Capítulo XII: Falta de fofoca mata fofoqueiro.
— Ah... — Briar soa incerta, como se uma pequena parte de sua consciência estivesse questionando se ela deveria repetir ou não. — Eu perguntei se você sabe cuspir fogo.
Sabe, eu acho essa situação inteira injusta. Quando sou eu falando da Briar, é "babaquice" ou eu tenho que escutar "deixa ela em paz, cara". Porém, quando se trata do dragão de dois metros de altura com duas pistolas na cintura, de repente se torna um consenso não-verbal que ela devia ficar quieta. Adivinha só, pessoal, eu disse isso dias atrás!
— Você quer descobrir?
Deucalião responde, e ao ver a expressão de pavor e o repentino silêncio de Briar, me sinto de certa forma vingado. Tudo fica ainda melhor quando Kaiser tapa a boca dela antes que a garota possa responder.
— Ela é problemática, não liga não.
O filho de Atena justifica, gerando uma bufada do dragão, com direito a fumaça pela boca, narinas e tudo mais. Ele parecia satisfeito, então agora só precisamos entrar no navio e sobreviver, certo? Errado! Para a nossa surpresa, a única pessoa que ninguém esperava que fosse abrir a boca é a que nos impede de prosseguir.
— Por quanto você venderia ela?
Alessandra questiona, e assim que todos nós viramos para encará-la, a garota revirou o olhar como se não tivesse dito nada.
— O quanto ela fala?
Deucalião pergunta.
— Muito! — é a minha vez de responder, pulando na frente dos meus colegas e aguardando ansiosamente pela resposta. — Ela não cala a boca.
— Hm. — o dragão grunhe. — Melhor jogar ela no mar, então. Não daria um preço bom.
— N-não, sem água por hoje.
Kaiser diz, seus olhos se arregalaram e suas mãos ainda seguiam trêmulas. Eu concordo plenamente, já que de todos, só eu fiquei preso no carro durante a queda. Que mico.
Ok, agora sim poderíamos subir no navio, e foi exatamente o que fizemos — embora eu tivesse que ignorar sussurros quase inaudíveis de Alessandra mencionando algo sobre "valores" e "respostas ruins". Enquanto aguardávamos e exploramos o convés, Deucalião puxa a âncora usando só uma das mãos e logo desce as escadas até o andar inferior. Kaiser encara tudo aquilo com uma sobrancelha levantada, visivelmente desconfiado. Claro, ele tinha ótimos motivos, mas até então eu só via um capitão de um navio fazendo os preparativos necessários para a viagem.
Bem, eu não sou nenhum filho da deusa da sabedoria ou algo do tipo, porém acredito que sei quando uma pessoa está sendo paranoica, e desde o incidente do carro, Kaizer olhava torto para qualquer grama que se movesse do jeito errado.
— Kaiser, tá suspeitando de quê?
— Sei lá... esse cara é estranho. — o rapaz me responde sem olhar na minha direção, ainda encarando as escadas para o andar inferior. — Até a gente mostrar aquelas moedas, ele estava prestes a transformar a gente em uma peneira. É tudo conveniente demais.
— Naaah, acho que você só tá pensando demais. Aproveita a viagem, Quatro-Olhos!
Antes que ele possa me responder, Deucalião sobe as escadas novamente e vem em nossa direção com uma chave enferrujada em mãos.
— Escutem com atenção. Antes de Vegas eu tenho outro ponto de parada. — ele diz com uma mistura de raiva e cansaço na voz. — Pega essa chave, abre a caixa no fundo do andar de baixo e se esconde lá. Não abram o bico, não se movam e não façam nada idiota. Estamos entendidos?
— Como a gente vai saber a hora certa de se esconder?
— Você vai saber. Se não quiserem morrer, sigam essas regras. — Deucalião continua, e todos parecem estar de acordo, até mesmo o senhor Paranoia. — Ótimo. Bem-vindos a classe A da Morte nas Profundezas.
Ele se retira até o timão, cada passo seu parecendo uma martelada no chão.
— Nome bom para uma música.
Dante diz para Alessandra, que levanta dois dedões em resposta e abre um sorriso. Enquanto Briar se aproximava e discordava da opinião deles, ouço um assobio vindo da direção do dragão, e nesse momento o navio inteiro estremece. Nós demoramos para nos acostumar, e por um momento eu quase tropeço e caio no chão. Assim que consigo me firmar um pouco melhor, percebo o que estava acontecendo: o navio estava afundando. Não no sentido "quebrou tudo e estamos mortos", não, parecia ser algo proposital. Ele afundava como uma pedra, e por alguma razão a água não entrava no convés mesmo quando estamos submersos.
Aos poucos vamos chegando cada vez mais no fundo, ao ponto em que eu começo a duvidar se aquilo era um lago ou um oceano. A resposta se fez clara quando eu vi o primeiro peixe nadando ao nosso lado. Além disso, pude ver alguns corais e algas, e eu imagino que esse não é o tipo de coisa que se encontra em um lago. Antes mesmo de começar a questionar como aquilo era possível, pensei melhor: mágica. A resposta é sempre mágica.
O Getúlio acharia isso muito legal.
Eu penso com um sorriso, sentindo a falta do meu melhor amigo ao meu lado. Ele provavelmente ficaria muito impressionado com esse tipo de coisa. E por falar em impressionar, eu diria que Alessandra estava sentindo algo muito parecido com isso, embora envolva um pouco mais de desespero. No tempo em que aproveitei a vista, a garota estava sentada no chão com a cabeça entre as pernas, seus braços envolvendo-a. Não era preciso muito para entender que ela estava aterrorizada.
— Você tem medo de peixe?
Eu pergunto. Obviamente, ela não responde. Provavelmente não responderia mesmo se não estivesse nessa situação.
— Xiii, deu ruim. — Dante senta ao lado dela e toca na mão dela.. — A menina tá gelada. Cacete! Ela tá muito gelada!
— Faz alguma coisa, Kaizer.
Digo, e o rapaz apenas revira os olhos antes de me responder.
— Eu não sou terapeuta, Arthur. O máximo que eu posso fazer é dar uma porrada bem forte nela pra ela desmaiar.
— Acho que isso não resolve a pressão baixa.
Respondo, abrindo um sorriso sarcástico que evidentemente irrita o filho de Atena. Como de costume, ele apenas respira fundo e murmura algo para si mesmo antes de mudar o tom da conversa. Paciência invejável.
— Se a gente não tivesse perdido tudo... — o rapaz diz, ainda frustrado com toda a situação do carro. — eu até poderia dar comida pra ela, mas não temos nada.
— Será que o dragãozinho tem algo?
Assim que dou essa sugestão, sinto um arrepio subindo pela minha espinha. Para piorar tudo, o silêncio que seguiu foi incrivelmente constrangedor, e a única conclusão que chego é a de que meu azar havia atacado novamente. Engolindo em seco, pergunto para Kaiser, que olha na minha direção com os olhos arregalados:
— Ele está logo atrás de mim, não está?
Decidindo me virar antes da resposta, vejo Deucalião com suas narinas exalando fumaça. Sem me dar a chance de dizer outra coisa, ele me segura pela gola e me tira do chão. O susto foi tamanho que mal entendi o que estava acontecendo. Ouço Dante se aproximando, porém um breve olhar para averiguar a situação mostra que Kaiser estava impedindo o rapaz de interferir. Gente, alô? Eu tô prestes a ser aniquilado pelo dragão? Um pouco mais de compaixão por seu amigo, por favor!
— Me desculpa!
Peço de antemão, engolindo qualquer semblante de orgulho que possa me impedir de admitir meus erros.
— Repete.
— R-repetir o quê? O que eu disse ou a descu-
Olha, creio que essa situação venha a requisitar um pouco mais de informações: sim, eu sabia que ele estava se referindo ao termo "dragãozinho", porém eu tinha motivos mais do que óbvios para não repetir aquilo. Logo, enrolando ele um pouquinho, talvez eu pudesse me safar dessa situação antes que ela escalasse. Para o meu azar, ele não estava tão paciente quanto eu gostaria que estivesse.
O que aconteceu comigo? Bem, não tenho certeza. Antes de eu sequer terminar minha frase, pisco os olhos e percebo que já estava jogado no chão. Todos os meus ossos reverberam e gritam de dor, como se um terremoto tivesse atingido meu corpo. O ar se recusava a entrar em meus pulmões, e tudo que eu ouvia saindo de minha própria boca ao tentar respirar eram grunhidos desesperados. Ao meu lado vejo apenas Kaizer, Dante e os pés de Deucalião, que com muita dificuldade percebo que ainda estava me encarando com desgosto.
— Ou seguem as minhas regras e mostram o devido respeito ou eu boto vocês para dormir com os peixes. Não forcem a sorte, esse é meu último aviso.
Rolando para o lado e usando meus braços para desencostar do chão, cuspo algumas vezes, sentindo o gosto de sangue no meu lábio recém-partido. Ouço Deucalião se afastando novamente, com seus passos pesados ficando cada vez mais distantes. Com a ajuda de Dante, consigo me encostar no mesmo mastro que Alessandra estava apoiada. Aos poucos meus pulmões voltam ao seu funcionamento normal, embora a dor continue lá.
— Ah, eu sabia que conhecia esse cara. — Kaiser fala em voz alta, e nós nos viramos para olhar para ele. — Hora ruim, eu sei, foi mal Arthur. Mesmo assim, um tempo atrás eu li um livro que falava sobre um... bem, um dilúvio da mitologia grega, resumidamente. Enfim, esse cara é o protagonista desse mito. Não lembro muito disso além de ter sido culpa dos deuses e dele ter perdido a esposa no fim.
— Como?
Briar pergunta, e dessa vez eu até mesmo apoio, pois até me recuperando de um ataque, uma fofoca ainda é uma fofoca.
— Acho que Zeus interferiu depois de mandar Poseidon destruir tudo, sei lá. Acho bizarro ter um dilúvio grego, sinceramente. — o rapaz responde, porém percebo em seu rosto que ele ainda estava pensando, e assim que ele começa a andar, sei que algo ruim vem aí. — Tá, eu vou lá conversar com ele.
— Ô, ô, pera aí Kaiser, olha o que ele fez com o Arthur. — Dante segura o rapaz pelo ombro, impedindo-o de andar. — Vai mesmo arriscar?
— Relaxa, Abutre, eu sei o que eu estou fazendo.
Subindo as escadas até onde fica o timão, vejo Kaiser conversando com Deucalião. O dragão não olhava em sua direção, respondendo as perguntas com pouquíssimas palavras, até mesmo não-verbalmente quando possível. No processo, algo estranho começa a acontecer. O rosto dele começa a se contorcer, suas escamas começam a desaparecer e toda a sua estrutura corporal se transforma. Depois de um processo francamente horrível, Deucalião toma uma aparência muito mais palatável. Ainda com seus imponentes dois metros de altura, ele agora parecia um humano, sua pele negra e cabelos brancos longos. Seus olhos brilhavam como fogo. Essa visão, além de me fazer perdoar o ataque causado em mim — até por ter sido minha culpa — me fez lembrar do meu artefato mágico.
Sem perder tempo, coloco os óculos novamente, e assim como antes, consigo escutar a conversa deles como se estivesse próximo. Infelizmente, parece que perdi algo muito importante, pois aos poucos percebo a expressão de Deucalião e Kaiser ficando cada vez mais fechada.
— E quem é seu pai?
A primeira voz que ouço é a de Kaiser, que questiona enquanto cruza os braços.
— Vocês vão descobrir em breve.
— É, aposto que sim. — o filho de Atena comenta, sua sobrancelha ainda arqueada e seu rosto estampado pela suspeita. — E a sua esposa, aquela do seu mito, como ela morreu?
— Isso aqui é uma entrevista por acaso, pirralho? — Deucalião responde, e quando penso que ele encerraria a pergunta com aquela meia-resposta, o dragão suspira e prossegue. — Até onde você sabe?
— Só até aí.
Pela primeira vez naquela conversa, Deucalião se vira para Kaiser. Seu corpo faz o mesmo processo de antes, porém agora retornando a sua forma dracônica, que obviamente era a sua favorita — pelo menos na nossa presença.
— Ótimo. Para simplificar as coisas: foi Poseidon. Cedo ou tarde você vai aprender que as coisas são assim com os deuses, eles não aguentam quando meros mortais são mais espertos que eles. — Deucalião diz com sua voz preenchida pela fúria controlada que sentia. O rancor e desprezo que ele tinha chegava quase a ser palpável. — Aproveite enquanto pode, vivendo naquele acampamento patético e brincando de ser heroi. Quando o Olimpo matar alguém que você ama, só então você vai entender o que eu faço.
— Sem querer assumir nada, mas você até parecia um semideus alguns segundos atrás. — o filho de Atena ignora a resposta do dragão, partindo para outra pergunta. Ainda assim, desde que Poseidon foi mencionado, o rapaz claramente ficou desconcertado. — E mesmo parecendo um semideus, você também parece odiar a gente e o acampamento, ou eu cheguei a conclusão errada?
— Você errou quando acreditou que eu ligo para vocês. Eu não poderia me importar menos com esse circo que vocês tocam. — o dragão solta uma risada seca, claramente forçada e ríspida. — Já disse, pirralho, você vai descobrir em breve quem é meu pai e o que aconteceu com ele. Aos poucos você vai entender a minha raiva.
Desconfortável, Kaiser desvia o olhar por um instante, apenas o suficiente para Deucalião sair como "vencedor" daquela conversa. O rapaz força uma tosse antes de continuar, tentando de alguma forma estabilizar os seus pensamentos.
— Você não vai nos contar quem é ele mesmo, né?
Deucalião responde da melhor forma que pode: com o silêncio. Kaiser parece estar completamente derrotado. Não o culpo, a menção ao meu avô certamente me deixaria chocado, embora fosse esperado. O antigo Olimpo não era nenhuma flor que se cheire, porém com esses relatos a dúvida permanece. E se nossos pais fizessem a mesma coisa? Claro, eles não fazem. Eles são diferentes, melhores. De qualquer forma, não posso esquecer do quanto Apolo ignorou a mim e a minha mãe. E essa é a semente da dúvida que já estava plantada em mim. Kaiser parecia sentir algo parecido, embora eu não soubesse o quê.
— Desculpa, preciso perguntar. Se não for muito incômodo... — Briar diz, surpreendendo a mim e aos dois outros participantes da conversa. O que essa garota tá fazendo? — Como funciona esse barco? Aquele peixão tá levando a gente?
— É.
— Ah! E você sabe usar magia?
— Sim.
— Você se incomodaria de me ensinar?
— Muito.
Após um longo período de silêncio, Briar concorda com a cabeça e parece chegar a alguma conclusão, logo depois se despedindo.
— Entendido, muito obrigado! — ela responde com um grande sorriso no rosto e desce as escadas rapidamente, retornando até onde eu, Dante e o corpo quase-morto de Alessandra estávamos. — Poxa, acho que ele tá um pouco chateado agora. Vou tentar de novo depois.
— Não.
Eu e Dante falamos ao mesmo tempo, muito para a infelicidade de Briar. Enquanto isso, a filha de Hades começa a se arrastar pelo convés, como um soldado ferido na guerra. Depois de muito esforço, ela finalmente alcança a escada para o porão, e logo rola escada abaixo. Tum, tum, tum, TAC. Essa seria a melhor aproximação dos sons dela caindo. Sinceramente, eu iria odiar sentir um medo tão debilitante que me deixe em um estado tão triste quanto esse.
— Hm... eu acho que ela vai ficar bem. — Dante diz, seu rosto visivelmente preocupado. — Melhor eu ir dar uma olhada. Vou aproveitar pra investigar a carga desse maluco aí, também. Vem comigo, Arthur?
— Um momento, vou só- — antes que eu possa terminar a minha resposta, vejo no canto do meu olho Kaiser voltando a falar com o dragão. Em seu rosto percebo algumas linhas pretas que comumente vão e voltam. Isso é sinal de Babado com B maiusculo. — Não, vou ficar aqui mais um pouco. Vai na frente.
— Esse navio está transportando aquela coisa roxa para Hermes, né? — Kaizer diz com um tom muito mais irritado e acusatório. — Você sabe que essa merda acaba com qualquer um, ou não faz ideia?
— Não faço ideia e nem me importo. Ele me paga bem, eu faço um trabalho digno do preço, sem mais perguntas. — o dragão parece se irritar também, elevando o tom de voz um pouco acima do de Kaizer. — Você tá fazendo perguntas demais, e nenhuma resposta vem de graça. Fala um pouco de você, pirralho, tá querendo o que em Vegas? Você não tem cara de apostador.
— Segredo.
Dando de ombros e bufando, o dragão volta a sua atenção ao timão. Por mais que a conversa tenha encontrado outra pausa, sinto que o filho de Atena não deixaria acabar ali, e isso era perigoso. Esse silêncio era a forma de Deucalião de dar mais uma chance para o garoto parar de falar. Se ele continuasse escalando a situação, ficaria mais perigoso, e eu temo que não acabaria em um arremesso ao chão.
— É, se você tá querendo brincar em cassinos, sua mãe deve estar com tempo de sobra.
Ah, eu estava errado, muito errado. Isso não era Deucalião sendo piedoso, muito pelo contrário, ele estava dando tempo para o rapaz se irritar ainda mais com a falta de respostas, somente para lançar o mais baixo dos golpes logo depois. Eu odeio ter que admitir, mas ele é muito bom nisso. Se meu colega não acabar morrendo no final dessa conversa, seria uma oportunidade para assistir um profissional em ação. Sinto muito, Kaizer, a fofoca está boa demais para eu interromper.
— Eu estou indo para lá exatamente para salvar ela.
— Bom pra você.
Deucalião diz, e eu percebo o seu sorriso de canto de boca. Ele sabia que estava vencendo, e o fato de que estava segurando a risada provava isso. Se eu percebi isso estando de longe, certamente Kaizer também havia notado.
— Qual é a graça?
— Nada demais. Vocês semideuses sempre têm a mesma cara nessas situações. Essa raiva faz você parecer um otário, não intimidador.
— O otário aqui é um pouco mais esperto do que você.
— Mais esperto que eu? Olha só! Me diga então, pirralho, onde tá a vagabunda da sua mãe, hein? — Deucalião encara Kaizer, que apenas retribui o olhar, talvez em choque ou irritado demais para responder, talvez ambos. — Foi o que eu pensei. Você depende de mim para chegar nela, então me diga, quem sabe mais do que quem aqui?
Em todos os meus anos de experiência acompanhando discussões, adquiri conhecimento o suficiente para saber que pessoas com a expressão que Kaizer havia ficado estavam prestes a fazer algo muito, muito idiota. Essas pessoas costumam falar algo que se arrependeriam nos próximos instantes, e eu imagino que a frase do meu colega seria algo como "pelo menos eu tô tentando salvar a minha mãe, diferente de você com sua esposa!", o que seria uma ótima resposta, mas nessa situação? Seria apenas uma desculpa para Deucalião enfiar uma bala em sua testa ou parti-lo ao meio com uma lâmina.
Eu começo a pensar em alguma maneira de impedi-lo. Talvez gritar bem alto possa chamar a sua atenção, ou até mesmo arremessar algo em sua cabeça. Correr até ele demoraria demais, e eu poderia ser pego no fogo cruzado. Não, espera, "cruzado" implicaria que Kaizer teria alguma chance de revidar, e disso eu duvido. Percebendo que eu estava sem opções, respiro fundo para gritar o mais alto que posso, porém, para o meu alívio, percebo que Kaizer não era o filho da deusa da sabedoria sem suas vantagens. Talvez inteligência emocional seja algo herdado de sua mãe, ou medo só era um fator muito importante na hora de tomar decisões. Seja qual for o motivo, o rapaz apenas suspira e se retira, descendo até o porão onde os meus outros colegas haviam ido.
Eu não perco tempo e faço o mesmo.
O andar inferior do navio era tão aconchegante quanto o esperado: nesse caso, nem um pouco. Era o mais puro e simples armazém, sem nenhum tipo de cômodo ou regalia. Caixas atrás de caixas enfileiradas e agrupadas em várias pilhas organizadas, com uma única fugindo da regra. Ela estava no extremo oposto da escada, e era grande o suficiente para ser descrita como um contêiner de madeira. Ao lado dela estava um banco, provavelmente para nos auxiliar a entrar nela. Estranhamente educado da parte do nosso anfitrião.
Em um dos cantos vejo Alessandra deitada no colo de Briar, que alisava o cabelo da garota lentamente, e a filha de Hades parecia já estar dormindo. Isso me arranca um bocejo, um lembrete de que eu estava prestes a desmaiar de cansaço. Quase morrer queimado em um hotel, quase morrer empalado em um trem e depois quase morrer afogado em um carro não era a sequência de eventos mais relaxante que eu poderia ter, com certeza. Um momento de cochilo era mais do que merecido. Exatamente como Dante, que parecia estar no seu vigésimo sono. Invejável.
Encontrando uma caixa para me apoiar, uso meu braço como travesseiro e me deito de lado.
— Cara, eu preciso ter uma noite de sono sem pesadelos hoje. — Kaizer diz enquanto se aconchega a alguns metros de distância de mim. — É pedir muito?
— Acho que não. — respondo sem pensar muito sobre o assunto. — Por que, a missão está te dando sonhos ruins?
— É, acho que sim. — o rapaz parece refletir antes de continuar. — Faria sentido se fosse. Noite passada eu vi uma pessoa presa, seu pé estava acorrentado, tudo tava escuro demais. Atrás dela tinha uma pessoa com uma vibe estranha, e antes que eu pudesse tentar enxergar melhor, um corvo ou urubu ou sei lá, pousa no meu ombro e bica meu olho. Aí eu acordo. Duas noites seguidas que eu tenho sonhos parecidos.
— Isso é bizarro.
Digo sem elaborar, pois imagino que a situação já seja tão bizarra que nenhum comentário meu é necessário. Se algum dia eu tiver algum sonho profético, certamente não ficaria feliz. Um que acaba com meu olho sendo bicado? Não, muito obrigado, eu passo.
— Tô sabendo. — Kaizer responde e boceja, deitando e fechando os olhos. — Boa noite, Arthur.
O porão do navio volta ao silêncio de antes. Dante e Kaizer em um sono profundo, eu tentando dormir e falhando miseravelmente e Briar seguia cuidando de Alessandra, que tarda a finalmente dormir. Para a minha surpresa, as duas conversaram por uns momentos, com a filha de Hades mencionando algo sobre Deucalião, embora tenha sido impossível de entender pela quantidade de palavras que ela omitia em uma simples frase. É algo como "Deucalião... mito... lembro... pouco."
Tipo... é, Alessa, obrigado por sua opinião, acrescentou muito na conversa!
Assim que a garota adormece, Briar cuidadosamente se afasta e sobe as escadas. Seus olhos encontraram os meus por um breve instante, e sem dizer nada, ela sobe de volta ao convés. Se acordarmos amanhã com ela partida em mil pedacinhos, quero que fique claro que eu não tive nenhum envolvimento e eu não fazia ideia de que ela tinha subido. Com a minha consciência completamente limpa, eu finalmente sinto a minha consciência dando lugar aos sonhos. Infelizmente — ou felizmente, considerando o histórico de Kaizer — foi o tipo de sonho que você simplesmente não consegue se lembrar quando acorda.
É o tipo de noite em que você só pensa algo como "não sonhei". O que importa foi que eu acordei um pouco menos destruído, entretanto muito menos descansado do que eu gostaria. Na minha perspectiva certamente distorcida de tempo, parecia que um minuto havia se passado do momento que fechei os olhos até o momento em que os abri, e a primeira coisa que ouço certamente não era um "bom dia".
— Para a caixa, agora. — Deucalião exclama com sua voz imponente, e eu percebo que havia sido o último a acordar. — Não se movam, não falem nada.
O dragão sobe as escadas novamente, e mesmo me atrapalhando e tropeçando mais de uma vez, consigo com muita dificuldade chegar até a caixa. No caminho, noto algumas feridas novas no rosto de Briar. Alguns arranhões, um lábio partido e a vergonha estampada assim que ela percebe que eu percebi. Decidindo que aquele problema não caia na categoria dos que eu deveria me importar, subo o banco e olho para dentro da caixa. Assim que processo o que vejo, instantaneamente me arrependo se em algum momento elogiei Deucalião.
O cheiro é a primeira coisa que me atinge, e sinto meu estômago revirando. A vista só deixa tudo pior: era uma caixa cheia de tripas e sangue. Dante, Kaizer, Briar e Alessandra já estavam dentro. Kaizer estava vomitando para fora descontroladamente, enquanto Dante e Briar apenas taparam os seus narizes. Alessandra, por sua vez, parecia estar bem, até mesmo confortável com a situação. Eu. Odeio. Essa. Garota.
Entrando na caixa em um surto de raiva e coragem, não consigo controlar o impulso e vomito assim como Kaizer. Aquela experiência era miserável. Eu conseguia sentir as tripas nas minhas pernas, aquele sangue viscoso escorrendo das minhas roupas e desacelerando meus movimentos. Era uma situação tão odiosa que eu mal sabia o que pensar.
Em algum momento, percebi que Alessandra estava com o rosto encostado em uma fresta, e Kaizer estava ao lado dela, ainda perceptivelmente enjoado e quase caindo para trás. Eu faria o mesmo, se não significasse mergulhar em sangue.
— Esqueletos. — Kaizer sussurra. — Estão levando as caixas.
A ideia de usar meu óculos para ouvir alguma conversa passa pela minha mente, porém lembro que eu precisava enxergar o alvo. Nessa maldita caixa eu certamente não conseguiria fazer isso. Em uma entrega eu conseguiria tirar informações de algum contato de Deucalião, e essa era a desculpa perfeita para não passar nem mais um segundo aqui. Eu não sei como essas pessoas — e em especial a esquisita da Alessandra — conseguiam ficar nessa situação, porém eu me recuso a me humilhar assim.
Sem pensar duas vezes, começo a escalar para sair da caixa, fazendo força para fugir do sangue, que me prendia como areia movediça. Assim que estava quase saindo, sinto uma mão me segurando pelo calcanhar. Eu reajo com um tapa, e percebo que se tratava de Alessandra.
— Não encosta.
Digo, irritado. A garota parecia preocupada, porém não havia um bom motivo para isso. Os esqueletos não estavam mais por perto, a maioria das caixas já estavam no andar de cima. Eu só precisava me esconder por mais alguns segundos e a barra ficaria limpa para eu tirar informações boas. Talvez algo que nos leve mais perto de Atena. Sério, o Kaizer e aquele bando de preguiçosos deviam me agradecer por fazer esse tipo de esforço. Se eles querem se contentar com uma caixa de tripas, que seja, não é problema meu. Eu sei que consigo fazer mais.
Me esgueirando para trás da caixa, vejo dez esqueletos descendo as escadas. Se eu pudesse encontrar alguma forma de distraí-los, então acho que conseguiria fugir tranquilamente e voltar ao convés. São apenas esqueletos preenchidos por um líquido roxo brilhante, certamente não eram criaturas inteligentes, só extremamente perigosas.
Olhando para os lados, percebo que não havia nada que pudesse arremessar. Eu adoraria jogar uma flecha, porém nem mesmo meu arco tinha comigo. E agora eu estava atrás da caixa, exposto e com dez esqueletos se aproximando. Ok, ok, talvez não tenha sido uma boa ideia. Eu preciso voltar. Eu vou engolir meu orgulho e...
E assim que olho para trás, me esbarro com aquela maldita criatura. Vestida em uma armadura de bronze, o esqueleto era quase tão alto quanto Deucalião, e naquela situação, tão intimidador quanto. Como se fosse karma pela minha péssima decisão, meu corpo trava completamente. Todo o cansaço, todas as dores, tudo me toma imediatamente. Eu não conseguia me mover, eu não conseguia nem sequer conjurar a energia para correr e gritar por ajuda.
A criatura ergue seu punho, e eu ainda não conseguia me mover. Minha mente mandava, suplicava para meu corpo se mover, mas ele não respondia. Eu fecho os olhos, o impacto vem logo depois. Como se nada tivesse acontecido, eu apago.
E a história a partir daqui já não era mais minha.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro