Capítulo 8: A Cônica Arqueira
Depois de cinco minutos de caminhada por um descampado após a ponte, os dois foram se aproximando do que parecia ser uma mata baixa e de vegetação escura ao longe.
— Custódio, Acalango é perto daqui?
— A-ca-lan-tus — disse o anjo corrigindo Cauã. — Então..., a escola é do outro lado, no pico do Monte do Devaneio. A pé leva alguns dias para chegar. Mas com a Canoa Amarela de Caronte é rapidinho. Em meia hora você estará lá.
— Você? Por quê? Você não vai comigo?
— Vou não. É um tour só para crianças panquecas. Mas bem que eu gostaria de matar saudades da época em que estudei lá. Sinto falta das aulas e dos professores. O meu favorito era, sem dúvida, o Mestre Pete Atlas.
— Mas lá na escola tem vídeo game também? — Cauã demonstrou-se curioso.
— Não tem não, mas tem queda-livre que é bem melhor! — o anjo respondeu animado.
— O que é "queda-livre", Custódio?
— É o esporte fabuloso mais popular!
— Tipo futebol?
— Bem melhor, Cauã!!! Digamos que seja um futebol na vertical!!
— Que legal. — o menino não pareceu se empolgar muito.
— Uma amiga que mora aqui perto é craque em queda-livre: Aracne! — o anjo disse saudoso olhando para o horizonte. — Bons tempos aqueles em que jogávamos queda-livre quase todos os dias. Só parávamos às cinco da tarde para ela tomar chá ou bordar redes com a mãe.
— Cus-Custódio. — Cauã interrompeu o momento nostálgico de seu guardião. — Desde quando você é o meu anjo da guarda?
— Vai fazer sete anos já.
— Sete anos? Mas eu achei que lhe havia escolhido hoje à tarde no jogo.
— São os guardiões tutelares que escolhem de quem vão cuidar. Te escolhi quando você fez pela primeira vez a oração do anjo da guarda sozinho aos três anos. Você é a minha primeira guarda panqueca.
— Guarda panqueca?
— Sim, é o nome que damos aos panquecas que cuidamos. Eu me formei na Aca.L.An.Tu.S assim que você aprendeu a oração e depois te escolhi para ser a minha guarda.
— Então, você deve saber tudo sobre mim!
— Que nada, Cauã. Não sei tudo, não. Eu sei que seu nome é Cauã Nascimento Travassos. Que tem 10 anos. Que o seu aniversário é dia vinte e três de fevereiro. Que seus pais se chamam Luiz e Bernadete. Ah, e claro, eu sei das coisas que você apronta. Mas o resto sobre o mundo dos panquecas eu não sei não. Toda aquela tecnologia que vocês têm não me faz sentido, aqui fazemos tudo emanando graças. Além disso, eu tenho outra guarda para cuidar também. Mas sempre que você está em perigo eu fico em alerta com o meu binóculo para você não se machucar. — Custódio disse tirando o aparelho de um dos bolsos do terno. — O que foi aquilo de você andar na contramão com seu skate hoje? E o lance de ter comido coxinha com refrigerante rápido daquele jeito, você queria ter uma congestão? Tive que fazer você pôr tudo pra fora.
— Jura que foi você que me fez vomitar no pé da Professora Conceição?
— Não é bem assim. Eu estava preocupado com você, menino.
— Então, é você quem me controla?
— Quem me dera! Eu só te guardo do mal em toda travessura, lembra? Mas nem sempre você me ouve. Além de que só apareço nos momentos de extremo perigo. Tipo quando você se encontra com aquele menino loiro da sua classe na hora do intervalo. Estou cansado de tentar acalmá-lo quando vocês estão perto um do outro.
— Ah, então é por isso que eu ainda não arrebentei a cara do Luquinha de acordo. Por sua causa.
— Pois é, Cauã Nascimento Travassos.
Logo Custódio sorriu para Cauã, e os dois pararam em frente à entrada da mata de árvores baixas. Cauã coçou a cabeça e começou a notar que aquele lugar lhe parecia muito familiar.
— Nossa. — o menino parou por um instante. — A caverna, a ponte, o abismo e agora a mata de árvores baixas. Tá tudo muito parecido com o jogo de RPG. Você não me viu jogando hoje lá na escola?
— Não, não é assim que funciona. Eu só consigo te ver em momentos de perigo. É como se um alarme tocasse me avisando que você corre algum risco. Quando você não está em apuros eu nem consigo te ver. Além do mais, você não é a minha única guarda panqueca. Tenho que me revezar.
— Custódio, minha avó me disse uma vez que os anjos da guarda andam o dia todo atrás da gente. Meus pais disseram que ela anda vendo muita novela e indo demais à igreja.
— Eu não a culpo, Cauã. A maioria das pessoas acha que os anjos da guarda são como suas sombras, mas isso não é verdade. Nós aqui, por exemplo, não saímos do Monte do Devaneio. Usamos todas as nossas graças daqui. É por segurança nossa e de vocês. O acesso ao mundo dos panquecas não é liberado. Somente a Secretaria Anelar de Defesa expede os vistos para irmos até o mundo de vocês. E somente a Fada do Dente, o Bicho Papão e o Jão Pestana são quem os possuem. Da mesma forma, as crianças panquecas só podem entrar aqui quando trazidas pelas mariposas da Fada do Dente mediante a entrega de um dente de lei...
O anjo virou-se bruscamente ao ouvir galopes ao longe e pediu para Cauã se apressar para os dois entrarem logo na mata.
Cauã entrou correndo e se deparou com centenas de galhos rastejantes pelo chão. Ao olhar para cima, viu que as árvores eram baixas porque seus galhos eram muito longos e se estendiam dos troncos ao chão. Antes que pudesse continuar a observar, Cauã ouviu um gemido alto.
Custódio caiu ajoelhado na entrada da mata de árvores baixas. Sua mão direita estava em seu peito e ele parecia sentir muita dor. Cauã se aproximou do anjo e pôde ver que ele tentava conter uma flecha que havia atravessado o seu peito. Custódio tremia e só conseguia gemer de dor.
Os galopes recomeçaram, e Cauã olhou para trás. De repente uma mula-sem-cabeça surgiu e sobre ela havia uma moça que usava uma longa capa vermelha com um capuz na cabeça. Ela trazia nas costas algumas flechas em uma aljava e um arco na mão. Ela pareceu familiar para Cauã.
Assim que a amazona tirou o capuz, revelando assim o rosto e os cabelos negros e cacheados, Cauã teve certeza de que a conhecia de algum lugar. Naquele momento a lembrança do jogo de RPG lhe veio à cabeça. Cauã reconheceu a moça. Era Eco.
— A bruxa arqueira! Como no jogo de RPG. Não é possível! — Cauã disse tentando levantar seu guardião.
— Saía daqui, Cauã. Mergulhe na mata. R-rápido. — Custódio suplicou deitando-se mais na grama.
— No jogo você é um anjo da Ordem dos Asas Negras, um anjo curandeiro, não é mesmo? Não consegue curar esse ferimento? — soltou Cauã tocando os ombros de Custódio.
— Ela não me atirou uma simples flecha. Ela me flechou com a varinha dela que provavelmente está envenenada, Cauã. Por mais que eu cure o ferimento, o veneno já está correndo em meu sangue. Corre. Vai lá e mergulhe.
Cauã estava mais perdido que nunca. Queria ficar para ajudar seu anjo, mas a mula-sem-cabeça foi se aproximando aos poucos e as chamas que ficavam no lugar de sua cabeça estavam revoltas. Sem contar, o semblante da bruxa que não era dos melhores. Ela trazia consigo um olhar de mágoa.
Assustado e notando o sangue de seu anjo pingar sobre o gramado, Cauã fez algumas perguntas para a mulher cônica. Tudo em vão. Ela não pronunciava nenhuma palavra. O jeito era sair correndo e fazer o que Custódio havia lhe pedido, "mas que diachos significava mergulhar na mata?" Cauã se perguntou.
Seu protetor só tinha olhos para a arqueira. Ele a fitava de soslaio com tamanho ódio e desprezo, que o menino ficou com medo dele também! Custódio, com um pouco de impaciência arrastou-se em direção de Cauã e o empurrou para a mata.
— PROCURE PELO PÍER DE AQUERONTE E A CANOA AMARELA. — Custódio gritou apontando o dedo para a mata.
— Eu estou com medo. E se eu não achar? — soltou Cauã tremendo dentro de seu pijama laranja.
— O medo não é uma dádiva só dos fracos. Siga o seu coração. Eu... eu... acredito em você! Um dia a gente se encontra. "Brilha, brilha, estrelinha." — O anel de Custódio reluziu de forma intensa, e ele estalou dois dedos da mão direita.
Uma faísca azul apareceu e logo tomou o formato de chama. A graça emanada por Custódio flutuou em direção à mata, e Cauã começou a segui-la. Por mais que tentasse focar no caminho a ser percorrido, era difícil deixar o seu protetor ali naquela situação. Ele hesitou e parou de seguir a luz por um instante ao ouvir a conversa em frente à entrada da mata. Eco, montada na mula-sem-cabeça, andava em círculos em volta de Custódio.
— Então é aqui que você se escondia? Bem aqui? — disparou o anjo contra a bruxa.
— A-A-qui! — disse ela botando a mão no lado esquerdo do peito.
— Olha o que você fez! — ele disse com os dedos entre a flecha que atravessara seu peito, tentando levantar-se do chão enquanto um envelope caiu de um dos bolsos de suas vestes.
— Cê fez! Cê fez! Cê fez! — disse a bruxa arqueira descendo da mula.
Ela pegou o envelope já aberto que havia sido selado com cera derretida vermelha onde constava a inicial L. Eco leu a carta e a rasgou com muita violência, e um grito de raiva ecoou no ar.
Cauã, ainda atordoado, foi se afastando cada vez mais, seguindo a chama. Foi nesse momento que ele ouviu Custódio gritar:
— ECO, EU NÃO TE AMO!
— ...AMO! ... AMO! ...AMO!
Cauã seguiu em frente tentando alcançar a luz azul que subitamente mergulhou na direção de um dos galhos em uma espécie de vala. Sem entender muito bem, o menino fez o mesmo.
O mergulho fez com que Cauã caísse dentro de uma espécie de buraco. Lá havia um tobogã gigante por onde ele desceu dando várias voltas seguindo a luz azul à sua frente. O menino teve vários arrepios que subiram e desceram em sua barriga como se fossem borboletas em seu estômago conforme as curvas do tobogã o conduziam.
Os gritos de Cauã só não eram maiores que a extensão do tobogã que parecia não ter fim. Um filme passou na cabeça dele. Parecia que o jogo havia acontecido de novo. E para piorar, tudo estava mais real ainda.
Cauã quis que Seu Mauro, o professor de educação física, aparecesse naquele momento e o mandasse de volta para a sala de aula. Ele desejou fortemente que o tobogã fosse um túnel levando-o de volta para sua cama na Rua 17.
POFT! Após descer por cerca de dois minutos, Cauã foi expelido bem em cima da luz azul sobre algo muito macio. Era um arbusto. De lá ele caiu de cara no gramado deixando os óculos saltarem do rosto. A luminosidade ali embaixo era bem pouca, mas ainda era possível avistar a copa da árvore, por onde entravam alguns raios de sol.
Quando se ajeitou no gramado e colocou os óculos, Cauã deu-se conta de que a chama azul havia desaparecido e de que ele estava diante de uma árvore gigante. Ele olhou para os lados e depois para cima e percebeu que estava dentro de um enorme buraco de onde aquela árvore de grande porte brotava.
Passado um tempo, Cauã deduziu que a copa da árvore tapava um enorme buraco no chão lá em cima por onde havia adentrado. Sorte a sua que ele havia seguido a luz azul e entrado no buraco certo, descendo pelo tobogã que contornava a árvore. Caso contrário, ele teria caído em outra entrada e se esborrachado todo quando chegasse ao fundo do buraco. Não foi à toa que Custódio disse que o Monte do Devaneio era um lugar muito perigoso para uma criança sem anjo da guarda.
Cauã saiu da frente da saída do tobogã e deu uma volta pela árvore. Depois de trinta passos, ele encontrou no tronco um panfleto de uma tal de ARCA. Era o retrato falado de Eco estampado com letras garrafais em kângelus. Cauã leu "Você viu essa cônica? Ecorina Lara Silva. Recompensa: 3 mil raios".
Seu sangue ferveu de raiva daquela mulher, daquela cônica, daquela brux... Cauã tentou evitar no pensamento aquela palavra. Resolveu então dar voltas pela árvore na esperança de que ao menos se acalmasse. Mas não funcionou.
— Ah, que droga, eu deveria ter lido o livro de regras ontem à noite. Está tudo acontecendo exatamente como ocorreu no RPG. Se pelo menos tivéssemos continuado o jogo, talvez eu saberia o que fazer agora. Tudo o que eu sabia ocorreu até o momento da morte de Custódio e mesmo assim eu demorei para me tocar que o jogo estava realmente acontecendo.
Cauã começou a se sentir burro a princípio, mas logo parou de se culpar, pois agora estava sozinho, e a partida de RPG havia sido em grupo e guiada por um mestre.
Depois da décima volta, Cauã começou a se acalmar e resolveu sentar-se em uma das enormes raízes da árvore. Havia píer algum ali. Muito menos uma canoa amarela esperando por ele. Somente a árvore e mais nenhuma alma viva naquele buraco. "Por que será que meu anjo me enviou até aqui?' martelava em sua mente.
"Apenas para me esconder de Eco, quem sabe? Talvez esteja na hora de voltar lá para cima". Cauã concluiu e tentou entrar no tobogã novamente, mas suas paredes eram escorregadias demais para ele escalá-las descalço.
Sozinho e sem ver indício algum de direção, o menino encostou as costas no tronco da árvore e foi escorregando por ele até sentar-se no chão próximo a uma das raízes expostas. Juntou as duas mãos e fez a oração do anjo da guarda na esperança de que seu guardião aparecesse. Nada. Ele tentou de novo. Nada. Mais uma vez. E nada.
Naquele momento Cauã Travassos teve a certeza de que a única coisa com que ele poderia contar era a sua sorte. E ele não costumava ter muita.
Ele fechou os olhos e desejou mais que tudo voltar para casa. Foi aí que se lembrou que havia desejado totalmente o oposto na frente de seus pais naquela noite. "Eu tô cansado deste mundo! Eu queria sumir daqui!" ecoou em seu pensamento.
PAC! Ele abriu os olhos ao sentir uma pancada nas costas.
E aí o que está achando? Ainha há muito por vir. Continue acompanhando a história de "Os Fabulosos" e não se esqueça de dar estrelas, comentar e seguir a gente. Tudo isso ajuda a divulgar o nosso trabalho.
Beijos
Luiz Horácio
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