Capítulo XXVI: No limite da esperança.
Quando Getúlio foi discutir com Tântalo, eu não soube o que fazer. Impedir ele? Bem, em retrospectiva parece óbvio, mas quando o cara mais tímido do grupo decide confrontar o chefão da arena acaba tendendo a ser chocante. Quando a explosão aconteceu e uma cortina de poeira cobriu minha visão, eu estava acabando de processar o acontecimento. Arthur e Alexandre estavam gritando desesperadamente:
— Getúlio!
Os dois chamavam sem parar, tentando ir até ele. Por sorte, Noah e Kuta são mais rápidos que eu, logo impedem os outros dois de correrem. A poeira abaixa completamente, e por trás dela vejo uma figura a mais que antes. O mesmo homem de cabelo preto e foice de antes — Guerra — estava segurando com suas mãos o machado de Tântalo. Atrás dele estava Getúlio, fisicamente intacto, porém certamente um pouco mais perto de ter um ataque de pânico.
Só então eu entendo. Getúlio poderia ter sido esmagado em minha frente. Fatiado em pedaços, morto sem chance de salvação, e eu não teria nem conseguido perceber a tempo.
— Por pouco, hein?
Guerra tenta forçar uma risada, porém acaba grunhindo pela força que estava exercendo.
— V-valeu, Guerra.
Getúlio agradece ainda sentado no chão, seus olhos arregalados enquanto encara a batalha de força dos dois homens à sua frente.
— Disponha. — Guerra vence o embate e empurra Tântalo alguns metros para trás, dando espaço para Getúlio. — Agora vai embora daqui, você e seus amigos!
Sem pestanejar, Getúlio corre em nossa direção enquanto quase tropeça meia dúzia de vezes. Arthur vai em sua direção e ajuda o rapaz, puxando-o pela mão. Enquanto isso, Noah havia voltado a tentar amarrar Damian, utilizando as próprias correntes dele para isso.
— Lucian, eu sou cego. — Noah dá ênfase na sua condição, tentando passar alguma mensagem que eu não estava captando. — Você pode por favor conferir se eu fiz isso aqui direito?
— Ah, claro. — eu respondo, me sentindo idiota por não ter entendido antes. Me aproximando de Damian, vejo que seus braços estavam enrolados de uma forma que parecia até mesmo dolorosa. Bem, ele pode não ser culpado por conta da droga mágica, mas não vou mentir que uma parte minha sente que ele merecia uma parte das consequências. Espera, como eu esqueci de um detalhe tão importante? — Noah, se afasta, eu preciso revistar ele. Ele pode estar carregando com ele uma dessas drogas.
Concordando com a cabeça, Noah me dá espaço para que eu investigue Damian. Eu olho em todos os seus bolsos, seu cinto e até mesmo escondido em sua jaqueta, mas não tinha nada que se assemelhasse a droga. Satisfeito — por conta do tempo limitado que tínhamos — eu me levanto, organizando o meu grupo:
— Pessoal, vamos embora! — eu grito para os outros cinco. O sátiro que estava conosco não estava mais presente, e embora eu sinta que isso seja estranho, não tenho tempo para procurá-lo aqui, não com Tântalo a solta e furioso. O melhor que posso pensar é que ele deu um jeito de fugir. — É perigoso aqui, temos que ir agora.
Assim que digo isso, ouço um grunhido de dor ao meu lado. Eu e Alexandre nos entreolhamos por uma fração de segundo, entendendo exatamente de quem se tratava. Sem dizer mais nada, nós apontamos nossas espadas para o pescoço de Damian, que estava lentamente acordando. Quando finalmente ficou completamente consciente, ele ignora nossa ameaça. Ele olha para suas mãos com seus olhos arregalados, e logo lágrimas começam a cair.
— E-eu... eu matei eles. — ele diz em um tom de puro choque e descrença. — Eu matei eles, eu matei... eles. Eu matei eles.
Ele repete várias vezes. Cada repetição tinha um tom diferente. Confusão, medo e raiva, como se só agora as memórias de suas ações estivessem inundando a sua mente. Eu e Alexandre nos entreolhamos novamente, agora com uma expressão de culpa. Acho que é melhor parar. Seus olhos dizem, e eu apenas concordei silenciosamente e guardo minha espada. Respirando fundo, eu me ajoelho e ponho minhas mãos nos ombros de Damian, que se assusta com o toque.
— Damian, não pense nisso agora. Temos que ir embora daqui, você sabe como podemos sair?
Eu pergunto, tentando manter sua mente no presente. Por sorte isso parecia ter tido algum efeito no rapaz, mas não o suficiente para que ele fique completamente racional. Ainda assustado, ele olha para a briga de Tântalo e Guerra e fica ainda mais trêmulo.
— Esse... esse não é o poder inteiro dele. — ele fala enquanto respira ofegante. — A gente tem que ir, a gente tem que-
Antes que ele possa terminar, um impacto barulhento atinge um dos destroços no final da arena, rompendo-o completamente. Olhando para a direção da luta entre os dois homens, vejo que apenas Tântalo estava de pé. Ele estava com um sorriso no rosto, e aos poucos a iluminação da arena ficava cada vez mais esverdeada em um tom escuro e macabro. Uma fumaça preta cobria até a altura de nossos pés, e a temperatura fica tão baixa que eu pude ver minha respiração.
A pior parte, entretanto, é a forma que Tântalo aos poucos assume. Seu rosto começa a se partir, e sua pele inteira derrete até que ela não se torne nada além de pó no chão. O que resta é apenas seu esqueleto, que não parecia nem ao menos ser humano. Era como aquele mesmo esqueleto que eu por pouco derrotei antes, só que muito mais macabro.
Por alguma razão, sinto a energia dentro de mim fugindo, como se o próprio ambiente estivesse roubando-a de mim. Nesse momento eu reafirmo o que já sabia: não podíamos ficar aqui nem por mais um segundo sequer. Vindo para nos salvar, Guerra volta para a luta de surpresa, dessa vez em sua forma de lobo, pulando em Tântalo e mordendo sua espinha, tentando arrancá-la.
— Damian, como vamos embora?
Eu pergunto da forma mais séria que possa, tentando deixar bem claro a nossa urgência — se é que isso já não estava óbvio.
— Não pressiona ele, Lucian, ele...
Getúlio tenta me acalmar, porém se afasta assim que eu o encaro.
— Você vê outra opção, Getúlio? — Alexandre pergunta. — Se não formos embora daqui agora, vamos todos morrer.
— E-então deixa comigo.
O filho de Dionísio se aproxima timidamente, ajoelhando-se do outro lado de Damian e perguntando com uma voz calma, mas com um certo toque de magia nela:
— Damian, eu sei que você está assustado e tem muito a pensar. Eu juro que você terá todo tempo do mundo para lidar com seus pesadelos assim que sairmos. — Getúlio diz com um sorriso gentil. — Mas para isso precisamos da sua ajuda aqui e agora, você pode fazer isso por nós?
Era uma sensação estranha, como se as palavras de Getúlio estivessem trabalhando diretamente com a minha alma, não só minha cabeça. Damian parecia ter sido completamente convencido, já que após respirar fundo, ele se levanta e corre para uma direção enquanto nos chama.
— Venham comigo!
Ele grita, e nós seis vamos atrás sem pensar duas vezes. Enquanto corremos, olho para trás para entender como andava a batalha entre Guerra e Tântalo. O dono da arena, com uma coroa brilhante em sua cabeça que aos poucos se formava, tentava inútilmente acertar Guerra, que era muito mais esguio, com seus ataques pesados, mas todos eles erravam seu alvo por muito. Isso é até Tântalo desistir de acertá-lo da forma convencional, agarrando-o pelo pescoço e arremessando-o para longe com toda a sua raiva. O esqueleto olha para nós com seus olhos emanando fúria, e sem dizer mais nada aponta na nossa direção.
Mesmo não tendo muito contato com magia, eu sentia que isso não era apenas um ato de intimidação e sim parte da conjuração de algo muito pior.
— Cuidado! — eu grito para alertar meus companheiros. — Esquivem!
Antes que eu possa seguir minha própria dica, uma mão verde gigante aparece na nossa frente. Todos, com exceção de Damian, se esbarram nela. A mão nos empurra na direção de Tântalo com força, nos fazendo cair no chão. Por ter sido o mais próximo de Tântalo, eu imagino que ele vá me atacar primeiro. Eu tento pensar em uma forma de fazer isso ajudar meus aliados a fugirem sem que eu acabe me prejudicando tanto, e logo tento usar o meu truque favorito.
Agarrando uma pedra no chão, eu conjuro minha energia na palma da minha mão, desenhando nela uma runa antiga. Eu miro a pedra na direção de Guerra, e assim que eu arremesso ela e me preparo para a segunda parte do truque, Tântalo agarra a pedra no meio do ar, depois esmagando-a com seu punho. De alguma forma ele parecia ter entendido exatamente o que eu ia fazer: a runa me permite teletransportar até a localização de pedra, e ele sabia disso. Meu truque, além de não ter funcionado, só parecia tê-lo irritado ainda mais.
Tântalo ergue seu machado acima de sua cabeça, usando toda a sua força na hora de derrubá-lo em mim. Sem dúvidas, esse ataque me partiria ao meio e ainda partiria o chão embaixo de mim. Eu pude sentir a força por trás dele. Minha única opção serviria apenas para salvar minha vida, mas sei que não me deixaria intacto. Bem, melhor todos os meus ossos quebrados do que virar "Luc" e "Ian".
Segurando meu escudo com ambas as minhas mãos, eu coloco ele na trajetória do ataque de Tântalo. Eu fecho meus olhos e me preparo para uma dor que não chega da forma que eu espero. Assim que o machado está prestes a me tocar, tudo escurece, e em meu ouvido o único som que consigo escutar é um zumbido interminável. Eu não conseguia sentir meu corpo. Nenhum membro se movia, minha energia não parecia passar por dentro de mim mais, era como se eu estivesse dormindo, só que ainda menos consciente do que isso. O zumbido fica tão alto que só então eu sinto algo: dor. Minha cabeça parecia que ia explodir a qualquer momento por conta do barulho.
Os momentos que se seguem são como pequenos cortes. Eu vejo meu braço amarrado por uma corrente sendo arrastado para longe. Eu vejo Guerra e Tântalo brigando com suas armas, faíscas e magias voando para todos os lados. Eu mal consigo perceber os lábios de Guerra se movendo para falar palavras que eu não escuto. Depois eu vejo o rosto de Arthur. Ele me olhava com preocupação e colocava suas duas mãos na minha frente. Um brilho ofuscante emana delas e eu apago novamente.
Quando eu acordo, é como se toda sensação do mundo invadisse minha mente ao mesmo tempo. Todos os sons voltam — embora o zumbido continuasse — e a luz em meus olhos também. Eu percebi que estava sendo arrastado por Damian e Alexandre em direção a um túnel na parede da arena. Na distância vejo Guerra e Tântalo. O ceifador repousa sua mão em seu colar e sorri. As sombras embaixo dele tremem e se distorcem, e dela sai uma mulher familiar: Tânato.
Eu ouço gritos ao meu lado. Palavras indiscerníveis, porém com um tom extremamente reconhecível: medo. Vejo que uma mão cobre meus olhos, e depois disso vejo pelas frestas apenas uma explosão de luz verde. Mesmo sem eu entender o que estava acontecendo, de alguma forma sinto que aquilo tinha sido a escolha certa, pois todo o meu corpo vibra e se arrepia com uma sensação intimidadora, como se algo que não devesse ser visto estava diante de mim, esperando para que meus olhos ousem encontrar essa fonte de poder aparentemente infinito.
Felizmente para mim, meu corpo logo volta a adormecer, e tudo fica escuro mais uma vez.
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