Capítulo I: Vasco campeão! E então... me acordaram.
Olha, eu não vou dizer que ser filho de um deus é de todo mal, mas...
Vejamos: se eu não estiver em um lugar protegido por magia bem forte, eu tenho 99% de chance de estar sendo seguido por uma criatura tenebrosa. Mesmo se eu estiver protegido, a qualquer momento uma profecia pode me fazer atravessar o mundo, ou então um deus revoltado pode me amaldiçoar.
Não é como se não existissem pontos positivos, é só que... eu prefiro não correr o risco de ser dilacerado quando eu decido sair na rua, entende? E é por isso que eu recomendo que, se você se identificar com algumas das características desse livro, é melhor que você feche, acredite nas mentiras que seu pai ou sua mãe te contaram e vá dormir tranquilo. Se você for um de nós, e quando você descobrir que é, eles também vão saber, e confie em mim: sua vida não vai ficar nem um pouco fácil depois disso.
Caso você só queira ler um "livro de ficção", ótimo! É muito bom que você não acredite no que está escrito aqui, eu até invejo isso. Não diga que eu não avisei.
O meu nome é Alexandre Nero, eu tenho doze anos e estou vivendo em um orfanato pelos últimos cinco meses. Felizmente, não é um daqueles orfanatos assombrados ou do tipo que eu saio extremamente traumatizado. Meu único incômodo foi ter sido uma das únicas duas pessoas a ficar aqui mais do que um mês. Ok, eu sei que não sou uma pessoa tão fácil assim de querer como filho, e sinceramente nem sei se quero ser adotado, mas isso feriu um pouco do meu orgulho.
O orfanato Flecha de Prata era até que legal, e não faltava nada. Eu podia jogar futebol quando quisesse, a comida era ótima e sempre tinha o bastante pra eu me encher e muito mais, e o pessoal era bem cuidadoso. Inclusive, eu estava tendo um ótimo sonho. Imagine o seguinte: final do Brasileirão, Vasco em primeiro na tabela, mas precisa ganhar contra o Flamengo para garantir que seja o campeão. Como de costume, um jogo tenso, e a cada gol eu ia a loucura (seja por bem ou por mal). Quando a partida estava prestes a terminar com uma vantagem pro Vasco, me acordaram.
Não, não era só um sonho, e eu me recuso a perdoar a Briar por ter me negado isso. Ah, eu esqueci de falar da Briar? Bem, sabe quando eu disse que estava aqui faz cinco meses com outra pessoa? Essa é a outra pessoa. Uma baixinha com a pele mais branca do que papel, olhos grandes e expressivos e uma reserva quase infinita de energia, o bastante pra eu me sentir um cara até que calmo. Para fins de dúvida, garanto que eu costumo ser sempre a segunda pessoa mais animada da sala, perdendo apenas para essa criatura.
— Alê, quer dar uma saída hoje?
Não me entendam mal. Eu amo a Briar, ela é minha melhor amiga aqui, e cinco meses junto com uma pessoa fazem com que vocês se aproximem muito. Mesmo assim, eu sinto que jogaria um martelo na cara dela se tivesse um martelo por perto.
— Tô de boa... — eu respondo com a voz ainda grogue, procurando uma nova posição e rezando que eu retome o sonho de onde ele parou. — Vamo dormir, garota, pelo amor de Deus, é o único dia da semana que a gente tem folga do treino.
Ah, sim, o treino. Infelizmente para mim, não era só o treino que me tornaria o melhor meio campo do mundo, e sim o treino de combate. Arcos, espadas, lanças, esse tipo de coisa. Sem querer me gabar, mas eu sei me virar muito bem com uma espada em mãos. Pelo que dizem, pessoas como eu — seja lá o que isso significa — não se dão muito bem quando saem de locais seguros como Nova Roma ou o outro acampamento, cujo nome agora não me lembro.
É legal ser um espadachim? Muito.
É cansativo treinar por várias horas seguidas? Mais ainda.
— Tá, você fica aqui e eu vou lá passear...
Ok, Briar, você venceu. Eu penso enquanto reviro os olhos e me levanto da cama, tomando muito cuidado para não cair na cama de baixo e dormir de novo "sem querer". Ela me olha confusa, evidentemente questionando o porquê de eu estar a seguindo mesmo depois de tanta reclamação. O motivo é óbvio, não acham? Eu sou um ótimo amigo e eu não consigo dizer não a ela, logo só me resta aceitar que eu não conseguiria dormir de novo se deixasse ela ir sozinha.
Saímos juntos do orfanato e vamos para as ruas de Nova Roma, e a cidade está como sempre: as ruas eram sempre impecáveis, feitas de tijolos de pedra ordenados de uma forma que todas as ruas parecem ser um grande mosaico. O orfanato fica mais distante do centro, cercado por um pequeno bosque — que faz parte do lugar — e com uma vista privilegiada do resto da cidade. Felizmente, tudo aqui era relativamente próximo, logo andar até os lugares era não apenas fácil, como genuinamente divertido. Talvez eu fosse enjoar depois de mais alguns meses? Sim, mas eu ia aproveitar enquanto ainda estou na fase do encanto.
— E então, Briar, alguma ideia para o seu passeio?
— Ah, eu ainda não comi, e você?
— Você acabou de me ver acordar.
Com uma expressão de "é, bem lembrado", Briar nos leva até o refeitório, que fica entre o orfanato e os dormitórios do Acampamento Júpiter. Caminhamos por aproximadamente vinte minutos até chegar lá, e foi aí que eu percebi algo bem estranho. A cidade não era muito movimentada, particularmente porque uma cidade magicamente invisível no meio do nada tende a não ter muitos visitantes, e de certa forma era uma cidade "apenas para convidados". Convidados sendo criaturas mitológicas racionais e pessoas como eu e a Briar.
Mesmo assim, ainda estava vazio demais. Não vimos mais do que dez pessoas durante todo o caminho, e durante esse horário da manhã o caminho até o refeitório costuma estar bem cheio de criaturas famintas devoradoras (também conhecidas como legionários do acampamento, sério, eles me assustam). De qualquer forma, eu evito fazer qualquer comentário que faça a Briar se desviar do caminho e começar uma jornada em busca de respostas, muito porque eu já estava morto de fome.
Seguindo a moda recente de sermos as últimas pessoas na cidade, o refeitório também estava bizarramente vazio, exceto por duas pessoas (que conseguimos ver, pelo menos): a moça que colocava as poções de comida, Mercedes, e uma garotinha que eu particularmente acredito que seja mais uma lenda urbana do que um ser humano. Sentada na mesa mais próxima do canto, na cadeira mais afastada de qualquer presença viva, lá estava Alessandra. Para aqueles que nunca ouviram falar dessa verdadeira figura, sua pele tem um tom moreno claro, seu cabelo é completamente preto — exceto por algumas mechas na franja e na sua longa trança, que são douradas — e, em geral, a aura dela era um fenômeno por si só. Por fim, ela estava usando, como sempre, seus fones de ouvido.
Quando você fala com Alessandra (ênfase em você, pois ela não soltou uma palavra nos cinco meses que estive aqui), é perceptível que tem alguma coisa meio estranha nela. Não é só a timidez ou o jeito que ela fica tão vermelha que parece que vai explodir quando qualquer um tenta iniciar uma conversa. Não, é algo além, e é uma coisa que eu ainda planejo descobrir no futuro. De qualquer forma, eu e a Briar já concordamos que algum dia vamos conseguir ter uma conversa com ela, pois a minha amiga insiste em dizer coisas como "ela é legal, Alex!" ou "eu gosto da vibe dela". E a filha de Ártemis, a dona do orfanato, com certeza seria interessante.
Pessoalmente? Eu concordo, ela parece legal.
— Qual é a boa de hoje?
Pergunto curioso, mesmo sabendo a resposta que Briar daria qualquer dia sobre comida.
— Hambúrguer, com certeza.
Ela responde quase salivando, me fazendo soltar uma pequena risada. Aquilo não era nem um pouco saudável, mas tecnicamente nós fazíamos exercícios todos os dias, então talvez compensasse. Vendo o meu sorriso, ela franze as sobrancelhas e cruza os braços.
— Você me olha assim sendo que vai comer pizza que nem todo dia, né?
— Que bom que você me conhece.
Eu respondo e vou sedento até os balcões, pegando dois pedaços de pizza e sentindo aquele cheiro maravilhoso. Sinceramente, a verdadeira mágica dessa cidade deve estar na comida, pois eu ainda não comi algo ruim desde que cheguei. Briar foi direto até o maior hambúrguer que viu no balcão, equipado com três carnes gigantescas e quem-sabe-quantos pedaços de queijo e bacon. Qualquer outra pessoa iria se maravilhar na primeira mordida e virar reforço para o Vasco na segunda, porém quem sou eu pra julgar?
Depois de agradecer a dona Mercedes pela ótima comida mais uma vez, eu e Briar olhamos um para o outro e concordamos com a cabeça, lendo a mente um do outro. A Operação Alessandra iria começar mais uma vez. Ao olharmos para o nosso alvo, percebo que ela estava nos encarando, virando o rosto e disfarçando de uma forma péssima quando é notada.
— Ela é... complicada.
— Olha, Briar, é muito cruel da sua parte julgar ela assim. — eu digo, mesmo que concorde cem por cento com a afirmação dela. — Nós dois não somos bem normais, né?
Obviamente, ela concorda, e nós dois começamos o nosso trajeto até a mesa. Uma simples caminhada, quando se tratava de Alessandra, era uma tarefa que necessitava de muita cautela. Pense em um animal selvagem, como um cervo. Se você se aproximar bruscamente, ele com certeza vai fugir, certo? Pois bem, aplique essa mesma lógica em Alessandra. Cuidadosamente colocamos nossos pratos e casualmente começamos a comer, evitando manter contato visual com ela. O momento era perfeito: estava completamente vazio, então naturalmente iríamos querer a companhia de alguém, logo ela não tinha álibi para fugir.
— Oi Alessa!
Briar fala educadamente enquanto sorri e acena. Ótima aproximação, concisa e educada, assim como ensinei. Céus, eles crescem tão rápido. Esperando a resposta, vejo que Alessandra acena de volta e vira para o seu prato, analisando a comida como se fosse o objeto de estudos mais interessante do mundo todo. Notando que o fone dela estava ligado, eu foco a minha audição um pouco mais, tentando ouvir qual música era.
Ouvindo aquela batida que soava como um metrônomo preguiçoso que decidiu tirar uma soneca entre cada batida, mantendo-se no ritmo apenas por obrigação, reconheci imediatamente que era "When the Sun Goes Down" do Arctic Monkeys. É o que eu ouviria? Não, nunca, mas posso respeitar.
— Essa é legal, mas você já ouviu I Bet You Look Good on the Dancefloor? Acho bem melhor.
— Hm?
Ok, eu confesso: eu não fazia ideia do que esse "Hm" significava. Desinteresse? Concordância? Confusão? Talvez ela só não tivesse me ouvido por conta do som estridente que estava saindo do fone de ouvido, ou talvez ela só não ligasse para a minha opinião. Eu suspiro e olho para a Briar, que me olha de volta e dá de ombros, quase como se dizendo em voz alta "se vira, parceiro".
Acontece que eu não consigo me virar tão bem com improviso, então a mesa, que estava dependendo de mim, ficou em puro silêncio por quinze segundos ininterruptos. A experiência de ser encarado pelas duas garotas por tanto tempo sem saber o que dizer é algo que eu jamais gostaria de repetir, e eu espero que essa memória possa ser apagada da minha mente o mais rápido possível, enterrada no mar de todas as outras experiências vergonhosas que eu já passei. Vendo que Alessandra estava próxima de chegar no "ponto de ejeção", Briar, a minha nobre salvadora, vem ao meu resgate.
— Nossa, tá vazio hoje né Alessa?
A garota sutilmente concorda com a cabeça.
— Você sabe o porquê? — eu pergunto curioso. — É meio estranho.
A garota sutilmente nega com a cabeça.
— E sua mãe não falou nada sobre isso?
Vem a vez de Briar perguntar, e quando eu vejo Alessandra negando com a cabeça mais uma vez, me vem a ideia intrusiva de pular pro outro lado da mesa e esganar ela imediatamente. Felizmente, sou um homem mais controlado do que isso. Eu — com muita maturidade — decidi focar no que é importante, tentando racionalizar aquilo. Se a senhora Ártemis não falou nada para a própria filha, então deve estar tudo bem, e nós só não fomos incluídos em algum evento importante.
Quando estava distraído, repentinamente sinto Briar tocar no meu ombro desesperadamente, e eu me viro para olhá-la, percebendo que a mesma estava encarando Alessandra. Quando eu vejo o que estava prestes a acontecer, meus olhos quase pularam da cabeça: ela estava prestes a falar. Nenhum som estava saindo, mas ela estava com a boca aberta e parecendo que estava processando algo. Infelizmente, minha expectativa continuou apenas na minha imaginação, pois ela decidiu se manter em silêncio, fechando a boca novamente.
Tudo bem, mas por que? Porque isso era prova de que ela estava se acostumando com a gente. Em pouquíssimo tempo ela vai abrir a boca, eu tenho certeza.
— Olha, Alessandra, já que tá meio vazio hoje, a gente tava pensando... — eu falo e olho para Briar, que concorda em aprovação, sabendo exatamente o que eu pretendia perguntar. — A gente vai dar uma volta, 'cê não quer vir com a gente?
Eu me considero uma pessoa que sabe ler os outros, porém essa habilidade não era necessária para entender que milhares de pensamentos estavam passando pela mente de Alessandra nesse exato momento. Como algo de último momento, decidi deixar um detalhe bem claro.
— Você não precisa falar com a gente, tá? É só andar, só isso, pode até ouvir música se quiser.
Ela olha para os lados, olha para mim e para a Briar com incertidão. Quando ela finalmente concorda com a cabeça, querido leitor, eu sinto que finalmente posso confirmar: a Operação Alessandra foi um sucesso.
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