraco lutava contra o desmaio.
Aproximei-me com cautela, observei que ele nem sequer notou a presença. Minhas veias pulsavam, aguçavam meus sentidos.
Ele virou o pescoço para trás. Nossos olhos se encontraram. O que significava aquele olhar penetrante e cheio de significado? Era como encarar um antigo amigo. Alguém que já conhecia de outra vida.
Dentro dele havia algo especial, uma criatura que me conhecia. Diferente dos monstros que já vi, esse era interessante.
Peguei o celular com ganância. — Ei! Ladrão! — Ele gritou, mas percebeu ser ineficaz. Furioso, disparou em minha direção. A areia quente sugava meus pés., parecia me afundar a cada pisada. Meus pulmões queimavam e minhas pernas fraquejavam, como se eu estivesse dando a minha vida por mais um metro percorrido.
A orla era minha esperança. Lá, seria mais rápido que um raio. Esse moleque pode até vir atrás, mas iria até uma favela atrás de mim? Assinaria uma sentença de morte.
Olhei para trás, pronto para zombar dele. Contudo, para minha surpresa, meus olhos quase saltaram das órbitas.
Ele se jogou em minhas costas. Me surpreendeu com a agilidade. Caímos na areia. Os corpos rolaram, sem controle. A humilhação e a sujeira nos invadiram. O olhar dele me gelou a alma. Ele não iria desistir.
Eu estava feliz? — Pode vir, branquinho! — debochei, com um sorriso irônico. Ele correu até mim e tentou me agarrar. "O que ele está fazendo?!" Desferi um soco no nariz dele. A cabeça dele recuou com o impacto. Havia o acertado no osso, meu punho doía. Ele cambaleou, com o nariz sangrando, mas se recompôs.
Ele deu três passos trêmulos e vacilantes para trás. Lutou contra as pernas que ameaçavam cedê-lo. A pancada o deixara zonzo. O sabor metálico do sangue o fez engolir em seco.
O garoto soou o nariz com força. O sangue desceu pelas narinas, manchando sua boca e peito. Voltou a ter os olhos de um predador. Me gelava o sangue.
Sua voz era alegre e imponente, cheio de traços arrogantes, e carregada de uma confiança inabalável. — Eu sou melhor que você na luta, sabia? — Acreditava ser superior, e estava disposto a provar isso.
— Eu não duvido. Mas eu não estou aqui para ser o melhor. — Afirmei. — Querer vencer é o que diferencia o justo do parabenizado.
Ele avançou novamente. Tentei um soco no nariz, mas ele desviou com facilidade. Congelei. Ele havia girado o corpo, contornando minha guardo, e desferiu um golpe certeiro na minha costela. A dor me fez lembrar a fome.
Golfei ar e saliva. Esquivei-me dos golpes. Coloquei o pé por baixo da areia, e o ergui com um impulso brusco. A areia invadiu os olhos dele. Desorientado ele não foi capaz de defender meu soco.
Ele girou o braço. O golpe acertou a ponta do meu queixo em cheio. Acabei cambaleando para trás. As pernas não tiveram força, e a visão embaçou. Os músculos não me obedeciam. Ele limpou o rosto. Deu um sorriso heroico, e manchado de sangue.
— Olha! Se você não tivesse me roubado, seríamos ótimos amigos!
Uma luz parecia abençoá-lo. Tão intensa que quase me cegava. Em seus olhos vis, encontrei uma gentileza rara.
Um amigo? Isso nunca fez parte da minha vida. Sempre enxerguei outros garotos como ameaças. Amigo... O que esse termo belo significava? Eu mal sabia.
Os guardas municipais chegaram e se lançaram sobre mim, mesmo sem oferecer resistência. Um deles aplicou um mata-leão tão apertado mal conseguia respirar. Nada disso importava. Aquela palavra não saia da minha cabeça.
Amigo. Amigo. Amigo.
— Amanhã! — Gritei a ele enquanto era levado pela guarda. — Amanhã eu te encontrarei aqui! E vamos ser amigos!
— Meu nome é Miguel! Qual é o seu!?
— Caim!
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