Capítulo XXIV: O invencível.
Com um último ponto final, eu encerro uma história. Não essa, não, essa história aqui tem muito caminho a andar até chegar no final. A história que eu termino é uma de família, uma história de ódio, dor e eventualmente, amor. É a minha história, os livros que contam a minha vida para que a futura geração de herois não cometa os mesmos erros que eu, mas que sigam a visão que tenho. Em situações como essa, precisamos de pessoas que tomem a frente, pessoas que nos salvem de vilões ou até de nós mesmos.
E o meu papel é fazer os dois.
Eu fecho o livro em minhas mãos e respiro fundo. A Estética do Amor, o último ponto final. Com isso, só preciso esperar o tempo certo. Tudo estava se encaixando perfeitamente, e eu nem consigo acreditar que tudo que precisava para me dar a inspiração final era ser preso em uma cadeira de pedra e ser atacado incessantemente por águias. Ah, eu acredito que não tenha me apresentado, não é? Até agora você me viu algumas vezes, já ouviu falar ainda mais vezes, mas agora estou aqui em carne e osso, tomando os holofotes por um único momento de necessidade.
Eu, Tristan McClane, prometo que não vou demorar muito, afinal, o meu tempo já passou.
Desde que fui preso na maldição de Prometeu, aproveitei para terminar a minha mensagem para as minhas filhas e logo percebi que elas precisavam de um último empurrãozinho. Muitas coisas foram deixadas sem um fim, como os garotos que foram para o labirinto, por exemplo, e essa é a minha prioridade no momento.
Você pode estar se perguntando: Tristan, como você vai salvar eles se você está preso em uma maldição?
Eu lhes dou a resposta: o segredo é ter uma família muito poderosa. Quem diria que a sucessora de Zeus, Thalia Grace, seria tão gentil ao ponto de trocar comigo? Bem, trocar de lugar é um exagero. Por motivos de força maior, se ela ficar muito tempo nesse lugar, o Olimpo e todo o mundo mágico vai entrar em colapso total. Considerando que eu estou indo entrar no labirinto, onde o tempo passa mais rápido, eu tenho aproximadamente cinco minutos para fazer tudo que preciso. Sinceramente, é mais do que eu preciso.
Eu não me preocupei tanto com entrar no labirinto até receber uma mensagem estranha de um dos garotos que entraram lá. Kuta, o filho de Hermes, usou uma magia — que vi algumas vezes sendo usada por outros filhos de Hermes durante a guerra — que abriu um canal de comunicação entre nós dois. Eu fui pego de surpresa pela aparição repentina dele, claro, mas o que me surpreendeu de verdade foi quando ele entrou em desespero e começou a chorar. Ele chamava meu nome e eu respondia, e ainda assim parecia que ele não conseguia me escutar. Ele estava vendo alguma coisa, e quando ele mencionou a minha filha, eu entrei em desespero e corri até ela.
Felizmente ela estava bem, mas a mensagem de Kuta tinha vários significados possíveis. Dentre eles havia a opção dele estar vendo uma ilusão. Algo fabricado diante de seus olhos para gerar uma reação adversa bem efetiva. A segunda opção era ele ter visto uma possibilidade. Um vislumbre de um futuro que não aconteceu, ou até mesmo algo mais impossível que isso — um paradoxo de certa forma. Claro, até onde eu saiba isso é impossível, considerando que nem mesmo o titã do tempo tinha essa capacidade. Sabendo disso, eu sinto que eles estão em mais perigo do que eu pensei, logo decidi que precisava interferir.
— Você vai mesmo fazer isso?
A voz de Thalia me tira dos meus pensamentos, fazendo-me lembrar que ela ainda estava ali, tendo sua pele sendo atacada brutalmente por águias — mesmo que elas não consigam nem mesmo ferí-la.
— Eu precisava assinar o livro. Escrever é muito difícil com um braço, sabia? Ainda mais sem um apoio. — respondo, dando de ombro e colocando o livro em seu colo. — Não esquece daquele favor.
— Eu já estou fazendo mais favores do que você merece, Tristan. — ela responde com amargura em seu rosto — Você parece esquecer das minhas responsabilidades. Não somos mais crianças, e ainda assim eu me deixei ser convencida por seus caprichos.
— Não é um capricho. — eu tento soar o mais ofendido possível. — Não dessa vez, pelo menos. É muito importante, e eu preciso fazer uma aparição especial. Os moleques gostam desse tipo de coisa, você sabe.
Ela respira fundo e abaixa a cabeça, derrotada. Mesmo após todas essas décadas, minha irmã ainda se esforçava ao máximo para manter sua fachada de seriedade. Dizer que é uma fachada pode soar ruim, mas é exatamente isso. Claro, ela tem um senso de responsabilidade invejável, embora na sua essência, ela seja mais impulsiva que eu. Quando todos os semideuses estavam incertos sobre herdar o Olimpo, Thalia foi quem tomou a frente, mesmo que contra a sua vontade. Era um sacrifício que ela ainda estava se habituando, e soar como uma general para manter a persona de Zeus parecia ser seu jeito de lidar com isso.
Cabia a mim tirar um sorriso dela de vez em quando, mesmo que ela precise esconder o rosto para manter as aparências.
— Não esqueça, você não tem muito tempo.
Ela me lembra e eu me viro de costas para ir embora.
— Relaxa, eu vou dar um jeito. E não se preocupa, eu cuido do seu pirralho também, mesmo que você tenha escondido ele de mim.
— Eu não escondi ele. — um pouco da Thalia de antigamente volta no seu tom de voz. — Argh, eu não sei o porquê de eu ainda tentar discutir com você. Vá embora, cumpra a sua missão e volte, eu não posso deixar o Olimpo sem supervisão.
Acenando de costas, eu mergulho nas sombras sem dizer mais nada. Isso me lembra que eu precisava ter tido mais tempo para ensinar isso melhor para a Alessandra. Minhas primeiras vezes usando as magias de Hades foram confusas, por assim dizer, e eu gostaria de poupá-la disso. Bem, considerando as circunstâncias que me limitam, eu teria que confiar nela para lidar com esses efeitos colaterais de ter sangue dos três grandes. Para falar a verdade, eu não sei se seria a melhor pessoa para ensiná-la sobre essas coisas.
Cada trabalho de Hércules concede um artefato de um deus. Os artefatos são imbuídos com a magia daquele deus. O trabalho do Cérbero, ao ser terminado, me recompensou com um artefato que me possibilitou utilizar as sombras para me deslocar, assim como o Nico fazia. Quando você já tem aquela magia, no entanto, tudo que o artefato faz é deixar ainda mais fácil de usá-la. Então o meu caso é mais usar um foco do que usar algo inato meu, logo eu poderia acabar atrapalhando Alessandra se desse uma dica ruim.
No fim das contas a garota é uma gênia, ela vai dar um jeito.
Quando eu reapareço do outro lado das sombras, me vejo no galpão que o "grupo de resgate de Atena" mencionou para os deuses. Thalia foi gentil o suficiente para repassar essa informação e me contar onde eu poderia acessar o labirinto, e calhou de eu ter passado perto daqui quando resgatei as coisas deles do rio. Cara, como eu adorei ver a cara deles na televisão.
Eu poderia ter ido direto para o labirinto, mas usar esse tipo de magia atrairia a atenção do dono do lugar, e eu quero muito pegar ele de surpresa.
Entrando no galpão e ativando o símbolo mágico na caixa, eu desço as escadas despreocupado, estendendo e contraindo os dedos na minha mão repetidas vezes, me preparando para as inevitáveis lutas que iriam se suceder. Logo no primeiro corredor eu me lembro que esse lugar era um inferno para navegar, e eu não perco tempo em tentar seguir as regras desse jogo. Socando uma das paredes, eu abro um buraco grande o suficiente para que eu passe.
Do outro lado havia um grupo de monstros bem familiares. Gigantescos, nojentos, um olho só. Considerando meu tapa-olho, pode-se pensar que é hipocrisia da minha parte ofender monstros por terem um olho só, mas eu tenho um segredinho que não posso contar até a hora certa, então peço um pouco de paciência.
— O Leão!
O primeiro ciclope grita, correndo na minha direção com seu tacape em mãos.
— Você lembra de mim! — eu estalo meus dedos e lanço um raio em sua direção, evaporando-o imediatamente. — Que fofo.
Os outros ciclopes se assustam. Alguns correm, outros vem desesperados na minha direção, imaginando que se eles pelo menos conseguissem acertar um golpe, eu poderia cair no chão e ficar vulnerável. Eu nem ao menos dou a eles essa oportunidade, desarmando um dos seus e usando sua arma para atacar os outros em um corte horizontal. Para a minha sorte, esse ciclope estava armado com uma espada longa.
Não demora muito para que as hordas comecem a ficar mais raras, considerando que eu devo ter dizimado quase uma centena deles desde o momento que entrei aqui. Eles pareciam estar agitados, andando em grupo para procurar algo ou alguém. Considerando que as pessoas que eu estava buscando aqui dentro costumam ser caçadas por monstros, se deduz o motivo.
Depois de quase vinte paredes destruídas, eu vejo uma figura que não esperava. No meio de uma arena, ajudando um sátiro e empunhando sua foice de sempre, eu vejo ninguém menos que Guerra, meu ceifador favorito.
— Você tá bem, relaxa, a gente te tira daq-... — percebendo a minha presença, Guerra pausa sua voz e vira enquanto ataca na minha direção, mirando no meu pescoço para arrancar minha cabeça. Com a ponta dos dedos, eu agarro a lâmina da arma e paro ela a um centímetro de me alcançar. — Não acredito. Tristan, é você?
— Em carne e osso.
Eu respondo, sorrindo e atacando com a minha espada. O rapaz arregala os olhos e usa sua foice para bloquear, mas é jogado para trás.
— O que você veio fazer aqui? — ele ri, se levanta e vem na minha direção de novo, colocando toda a sua força em seus braços enquanto desfere um ataque que me partiria ao meio. — Tá vindo atrás do Hermes?
— Quase isso. — eu paro o ataque com minha espada. Guerra não perde tempo e tenta desferir um chute no meu joelho para me desestabilizar. Infelizmente para ele, minha armadura não só o impede de fazer isso como faz com que ele se machuque. — Vim atrás dos semideuses. Você sabe dizer para onde eles foram?
Grunhindo, Guerra começa a lançar um turbilhão de golpes, tentando atravessar minha defesa com um número de ataques que nenhuma pessoa normal conseguiria defender. Como ele sabe, no entanto, eu não sou uma pessoa normal, então bloqueio tudo com relativa facilidade. Ainda assim, era ótimo ver o moleque tão crescido. Quando eu conheci ele, era só um tampinha brincando com uma foice. Foi um dos meus primeiros alunos semideuses, e ele ficou tão forte quanto poderia.
— Correram quando minha coroa chegou. — ele insiste nos seus golpes, aumentando a força a cada ataque que fazia. — Não deve demorar muito pra você achar eles. E o Hermes, você acha que ainda dá conta dele, velhote? Cê não é mais Hercules.
Eu abro um sorriso.
— Não se preocupa comigo, eu nunca estive melhor.
Ele também sorri e abaixa a foice, ofegante.
— Tô vendo. — ele ri. — Você é uma aberração, cara. Ainda bem que você tá do nosso lado, eu iria odiar lutar contigo a sério.
— Vocês dariam conta. — eu respondo, enfiando a espada no chão e estendendo minha mão para apertar a sua. Ele retribui. — Onde que tá a Hazel? Queria ter um papinho com ela antes de ir embora. Faz tempo que a gente não se vê.
— Segue o corredor e vira a esquerda. — Guerra guarda sua foice e se afasta, voltando ao sátiro de antes que agora nos encarava com pavor. — Boa sorte, Tristan, te vejo depois.
Sem perder tempo, eu pego de volta minha espada e destruo a parede ao meu lado. Um clarão de luz ofusca meus olhos, e uma presença divina esmagadora faz com que eu instintivamente use minha mão para cobrir meu rosto. Era uma sensação tão familiar que eu já sabia o que era: Hazel estava em sua forma divina. Eu nunca testei o que aconteceria comigo se visse isso, porém sinto que não preciso ter esse tipo de problema agora.
— Sua alma está em minhas mãos. — a voz de Hazel ecoa pela sala, estremecendo meu ouvido. — Em nome de Hades, eu bano você.
Após outra explosão de poder, a luz some e eu posso abrir meus olhos em segurança. De pé em frente a um amontoado de cinzas estava Hazel. Ela parecia ser a mesma desde que virou uma deusa: quieta, calma, parecia estar sempre em paz com tudo. Francamente, eu não lembro dela ser assim sempre, mas não vou fingir que conheço ela bem. Nossos caminhos não se encontravam muito durante a guerra, e com certeza menos ainda antes dela.
— Fala, Hazel. — eu aceno para ela enquanto me aproximo. — Tá muito ocupada?
— Tristan...? Que surpresa. — ela abre um sorriso gentil ao me ver. — Como pode ver, acabei de terminar o meu trabalho. Posso ajudar com alguma coisa?
— Você viu um grupo de semideuses passando por aí? — pergunto. — Um molequinho de cabelo branco, o baixinho, um maluco de cabelo pintado, o da venda e um loirinho? É um grupo bem fácil de lembrar.
— Ah, sim. Eu me deparei com eles. É fascinante onde encontramos candidatos para ceifadores, não acha? — ela comenta e eu não entendo muito bem a última parte. Um deles vai virar um ceifador? Eu nem fazia ideia de quem poderia ser. — Não sei exatamente onde estão, mas tem alguém aqui que pode ajudar você.
Eu espero ela chamar a tal pessoa, e quando ela aparece, eu não consigo segurar a risada. Uma mulher enfurecida aparece derrubando uma parede assim que Hazel assovia. Era ninguém menos que a minha amigona Clarisse, a nova Ares. Ela me olha prestes a me atacar, e assim que me reconhece, parece que ela fica ainda mais inclinada a atacar.
— O que esse cara tá fazendo aqui?
— Vim salvar um pessoal e acabar com o Nolan, nada demais. — eu cruzo meu braço e empino o nariz. Ela fica muito irritada quando eu faço isso. — E você? Decidiu se juntar aos ceifadores?
— Não, nem vem. Eu vou atrás do Nolan. — ela se aproxima de mim e aponta seu montante na minha direção. — Hazel, fala pra ele. A missão é minha. Ele fica com a multidão de monstros que eu achei.
— Nem pensar. — eu interfiro. — Eu não tenho tempo pra desperdiçar com os peixes pequenos, eu vim aqui pra me exibir antes de voltar pra cadeira.
— Espera, como você saiu da cadeira?
Clarisse pergunta e Hazel parece igualmente confusa. As duas me encaram enquanto esperam uma resposta. Cara, a reação delas vai ser incrível.
— Eu deixei a Thalia no meu lugar. — eu abro um sorriso de orelha a orelha. Ambas as deusas ficam pálidas, se entreolhando e depois voltando a me olhar como se estivessem esperando eu desmentir isso. Felizmente, isso não vai acontecer. — Ordens da chefe, pessoal, eu tenho que acabar com a raça do Nolan, mas relaxa, Clarisse, eu vou deixar a glória pra você.
— Eu não acredito que você fez isso. Você deixou Zeus no seu lugar? — os olhos de Clarisse brilham em uma chama carmesim. — Você ficou doido?
— Relaxa, é só um passeio.
Clarisse respira fundo, depois esfrega sua mão no rosto e revira os olhos.
— Se a Thalia deixou isso acontecer, ela deve ter um bom motivo. — ela parece ceder por eu ter usado a cartada da chefia. Como é bom ter familiares em lugares importantes... — Escuta aqui, você não é mais o cara que era antes. Você tá enferrujado, e não tem nenhuma chance contra o Nolan, mas se você insiste, é seu funeral.
— Ainda sobrou força o bastante pra dar um sacode em vocês dois e ir jogar basquete depois.
Eu retruco. Ela range os dentes e se prepara para erguer sua espada, porém uma risada a impede:
— Haha, eu senti tanta saudades disso. — Hazel ri calmamente, nos observando com um olhar sereno. — As discussões entre vocês faz com que eu me sinta de volta aos bons e velhos tempos.
— Não tenho saudades nenhuma daquela época. A melhor parte de ser uma deusa é não ter que lidar com esse tipo de gente. — ela me olha dos pés à cabeça. — Tristan, não vou repetir, então melhor prestar atenção. Volta por onde eu vim e atravessa a multidão de monstros, entendeu?
— Pode deixar, capitã! — eu faço uma saudação militar. — Não me esperem, eu não vou voltar tão cedo.
Assim que eu digo isso, sinto o clima pesar um pouco. Clarisse desvia o olhar e parece se lembrar que eu tecnicamente deveria estar preso, e Hazel também evidentemente sente o mesmo. Me sinto mal pela Hazel, mas a Clarisse mereceu um pouco só pra baixar a bola.
— Você devia ver sua cara.
Eu solto uma risada e me afasto, muito para o incômodo de Clarisse, que se vira com um corte com sua espada enquanto solta diversas ofensas na minha direção. Eu gostaria de ficar um pouquinho mais, mas a verdadeira atração está em outro lugar. Conjurando magia nas minhas pernas, eu acelero bastante, correndo pelos corredores em direção ao som de dezenas de passos na distância.
Não demora muito para eu interceptá-los, parando na frente do caminho que eles estavam seguindo. Os monstros congelam assim que me percebem, e eu me preparo para uma luta muito rápida.
— Opa. — eu chamo a atenção deles, imbuindo eletricidade na espada que eu estava usando. — Faz muito tempo que vocês não me veem.
Se eu conseguisse reconhecer os monstros, talvez isso tivesse sido um pouco melhor. Infelizmente, todos eles são iguais do outro lado de uma espada, e em um campo de batalha eu não tenho oportunidades para conhecer meus inimigos. Eles, no entanto, se lembraram de mim. Por muitos anos eu tomei como missão executar o máximo de monstros inimigos possível, impedindo-os até de sair do Tártaro quando podia. Era a minha forma de buscar salvação para os semideuses. Sem inimigos, não haveria missões.
Sem missões, não haveria mortes.
— É sério?
Um deles pergunta. Era uma empusa, que tenta recuar assim que deixa de ficar paralisada de medo. Para a infelicidade dela, havia tantos monstros em um único corredor que ela não conseguiria recuar nem se quisesse.
— É sério, sério. — eu abro um sorriso e fico pronto para atacar. — Dá pra sentir vocês tremendo daqui, e vocês vão odiar isso.
Um piscar de olhos é o tempo que leva para eu atravessar de um lado do corredor ao outro. Meu impulso inicial me leva até os monstros, e minha lâmina encontra eles em uma explosão de raios que desintegra todos que a tocam. Meu segundo impulso vem acompanhado de um segundo corte, que dessa vez tem seu poder direcionado diretamente à minha frente, abrindo o meu caminho e me levando até o fim do corredor. O estrago foi absoluto, danificando até mesmo a espada que eu estava usando, rompendo-a em mil pedaços. Bem, não é como se eu estivesse esperando muito, e ela acabou durando bastante.
Aproximadamente metade dos monstros sobreviveram, porém eles ficaram tão assustados que pareciam ter esquecido que a deusa da guerra vagava nesses corredores, e ela estava só esperando por uma oportunidade para descontar a raiva que estava sentindo de mim. É uma pena, eu ficaria para terminar o trabalho, mas eu preciso deixar um pouco pra Clarisse também.
Enquanto me aproximo, de repente a mesma magia que Kuta usou para se comunicar comigo se ativa. Embora eu não conseguisse vê-lo, eu ouvia várias vozes claramente, e uma delas era familiar demais para não se destacar:
— E o que vocês acham que o filho de Poseidon fez? — era a voz de Nolan, soando tão arrogante quanto sempre foi. — Ele implorou pela vida dele. Vocês deviam ter feito o mesmo.
Olha, eu realmente não devia ficar interferindo nas missões. Eu sei, eu sei, eu cheguei até aqui e agora digo isso? Infelizmente é verdade. A regra dos deuses também se aplicam em indivíduos particularmente poderosos — e eu me incluo no topo dessa categoria. As punições do destino não seriam tão graves quanto seriam se a Clarisse interferisse, por exemplo, porém ainda seriam sentidas. O problema é quando as consequências recaem nos semideuses, e não em mim. Eu não poderia arriscar isso, e ainda assim eu estava correndo o mais rápido que podia para alcançá-los.
— O Alexandre não faria isso.
O filho da Thalia diz. Pelo som, eu imagino que ele esteja na frente de todos. Corajoso, gostei.
— Ele fez isso. — a voz de Nolan trai o sorriso estampado em seu rosto. — Ele implorou e disse que faria qualquer coisa para sair daqui com vida.
— E eu faço qualquer coisa pra você deixar a gente sair daqui.
Uma voz não muito familiar silencia o resto da sala, e demora para eu processar que era o mesmo rapaz que perdeu para a Alessandra no treinamento individual. Noah, o filho de Eósforo. Eu preciso impedir isso antes que seja tarde demais.
— Qualquer coisa, Noah? — Nolan soa intrigado. — Que tal vir para o meu lado? Você e qualquer outro que quiser se juntar a mim. Se você vier, tirarei daqui todos que não quiserem se juntar a nós.
— Não. — Noah responde indignado, me tirando um suspiro de alívio. — Quando eu disse todo mundo eu quis dizer eu também. Não vou ficar preso aqui, tio Hermes, é um lugar muito ruim.
— Então tá. — Nolan soa decepcionado. — E você, Kuta? Já teve tempo para pensar?
Kuta, o filho de Hermes. A melhor forma que eu posso descrever esse rapaz é "curioso". Desde que chegou no acampamento eu não sabia como lidar com o fato de que em algum momento o Nolan alcançou a proeza de ter um filho. Obviamente não foi uma paternidade muito próxima, o que tornava mais fácil de imaginar. Ainda assim, eu só consigo imaginar o que se passa na mente de um garoto como Kuta, que foi julgado incessantemente no acampamento. Ele era uma presa fácil para a língua de prata de Nolan.
— Eu escolho... o meu lado.
Kuta tenta soar o mais decisivo possível, mas a tremedeira em sua voz denuncia suas inseguranças.
— Não existe seu lado em uma guerra. Existem dois lados, e o meu lado não vai perder, moleque. — a voz de Nolan fica mais grave, mostrando sua raiva. — Você não precisa viver essa vida. As falhas alheias não podem ser atribuídas a você, é abaixo de alguém com nosso sangue. Eu te ofereço poder, dinheiro, tudo que você precisa. Não é isso que queria?
— Kuta, você não precisa disso.
Lucian interrompe em uma tentativa de impedir Kuta de tomar uma decisão ruim.
— Silêncio, filho de Zeus. Você acha que sabe de tudo, não acha? Pois você não sabe de nada. Kuta precisa de poder para salvar os amigos dele. Essas são palavras dele, não minhas. — Nolan soa enojado apenas mencionando a palavra amigos. — Você disse que eu sou assim por não ter amigos, não é, Kuta? Você tem razão, mas não entende que eu tenho algo ainda melhor. Eu tenho funcionários, pessoas que trabalham para mim por algo muito mais concreto que lealdade: dinheiro. Pessoas que nem Alexandre, que me pedem algo por um preço que eu sempre cobro. Confiança não nos leva a nada.
— Não levou você a nada! — ouço a voz e os passos de Noah se afastando da porta, indo em direção a voz do Nolan. Não faz besteira, garoto, fica de cabeça fria. — O Kuta é diferente, ele vai ficar forte do jeito certo.
— Com vocês? Que precisaram ser salvos por vários deuses para cumprir uma simples missão?
Por mais que eu odeie admitir, o Nolan é uma das poucas outras pessoas do mundo que eu sei que são adeptas a arte da provocação. Algumas pessoas levam jeito naturalmente, que nem o Dante e a Alice, mas outras se forçam a seguir esse caminho. Esse é o caso do Nolan, e o problema dele é ter um ego tão frágil que é mais difícil não ofender ele.
— Tio Hermes, você tem que parar com isso, nós ne-
Antes que Noah termine, Nolan interrompe-o:
— Submeta-se. — sua voz ecoa como um comando, e eu logo ouço Noah caindo no chão. — Se eu estivesse errado, acham que Eósforo estaria me apoiando? Vejam o filho dele, um servo sob meu comando assim que eu desejar. Vendo isso, sua resposta ficou mais clara, Kuta?
— Eu preciso ajudar meus amigos, pai.
Kuta parecia estar prestes a chorar a qualquer momento. Eu posso afirmar sem ressalvas que o garoto tem coração bom, ou pelo menos bem melhor que o do pai dele — coisa que não era tão difícil assim, agora que penso melhor.
— Você não vai ajudar ninguém assim. — Nolan parecia estar dando sua cartada final. Ótimo, ele convocou o poder de outro deus. — Você pediu para que eu te treinasse, essa é a primeira e última vez que ofereço essa proposta a você. Kuta, faça sua escolha agora.
— Se eu for com você, meus amigos vão ser levados para o acampamento?
A voz de Kuta mostrava que ele já estava convencido, embora relutantemente.
— Claro.
Eu não preciso ouvir mais do que isso. As mentiras de Nolan estavam indo longe demais, e agora era a hora de alguém parar ele. Se Kuta aceitasse aquele acordo, a vida do garoto nunca mais seria a mesma. Nolan era um corruptor — ele predava a bondade das pessoas, devorando-as por inteiro até que elas se tornem monstros como ele.
Eu finalmente vejo uma porta dourada na distância. O Nolan sempre gostou de se exibir. Um soco meu faz com que a porta seja arremessada para dentro da sala, interrompendo a mão de Kuta que estava prestes a se encontrar com a de seu pai. Ao me ver, os olhos dos semideuses brilham. Todos eles pareciam estar sentindo uma mistura de alívio e alegria. Esse é o tipo de coisa que me fez seguir em frente por tanto tempo. O símbolo da esperança precisa estar sempre à frente, sempre.
— Meio atrasado, não acha, McClane?
Nolan estava com a expressão oposta a dos semideuses: suas sobrancelhas arquearam para baixo enquanto ele fingia estar arrumando seu terno. Seus olhos brilhavam também, mas diferente dos outros, ele sentia apenas ódio.
— O que você tá fazendo, Kuta?
Eu ignoro ele, me virando até o garoto e repousando minha mão em seu ombro.
— Eu te chamei! — lágrimas encharcam seus olhos. — Todo mundo estava morto e...
— Kuta, eu não sei o que você viu, mas agora eu estou aqui. — eu tento confortá-lo. — Você realmente cogitou ir para o lado dele?
— Eu só queria que todo mundo saísse daqui bem...
Ele estava sendo completamente genuíno. Eu sabia disso desde que ouvi a conversa dele com o pai, porém sua expressão não deixava ele mentir nem que quisesse. Sua prioridade no momento era única e exclusivamente seus amigos. Seu destino não parecia nem ao menos ter passado em sua mente agora. Uma rara qualidade, mas uma que é linda de testemunhar nascendo na nova geração.
— Você acredita que ele consegue mudar o que você sentiu no acampamento? — eu pergunto. — Que vai apagar o medo que existe em você? Te tornar verdadeiramente forte?
— Eu achei que sim, eu não... eu só...
— Eu entendo. — eu abro um sorriso que surpreende o rapaz. Ele me olha confuso, como se estivesse esperando uma reclamação que nunca chegaria. — No seu lugar eu pensaria o mesmo. Seu pai é forte, poderoso, tudo que uma pessoa precisa hoje em dia. Por isso que vamos fazer um trato meu e seu, ok?
Eu fico de pé e subo a manga da minha jaqueta, dando liberdade para as minhas mãos. Olhando para os lados, vejo uma soqueira nos punhos do Noah, e é uma arma que me dá uma ótima ideia.
— Se eu, que sou só um semideus, fizer o teu coroa comer poeira no chão... — eu começo a minha proposta enquanto caminho até Noah e peço emprestado para ele. O rapaz concorda. Nolan me acompanhava com o olhar a todo momento, e parecia ter ficado especialmente incomodado quando tomei o objeto da mesa. — ...então você pode voltar com a gente?
— S-sim?
Eu me aproximo de Kuta e estendo minha mão até ele. Mesmo sem entender exatamente o que ouviu, ele aperta a minha mão.
— É um trato, então.
— Você é tão idiota, Tristan. — Hermes ri. — Não vai ser igual aquela vez com o Antares. Você não vai perder só o seu orgulho, eu vou destruir você por inteiro.
Ao falar sobre o meu orgulho, ele aponta para o braço que eu perdi. Como eu disse: ego frágil.
— O poderoso Hércules, Tristan McClane, o Leão de Nemeia, o Invencível. — cada apelido que Nolan proferia vinha carregado de um tom pesado de amargura e arrogância, tentando usar meus títulos como uma provocação. — Tudo que você é não passa de boatos de um homem que morreu na guerra.
Nolan invoca um cajado metálico com duas cobras em sua ponta. Ele ergue o cajado para cima e logo o objeto começa a derreter e formar uma camada em suas mãos. Quando a camada desaparece, duas soqueiras aparecem em sua posse, cada uma com uma cobra diferente envolvendo seus dedos.
— Isso vai ficar feio pra você, Nolan. — eu fico pronto para o combate. — Tem certeza que quer fazer isso na frente do seu filho?
— Você sabe que depois de te derrotar, não vai acabar só com você. Eu vou matar todos aqui e-
Ele fala muito.
É o que eu penso quando eu lanço um ataque rápido, acertando Nolan diretamente em seu rosto. O deus inclina a cabeça para o lado por um centímetro, sentindo o ataque, porém não o bastante. Ele parecia incrédulo e enfurecido.
— Foi mal, escorregou. — eu ajusto a soqueira. — Agora, cala a boca e cai pra briga, babaca.
Quando termino de falar, Nolan tenta contra-atacar com um soco próprio. Seu punho atinge o meu ombro e eu canalizo minha magia no manto que me envolve. O manto cobre a maior parte do dano, e eu imagino que para Nolan, essa briga esteja sendo semelhante a socar uma pedra repetidas vezes. Eu também não paro meus ataques, acertando-o sem parar com toda a minha força. Ele é um deus, não cairia tão fácil, e eu sei que em uma luta prolongada, ele acabaria criando certa vantagem.
O problema para ele é: Nolan não tem a cabeça fria para isso. Eu só preciso de uma condição para vencer e isso depende dele.
Cada golpe trocado tinha força suficiente para causar ondas de choque com a energia dos nossos impactos. Aos poucos o escritório de Nolan estava se desfazendo. Móveis partindo, paredes sendo derrubadas e até o chão caindo. Assustados, os garotos tentam se proteger atrás de uma cobertura. Eu não perco tempo e aumento a força em meus ataques, rindo mais e mais à medida que o tempo passava. Uma briga até a morte vinha carregada de emoções que eram impossíveis de serem sentidas em outro momento.
— Você até que acompanhou bem, Tristan, isso é surpreendente. — Nolan me afasta com um soco poderoso. — Mas agora vamos acabar com isso. Não se preocupe, eu mando um abraço para a sua família depois que você morrer.
Nolan desaparece como um vulto diante dos meus olhos. Eu sabia o que estava acontecendo, e embora perigoso, essa era a oportunidade que eu estava buscando para acabar a luta de uma vez por todas. Se eu entendia bem, Nolan estava nesse momento correndo pelo labirinto enquanto acelera cada vez mais, acumulando velocidade mortal para desferir um único golpe.
Fazia tanto tempo que eu não me soltava que já havia esquecido a sensação. Sorrindo, eu arranco meu tapa-olho e jogo ele para longe, me concentrando ao máximo. Todo som externo é eliminado, me dando espaço para que eu perceba qualquer mínima alteração. Tudo isso enquanto carrego mais magia no meu olho divino, que estava coberto até então.
— Te peguei.
Eu digo no momento em que percebo a presença de Nolan. Uma fração de segundo, um impacto perfeito e eu bloqueio seu golpe com minha mão. Eu encaro seus olhos preenchidos de confusão em medo com pura alegria, consciente de que ele não sabia o que estava por vir. Descarregando a magia acumulada no olho divino, o artefato absorve a essência de Hermes pelo ar, analisando suas propriedades no tempo em que demorou para ele perceber que estava prestes a perder.
Assim como ele, eu desapareço. Cada passo meu me levava de uma ponta de um corredor ao outro ao longo do labirinto, e isso no primeiro segundo. Quanto mais tempo passava, mais velocidade eu acumulava. Quando eu alcanço o ponto em que não seria mais capaz de me controlar, eu retorno até o escritório — já destruído — e copio o mesmo golpe de Nolan, mas ele não é capaz de bloquear, sendo arremessado inconsciente para longe.
Valeu, coroa, você estava certo quando disse que seus olhos iam me salvar um dia.
A soqueira em meus punhos se desfaz completamente, assim como a maior parte do labirinto ao nosso redor. Eu uso o vento para manter os semideuses de pé, proibindo-os de cair em algum abismo acessível pelas várias crateras.
— Ai, Noah, foi mal ai pela soqueira. — eu digo enquanto puxo eles para perto. — Prometo que retribuo o favor.
Ele parece chateado pela perda da soqueira, mas fica mais animado quando eu digo que vou retribuir. Eu olho para Nolan, que estava desmaiado no chão, e só consigo pensar uma coisa:
Uma pena que só deuses podem matar deuses.
Voltando aos semideuses, vejo todos eles com pura admiração em seu olhar, especialmente Lucian. Eu fecho meu olho divino e vou até os rapazes.
— Isso foi muito legal.
Lucian inicia os elogios e todos eles seguem o rapaz. Eles celebravam minha vitória com tanta alegria que era contagiante. Infelizmente, para as minhas contas, o tempo estava acabando.
— Pessoal, guardem as palmas para depois, eu não tenho muito tempo. — eu tento pará-los para deixar com eles uma última mensagem. — Kuta, eu sei que a situação é péssima, mas vai ficar tudo bem. Você vai tomar a decisão certa e provar que eles estão errados. E para todos vocês, eu sinto muito. Eu não posso mais estar por perto, então o resto é com vocês.
Eu aponto na direção deles e mergulho nas sombras com a minha consciência limpa. Com Clarisse e Hazel por perto, eles não iriam passar por nenhum perigo, ainda mais com Nolan inconsciente. Eles estavam oficialmente salvos, e tudo que resta é uma última missão especial. Reaparecendo no acampamento, me vejo em frente ao meu centro de treinamento.
Todas as janelas estavam fechadas, deixando o ambiente todo escuro por dentro. Ainda assim, consigo ouvir vários impactos em um dos manequins de teste, e eu sei quem é. Indo até a porta, eu abro ela com o máximo de cuidado, vendo Alessandra no meio do seu treinamento.
Ela atacava o manequim com forma perfeita: todos os seus ataques imobilizavam, feriam ou neutralizavam os seus alvos. O problema é que ela era muito boa em copiar, porém não pensava em como encaixar as coisas fluidamente. Ela executava cada passo como se fosse uma obrigação, deixando de lado a parte de entender o porquê das coisas serem como são.
E eu não consigo deixar de me sentir orgulhoso quando vejo ela treinar.
Eu respiro fundo e penso no que dizer, porém nenhuma palavra cruza minha mente a tempo. Decidido a seguir a filosofia da minha esposa: o que sera, sera, eu bato duas vezes na porta, chamando a atenção da garota. Quando ela me olha, vejo Alessandra com cabelo bagunçado, roupas desleixadas e olheiras fundas. Ela estava claramente sofrendo, e meu coração pesava ao ver isso.
Seus olhos marejam no momento em que ela percebe que sou eu, e eu sorrio ao ver ela.
Agora eu só preciso salvar vocês duas de si mesmas, minhas filhas.
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