Aisha - Capítulo 1
– Ei, Dorminhoca! – Quando seu pai é Samuel Ketsua, não adianta colocar o despertador no modo "soneca", pensava Aisha. – Já são seis e quarenta. Você vai se atrasar, sua malandrinha.
– Na verdade, – Mesmo sonolenta e um pouco grogue, Aisha sabia ler as horas. – São seis e trinta e cinco.
– Bem, a margem de erro desse despertador é de cinco minutos. – Brincou. – Eu acho melhor você se levantar logo. Seu pai me disse que não tem café da manhã para garotinhas que se atrasam no primeiro dia de aula!
– Você é meu pai. – Dizia Aisha, ao passo em que tentava se levantar; Eram seis e trinta e sete, droga. Quem diabos conseguia estar tão animado e pleno quanto Samuel as seis e trinta e sete da manhã?
– Seu outro pai, boba. – E bagunçou gentilmente os cabelos encaracolados da filha. – Mas, pensando por um lado, eu concordo. Seus dois pais acham que garotinhas que se atrasam no primeiro dia de aula não merecem café da manhã!
E ela não pôde segurar um leve sorriso. Iwan era seu pai mais atencioso, mas Samuel era certamente o mais divertido; Quase conseguia fazê-la esquecer do frio na barriga que sentia ao se lembrar do que teria de encarar no ano letivo que vinha à frente.
-O Ensino Médio é difícil? – César havia dito para ela que todas aquelas provas sobre defesa pessoal e domínio da magia do fogo eram simplesmente impossíveis, mas ele era bastante sensacionalista às vezes.
– Hum... Não. Na verdade, sim. Bem, depende... – Samuel coçou a careca. Ele conseguia ser bem inútil às vezes. – Por que não pergunta ao seu irmão?
– Eu já perguntei. – Afirmou ela, com desgosto. – Ele disse que reprovou em domínio da magia. E passou raspando em defesa pessoal.
– César nunca foi muito dedicado. – Disse Samuel, enquanto ajoelhava-se para ajudar Aisha a amarrar os sapatos. – E ele só quer te assustar. Você vai se dar muito bem, tenho certeza.
– Eu acho que sim. – Na verdade, ela jamais estivera mais temerosa em qualquer outro momento de sua vida. – Por falar em César... Ele já acordou?
– Mais cedo que você, preguiçosa. – Provocou. – O barulho dos protestos é mais alto do quarto dele. Disse que não suportava aquela gritaria e já saiu para o trabalho.
– Protestos?
Samuel fechou a cara, revirou os olhos e ajeitou o próprio terno; Suas opiniões políticas eram bem marcantes e Aisha poderia saber de que lado os tais protestos estavam apenas em observar suas reações.
– Você vai ver. – E agora não parecia mais tão brincalhão. – Baderneiros inúteis.
Ao chegar na cozinha, Aisha encontrou a cena de sempre; Um de seus pais (No dia de hoje, Iwan) lavando a louça do dia anterior, sanduíches de presunto e queijo acompanhados de uma caprichosa limonada e Samuel varrendo o chão coberto de farelos. Deu um beijo e um abraço em Iwan e sentou-se à mesa da cozinha, deliciando-se com o lanche que o mesmo havia preparado. O prato à sua frente estava vazio; César já havia saído para o trabalho pouco antes das seis e meia, devido aos barulhos que ressoavam com riqueza de detalhes pela janela da cozinha; Era uma multidão ensurdecida pedindo a renúncia da rainha Helena.
– O sanduíche é com pão integral e alface, tá? – Disse Iwan, com um sorriso sapeca. – Seu pai está precisando de uma alimentação um pouco mais saudável...
– Ah não, querido. – Samuel torceu o nariz. Sentou-se à mesa junto com Aisha e simulou uma cara de desgosto. – Aposto que não tem queijo cheddar no meu sanduíche...
– Claro que não! – Riu Iwan. – Imagine... Queijo Cheddar! Se não sou eu a cuidar de sua saúde... Quem vai cuidar?
E, naquele momento, tanto Samuel quanto Aisha soltaram uma gostosa gargalhada. Samuel deu tapinhas em sua barriga saliente, comendo o lanche feito por Iwan com gosto – Que, apesar de tudo, estava delicioso. – E Aisha teve completa certeza de que aquela era a melhor família do mundo.
Foi quando o momento de alegria foi interrompido pelo som de uma bombinha jogada há poucos metros da janela. Era inofensiva, mas o barulho fez um estrondo que tirou Samuel da cadeira e conseguiu acabar com seu tão costumeiro sorriso. Lá fora, era possível ouvir pessoas berrando sobre o fim da dinastia de Helena e chamando-a de "Puta da buceta gelada".
– Esse pessoal quer causar um caos político no reino? – Resmungou Samuel. – Ela não tem herdeiros.
Iwan não respondeu nada. Ele e Samuel possuíam opiniões políticas bem divergentes no que tangia a rainha Helena e suas políticas sociais, de forma que este preferia se abster na maioria das discussões sobre o assunto.
– Se fosse na época da Yukai, queria ver se esse pessoal estaria badernando desse jeito. – Continuou Samuel. – Só fez mal ao país todo... Mas era a favor de políticas segregacionistas, né? Aí o pessoal se cala. Hipócritas.
– Democracia, Samuel. – Foi a única coisa que Iwan se limitou a dizer.
– Sim, claro. – Samuel bebeu um gole de seu café. – Hipócritas.
As críticas à rainha Helena eram muitas, e Aisha sequer conseguia enumerar todas elas; Alguns citavam o fato de ela ter aprovado leis que garantiam dignidades humanas básicas mesmo para infratores das leis; Outros a chamavam de louca e irresponsável por ter optado não ter herdeiros (ao menos, não legítimos); Haviam também críticas por suas políticas anti-beligerantes e à favor da paz, principalmente quando diziam respeito à terra diametralmente oposta, A Terra do Gelo; Já outros a acusavam de ser uma bruxa maligna que realizava rituais com sangue de criancinhas mortas.
Mas talvez o que mais gerava polêmica entre suas propostas era o princípio de tornar os bastardos (Isto é, aqueles resultantes de uma relação entre habitantes da Terra do Gelo e os da Terra do Fogo) como cidadãos legítimos, isto é: Equipará-los em direitos e dignidade aos Filhos do Fogo puros, algo inaceitável a boa parte da população do reino. Bastardos eram vistos como cidadãos de segunda classe e não tinham outra opção além de se tornarem empregados de casas mais abastadas, muitas vezes não tendo sequer direito a nome.
Talvez muitos considerassem esta como uma pauta digna, se não fossem os numerosos boatos de que Helena e Rei Herbert – O senhor magno da Terra do Gelo. – Tivessem um caso. Tais boatos eram tão populares em um lugar quanto no outro e geravam muitos problemas para ambos. Apesar de tanto um quanto o outro negarem qualquer tipo de relação, não eram poucas as evidências que apontavam para o contrário; As inúmeras viagens diplomáticas de Helena para a terra oposta sem um motivo concreto, seu conhecimento absurdo (jamais observado em qualquer governante) sobre seus colegas de azul e já haviam até mesmo fotografado a rainha saindo, desconfiada e na surdina, do castelo real do gelo, às quatro da manhã. Poderia ser uma montagem, mas ninguém sabia dizer ao certo. Dessa forma, enquanto alguns afirmavam que esse relacionamento era uma besteira inventada apenas para acabar com a imagem da Rainha, outros insistiam com toda a sua convicção que suas propostas sobre os bastardos eram apenas para que ela pudesse ter um filho com seu amante de tanto tempo, o rei Herbert.
Normalmente ambas as posições coincidiam com as opiniões políticas de quem se manifestava, então Aisha não sabia muito bem o que pensar sobre esse assunto.
Apesar de não ter posição definida sobre a vida sexual de Rainha Helena (como se isso importasse), Aisha olhava pela janela e tudo o que via eram cartazes protestando para que uma parcela de pessoas que não tiveram culpa do que seus pais fizeram não tivessem nenhum direito e nenhuma dignidade básica. Aquilo não parecia nem um pouco certo para ela.
– Bem, querido... – Samuel levantou-se de sua cadeira, beijando o rosto de Iwan e carregando consigo uma maleta de couro. – Eu preciso ir agora. Você a leva para a escola?
Iwan fez que sim e Samuel devolveu-lhe um sorriso. Despediu-se de Aisha, pegou um pacote de biscoitos/bolachas no armário sem que o esposo visse e saiu pela porta da frente. Aisha conseguiu ouvir um berro de "BADERNEIROS HIPÓCRITAS!" antes de ouvir o som do motor do carro sumindo ao fundo; Iwan finalmente pôde suspirar e dizer o que aparentemente queria dizer à Samuel.
– Espero que tirem essa vaca de lá. – Resmungou. – Essa ridícula só quer acabar com o pessoal do fogo dando poder a esses malditos bastardos.
– Ela não quer dar poder a eles. – No que dizia respeito de Rainha Helena, Aisha às vezes concordava com Iwan (Seu feroz opositor), às vezes concordava com Samuel (Ferrenho defensor da mesma), mas no que dizia respeito aos bastardos, tendia a ter opiniões mais progressistas. – Ela só quer que eles tenham os mesmos direitos que eu e você.
– Sim, e acabar com esse país todo! – Vociferou, com tanto ódio que quase quebrou um prato no mármore da pia. – Pessoas da Terra do Gelo não são boas pessoas.
– E você por acaso conhece as pessoas da terra do Gelo? — Aisha levantou uma sobrancelha. — Você conhece uma pessoa da terra do Gelo, ao menos?
— Não preciso conhecê-las para saber que são detestáveis. — Reforçou Iwan. — Eles matam gente como eu naquelas terras. Isso, para mim, é o suficiente.
— Sim, eles matam gays lá. Eles matam bastardos também. — Ela era uma excelente aluna de políticas internacionais. — Você não quer dar direitos à bastardos porque eles possuem metade de seu gene em comum com pessoas de um lugar onde eles são executados... Percebe que isso não faz sentido?
— Tem MUITA diferença entre ser gay e ser bastardo. Mas onde você quer chegar com isso? — Resmungou. — Defender uma vadia que quer por nosso país abaixo? Francamente... Ela quer é por no trono uma mini-geladinha que fez com o rei Herbert. Isso é inaceitável.
— E por que isso seria um problema? — Continuou. — Muitos bastardos nem têm traços de habitantes da terra do Gelo. Muitos poderiam passar como filhos puros do fogo, e quem pode dizer que já não passaram e ninguém soube? Eu poderia ser bastarda e você não saberi...
— PARE DE DIZER ASNEIRAS! — Berrou Iwan, explodindo de raiva. — Você JAMAIS seria bastarda. É nossa filha! Pare de usar bobagens para justificar esse desejo desenfreado que a rainha Helena tem de sentar no... De se relacionar com o Herbosta.
— Meu pai me disse isso. — E naquele exato momento, Aisha soube que não deveria ter mencionado isso; Os posicionamentos políticos completamente antagônicos de seus pais já haviam resultado em inúmeras brigas e discussões, tão frequentes que ambos concordaram em não retrucar um ao outro quando este fosse o assunto. — E ele está certo, na minha opinião. Você sabe se quem me deixou naquele orfanato me fez com outro filho do fogo, ou...
— Isso é bobagem. — Disse Iwan, ansioso para encerrar a discussão. — Sobre assuntos políticos, seu pai só fala bosta.
— Bom, nisso eu acho que concordamos.
Iwan chegou a ficar feliz pelos quase dois segundos que sua mente levou para entender o que Aisha dissera.
— E o que você sabe sobre politica? Conhece filhos do Gelo? Conhece bastardos? Eu acho que não. Você tem só quinze anos, garota. — E a pegou pelo braço, talvez um pouco mais irritado do que deveria. — Vamos para a escola. Você vai se atrasar.
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