Capítulo 14: O Capacho e a Poltrona Telepática
Algumas crianças não sabiam o que responder com medo do que fosse acontecer, mas os alunos do terceiro anelário já haviam dito "sim".
O Mestre Foberto Ícelos pediu para que as cinquenta e nove crianças panquecas fizessem uma enorme roda ao redor dele. C.C e as pândegas respiraram aliviados ao deixarem de ser espremidos por toda aquela gente. Enquanto isso, os alunos começaram a formar uma fila.
— Vamos dar continuidade à nossa aula de Sombração. — disse o professor ficando no centro da sala bem no meio da roda dos visitantes e de frente para a fila dos seus alunos. — Bem, os anjos da guarda muitas vezes precisam interferir na rotina de sono das crianças panquecas. Vocês, às vezes, vão muito tarde para a cama. E aí, precisamos fazer com que se deitem mais cedo. Afinal de contas, o horário máximo para as crianças com dentes caídos estarem na cama para o tour até nossa escola é às 21h.
— Como vocês fazem a gente, crianças panquecas, deitar mais cedo? — um garotinho mirrado com pijama de unicórnio perguntou encolhendo-se de vergonha ao ser fitado por todos.
— Simples. — Foberto Ícelos soltou. — Eu sou o Bicho Papão!
Nesse momento a roda se desfez e todos os visitantes correram para trás de Ícaro, C.C e as pândegas. Enquanto isso, os alunos rachavam-se de rir.
— Não precisam ter medo, crianças. Não acredito que estou falando isso. — Foberto Ícelos cochichou consigo. — Se bem que logo após o tour eles vão se esquecer disso tudo. Eu não moro embaixo da cama de vocês, ou muito menos nos seus guarda-roupas! Eu e meus alunos nos transombramos, ou seja, nos transformamos em sombras para entrarmos na casa de vocês e fazê-los ir pra cama. Para isso usamos isto aqui. — disse ele segurando as vestes e gorro pretos. — E o batuque que ouvem ou estalos nos móveis à noite somos nós... zelando pelo sono de vocês. — ele riu batendo seu tambor.
Aos poucos os visitantes foram voltando para a roda, mas não se aproximaram muito do professor, não.
— Bem, para entrarmos na casa de vocês precisamos capachotear, que nada mais é que usarmos esses capachos que estão vendo. Este aqui aos meus pés, é o meu. Para entramos no mundo dos panquecas usamos um par. É sempre preciso ter no mínimo dois capachos, o de entrada e o de saída. Este aqui é o de entrada, e o de saída fica no portal 55 que é a nossa porta de entrada para o mundo de vocês. E...
— Mestre! — um dos alunos interrompeu aflito. — Esqueci o meu tambor lá no guarda-roupa do orfanato.
— Que amadorismo, Nicolas Silvério! — disse o professor com um tom ríspido na voz, fazendo os visitantes se distanciarem mais dele. — Não podemos cometer esse tipo de gafe. Nossa passagem pela casa dos panquecas não deve deixar rastros. Volte lá agora mesmo e o resgate. Rápido. O portal se feche às 12h. Você tem menos de uma hora para isso.
Nicolas Silvério, um garoto franzino e de cabelo castanho, saiu da fila e passou pelo professor virando-se para todos ao ficar bem no meio do capacho em frente à lousa. Ele parecia nervoso. Do nada começou a limpar os pés no capacho.
Luquinha, que estava mais próximo, observou bem quando o aluno esfregou o pé esquerdo três vezes e depois o direito a mesma quantidade de vezes. Nicolas olhou de volta para o professor que com um olhar de reprovação fez um sinal com os dedos girando o seu anel dourado. Algo que indicava que o aluno deveria inverter a ordem.
— Ah, é o contrário. — Nicolas sorriu sem graça e limpou dessa vez o direito e depois o esquerdo na mesma quantidade de vezes que havia feito anteriormente. Ele ainda se confundia com as direções.
ZUPT. Como um passe de graça, o menino desapareceu na frente de todos. Parecia ter sido sugado pelo capacho. Os visitantes se espantaram voltando para trás de Ícaro, C.C e as pândegas.
— Vamos lá, 3º B. — Foberto Ícelos fitou seus alunos.
A aula continuou de uma forma que surpreendeu os visitantes. Cada um dos vinte e quatro alunos foi se agrupando com os visitantes. Havia na maioria dos grupos de duas a três crianças panquecas que iriam aprender a capachotear.
Luquinha, que estava lá na frente da sala, quis logo ser o primeiro e se ofereceu. C.C o olhou com um muxoxo e fez um sinal de que estava de olho no menino loiro.
A aluna do grupo de Luquinha, Fernanda Caras, pediu para que ele escolhesse um dos capachos ali presentes, o mais próximo dele. Luquinha escolheu um azul, que era sua cor favorita, e foi instruído a limpar os pés três vezes na direita e três vezes na esquerda.
— Pra onde eu vou? — perguntou Luquinha sobre o seu destino com receio na voz.
— Não se preocupe! — respondeu Fernanda Caras soltando um sorriso maroto que revelou seus dentes com aparelho ortodôntico. — Vai ser legal!
Luquinha olhou para todos à sua volta apreensivo e quando fitou melhor o capacho, curvou-se um pouco. Ele viu que havia em cada canto do tapete o brasão da escola. Tomou coragem e seguiu as instruções, limpando suas pantufas.
ZUPT. O menino loiro foi sugado pelo chão. Seu grito de espanto mal ecoou pela sala, e as crianças visitantes correram novamente para trás de C.C, que desta vez se desviou de todo mundo. Dessa forma, a maioria foi mesmo para trás de Ícaro e das pândegas, que tentavam se equilibrar enquanto seus balidos procuravam acalmar as crianças.
Trinta segundos depois, Luquinha surgiu no capacho azul de mesma tonalidade lá no fundo da sala. Ele estava assustado, mas muito animado. Se aquilo era o tal de capachotear, ele queria fazer aquilo de novo e de novo.
Mestre Foberto Ícelos sorriu mostrando que não era tão mal assim. Embora fosse o Bicho Papão, ele sorriu ao dizer "Próximo", e todas os visitantes se ofereceram para capachotear também.
A aula durou cerca de meia hora e no fim dela, as crianças visitantes já estavam sem medo algum do professor de Sombração II. Nicolas Silvério voltou a tempo de se despedir dos panquecas. Ele segurava o tambor resgatado do orfanato em mãos.
"A próxima aula será de Fabulosofia com o Mestre João Pestana", Ícaro informou aos visitantes. As crianças torceram o nariz quando ouviram "losofia" que logo os remeteu para filosofia, mas Ícaro lhes garantiu que aquela era uma das melhores aulas de Aca.L.An.Tu.S.
Tamanha foi a surpresa, quando o grupo de visitantes adentrou a próxima sala de aula, que ficava em outro corredor.
A sala, de paredes rústicas, também era ampla. Uma fina neblina recobria a areia no chão. Lá os visitantes conseguiam apenas ver o esboço das pegadas de suas pantufas e pés. Conforme iam andando, a neblina se dissipava um pouco permitindo que eles pudessem ver o que havia mais à frente, longe da porta.
Não havia cadeiras ou carteiras ali, apenas redes de balanço. Elas balançavam bem pouco e já pareciam estar ocupadas. Havia cerca de cinquenta delas.
— Oxiiii, aí estão vocês! — a voz etérea com sotaque nordestino chamou a atenção de todos. — Por favor, façam silêncio. Os alunos do quarto anelário estão fazendo prova!
A voz vinha de uma poltrona feita de retalhos coloridos que estava de costas. Os visitantes ficaram com receio de quem poderia estar lá. Mas assim que a poltrona se virou, a figura de um senhor baixinho tranquilizou a todos. Era o Mestre João Pestana sentado em sua poltrona. No topo do encosto dela havia o número três em uma plaquinha redonda.
Assim que os visitantes fitaram João Pestana com curiosidade, ele levantou-se e sorriu. Em seguida, ajeitou o chapéu marrom de cangaceiro e as vestes em tons pastel que ficavam largas nele. Ele era baixinho e atarracado.
As crianças não tiveram medo e até se aproximaram dele que basicamente tinha a estatura delas. C.C tomou a rédea do grupo cumprimentando o professor. Os dois eram quase do mesmo tamanho. Ícaro surgiu em seguida desviando-se das redes atrás dele e conduzindo o restante das crianças que havia ficado para trás, uma delas era Luquinha.
— Meu querido Ícaro Takashi. — a animação de João Pestana foi bem maior ao cumprimentar o monitor do que quando segurou a mão de C.C. — Então, hoje é você que está trazendo as crianças para o abate? — ele falou sério fitando Ícaro de baixo, fazendo com que os visitantes ameaçassem dar um passo para trás.
Só ameaçassem mesmo, pois a figura de João Pestana era muito cativante e acolhedora. Logo, ele não aguentou bancar o sério e sorriu. Apresentou-se como "Jão Pestana", seu apelido em Aca.L.An.Tu.S.
Assim que viu todas as crianças em volta dele ali na frente da sala, o professor de Fabulosofia pediu para elas fecharem os olhos e só abrirem ao seu sinal.
— Ixi, vai começar a palhaçada! Eu odeio a parte dos unicórnios. — C.C cochichou com uma das pândegas perto dele fazendo cara de desdém. Ele fechou um olho e deixou o outro meio aberto.
O professor se certificou se todos ali estavam como ele havia pedido. Não tardou muito, a névoa que cobria o chão da sala foi ficando mais e mais espessa. Em pouco tempo todos os visitantes e o professor estavam no que parecia ser uma bolha envolta de uma neblina que foi mudando de cor. Luquinha abriu o olho antes da hora e viu como a neblina foi se transformando em uma paisagem que tinha...
— Pronto. Podem abrir os olhos! — o professor soltou acompanhando os olhares de surpresa dos visitantes, o sorriso de alegria de Ícaro e das pândegas e o desdém de C.C.
Havia simplesmente em volta de todos ali um parque de diversões tão real que era até possível ouvir os brinquedos em movimento. Alguns carrinhos de uma montanha russa que estava a alguns metros de distância começaram a se mover, chamando a atenção das crianças para lá. João Pestana fez que "sim" com a cabeça e com a mão direita, onde mantinha um anel dourado, indicou o caminho. Todas as crianças foram em direção ao brinquedo.
Com o auxílio das pândegas e de Ícaro, as crianças entraram nos carrinhos, e ao sinal do professor, a montanha russa começou a funcionar.
Entre as descidas, subidas e os vários loopings do brinquedo, o grito de euforia das crianças só aumentava. Ao lado de João Pestana, C.C tentava fingir animação. Aquilo era tudo muito chato para ele que tinha que fazer parte do tour todos os dias.
Assim que os carrinhos chegaram ao destino final, as cinquenta e nove crianças estavam mais eufóricas que nunca. Muitas nunca haviam andando em uma montanha russa. Luquinha gostou, mas pensou consigo mesmo que já havia ido a melhores.
Do nada o cenário começou a mudar e a dar espaço para o fundo do mar. As crianças se entreolharam surpresas. C.C revirou os olhos, e Ícaro logo avisou que todos deveriam se preparar, pois o mais divertido estava para começar. Todos ficaram ali observando aquela imensidão marítima repleta de peixinhos e algas que se movimentavam em águas calmas. De repente, o chão começou a se mover, e quando olharam para baixo, as crianças se deram conta de que estavam em cima de uma baleia azul prestes a sair do lugar.
— Relaxem, crianças. Abram as pernas e dobrem os joelhos um pouco. Isso vai ajudá-los a manter o equilíbrio. — soltou o professor imitando um surfista em cima da baleia para o grupo que estava à sua frente.
A visão que se tinha daquilo era fabulosa. Uma enorme baleia azul conduzindo o grupo de visitantes pelo fundo do mar.
Quando uma arraia passou por cima deles, os visitantes se curvaram em um misto de espanto e admiração, quase que deitando-se na baleia.
João Pestana pediu para que todos fechassem os olhos novamente e assim que abriram, eles estavam montados nas selas de unicórnios brancos que corriam por uma mata repleta de uma flora exuberante.
Lá na frente, no unicórnio maior, João Pestana estava na garupa de Ícaro que conduzia o animal segurando em sua crina. Cada criança cavalgava um unicórnio firmemente em suas selas. No entanto, C.C e as pândegas tinham dificuldade em se manterem nos animais. Eles os puxavam agarrados em suas crinas para não caírem, pois suas patas não se encaixavam nos estribos.
Logo o cenário mudou e os unicórnios foram substituídos por animais que voavam em um céu azul turquesa. Eles eram uma espécie de felino grande com penas brancas e violeta, cara de foca, asas de falcão e bolsas de marsupiais.
— Não tenham medo dos mafagafos! — Ícaro soltou para um grupo de crianças. — Segurem nos pelos das costas deles! Eles são mansos!
O voo se estendeu por um bom tempo e quando ele acabou as crianças se pegaram de volta à sala de aula.
— Mas já? — um garoto choramingou.
— Receio que sim! — soltou o professor para o grupo de visitantes que o observava. Em suas mãos havia três frascos cilíndricos com diferentes cores que ele havia acabado de tirar de um de seus guarda-chuvas.
As crianças o observaram atentamente abrir um por um. O primeiro era rosa.
— Sabem tudo isso que vocês experimentaram agora há pouco foi causado pelas três areias do sono. Elas são fabulosas, não são?!? Esta aqui é a da diversão. — ele disse despejando-a no chão.
Em seguida, despejou uma areia azul que ele disse ser do relaxamento. E depois a areia laranja, a da fantasia.
Quando João Pestana fez um movimento circular com a mão que continha o anel dourado, o monte de areias coloridas perto de seu pé se misturou e a fina névoa que ali havia sumiu. Foi finalmente possível ver o chão com nitidez, era de taco de madeira escura. Para surpresa de todos, não havia nenhuma areia no chão.
Muitos se perguntaram se aquilo onde haviam pisado, quando entraram, era areia ou não e se indagaram para onde ela teria ido. Depois que a névoa se dissipou, os visitantes puderam ver a sala por completo. Tinham se esquecido que havia redes por toda a sala. E o mais intrigante, havia alunos dentro das redes. Tudo parecia ter sido um sonho, e naquele momento eles estavam voltando para a realidade.
Luquinha viu que Ícaro estava olhando em seu relógio e já acenando para as crianças irem em direção da porta e então decidiu perguntar:
— Isso tudo que a gente viveu foi um sonho ou foi real?
— Xiiiiiuuuuu. — advertiu o professor sorrindo. — Os meus alunos estão fazendo prova.
O grupo de visitantes pôs-se a seguir Ícaro, C.C e as pândegas que haviam acabado de se despedir do professor. Todos caminharam sorrateiramente em direção à porta desviando-se das redes que continham os alunos. Luquinha era o último da fila e observava ao máximo as redes, mas não conseguia ver nada por dentro do tecido que cobria os corpos dos alunos.
Assim que chegou sua vez de sair da sala, o menino loiro notou que havia um capacho vermelho em frente à porta. Coisa que não conseguira antes, talvez por causa da neblina. Ao sentir um toque em seu ombro, seu sangue gelou.
— Viver nem sempre é explicável, mas sonhar sim! — disse João Pestana olhando nos olhos de Luquinha que havia se assustado com a presença do professor.
O menino não esperava que o professor conseguisse se locomover tão rápido da frente da sala até o fundo passando por todas as redes.
Luquinha não sabia o que fazer ou dizer até ver uma das redes, próxima aos dois, se mexer. Nessa altura, a porta já havia se fechado, e o seu grupo seguido para a próxima atração do cronograma de Ícaro.
Um bocejo quebrou aquele silêncio estranho, e da rede que havia se mexido desceu um garoto negro com trancinhas nagô. Ele trajava o uniforme da escola e segurava em uma das mãos um travesseiro com uma fronha branca bordada com um apanhador de sonhos feito de retalhos.
— Acabei, Mestre Jão Pestana. Posso ir ao banheiro? — o aluno disse espreguiçando-se e entregando o travesseiro ao professor.
— E aí? Foi bem na prova, Cléber Rios? — João Pestana sorriu.
— Espero que tenha ido, professor. — o aluno abriu a porta para ir ao banheiro após o aval do professor, um piscar de olhos.
Luquinha ficou intrigado e permaneceu na sala, mesmo após o professor ter se despedido dele. O menino loiro insistiu com um tom de voz que demonstrava estranhamento.
— Como assim? Eles fazem prova dormindo?
— Oxi! Sabia que você queria saber isso! Percebi sua dúvida desde o momento em que falei pela primeira vez que os alunos estavam fazendo prova. — caçoou o professor. — Por que não perguntou antes, como é mesmo o seu nome?
— Lucca Cincinato Fernandes!
— Cincinato Fernandes? Hmmm, esse nome não me é estranho?
— Provavelmente o senhor já deve ter ouvido falar sobre o meu pai. Ele é um diplomata muito bem-sucedido! Vive viajando o mundo todo e...
— Bem, Lucca. O seu sobrenome não me é estranho, mesmo. Só não consigo me lembrar de onde o ouvi, mas deixa pra lá. Bem... venha até aqui.
ZUPT. De repente o professor estava lá na frente da sala enquanto Luquinha permanecia perto da entrada com os pés ainda no capacho.
"Ele usou o capacho para se locomover! Como não saquei isso antes?" Luquinha pensou e seguiu em direção ao professor andando.
— Use o capacho, abestado! Os capachos de Aca.L.An.Tu.S são originais e registrados junto à Secretaria Anelar. Não tenha medo! Você pode usá-los infinitas vezes com segurança!
— Por quê? Há capachos falsificados? — quis saber o menino.
— Bem, são raros de se ver por aqui, mas existem sim. São tão falsos que depois da quinta capachoteada, eles se desintegram! — o professor riu. — Aproveite e use o capacho, pois você não se lembrará de nada disso amanhã!
ZUPT. Luquinha capachoteou lá na frente junto do professor.
— Muito bem, Lucca. Está vendo esta poltrona de retalhos aqui? É com ela que eu avalio os meus alunos. Na verdade, cada professor tem uma. Basta eu me sentar aqui e repousar a cabeça nela assim. — disse demonstrando. — É assim que eu entro em conexão com os meus alunos e avalio o conhecimento deles.
— Mas como entra em conexão com eles? Por meio das redes?
— Não! Por meio dos travesseiros. — disse o professor mostrando um que o aluno havia acabado de entregar. — Ele tem fronhas cujo apanhador de sonhos é feito com retalhos da minha poltrona. Os retalhos são fabulosos e conectam ao pensamento. É assim que eu consigo ler o pensamento dos meus alunos enquanto dormem e checar o que aprenderam. Afinal é durante o sono que o conhecimento se consolida, né.
— Uau, que demais! Bem que as provas da minha professora poderiam ser assim! — Luquinha sorriu quando se lembrou das provas chatas de Dona Conceição. — Ah, e pra que serve o número 3 em cima da poltrona. — perguntou apontando para a placa cor de violeta.
— A Academia conta com dez poltronas telepáticas. Eu ocupo a de número três. Mais alguma pergunta, Lucca?
— Bem acho que é isso, Mestre Jão Pestana. Vou seguir o meu grupo! Pra que lado eu devo ir?
— Siga em frente e vire à esquerda. É bem provável que eles tenham ido para a Via Láctea, está quase na hora do almoço. O almoço dos visitantes é antes do dos demais. Corre lá, você já está atrasado.
— Obrigado, Mestre. — disse Luquinha dirigindo-se à porta passando por entre as redes.
— Ah, a nota dele foi 9,33. — o professor sentado em sua poltrona viu o menino loiro encará-lo sem entender nada. — A nota de Cléber Rios, o aluno que acabou de sair pro banheiro. Ele tirou 9,33. Vi que ele ainda não compreende perfeitamente a diferença tênue entre viver e sonhar.
— Mas como conseguiu avaliá-lo se ele nem está mais em contato com o travesseiro? — soltou com desdém como quando desafiava a inteligência das professoras substitutas de sua escola.
— Eu consigo me conectar com o travesseiro e ler os pensamentos de quem o usou enquanto ele estiver quente. — João Pestana respondeu prontamente.
Luquinha achou graça de como o professor sacou que ele queria saber a nota do aluno. E antes de sair e fechar a porta, ouviu mais alguns bocejos e logo em seguida um despertador tocou.
— Tempo da prova acabou, pessoal. — a voz etérea de João Pestana ecoou pela sala.
Ainda surpreso com a aula, Luquinha seguiu pelo corredor a fim de virar à esquerda, mas assim que passou pela entrada viu do outro lado a sombra de uma estranha figura.
Ao aproximar-se, viu que era a inspetora Cassandra Sibila que sempre espreitava os alunos. Mas desta vez, ela não estava sozinha, estava acompanhada por uma mulher de vestes roxas que usava brincos turquesa e cabelo grisalho Chanel. Seus óculos cujas lentes lembravam asas de libélulas estavam pousados em sua cabeça.
Luquinha reconheceu Maria Posa. Ela parecia nervosa, e as duas andavam muito rápido. O menino se aproximou sorrateiramente assim que elas passaram.
— Messssssssssssssstre Folco Lore quer conversssssar com a ssssenhora ssssobre um incccccidente. — a inspetora disparou conforme andava pisando pesado pelo caminho.
— Mas Inácio está bem! — Maria Posa foi logo se defendendo. — Ele apenas teve um tombo. Não quebrou nada! Aliás não sei como que ele ainda, depois de quase um anelário, não aprendeu a dominar aquelas asas. Vou ter que reprová-lo!
— Não, não, ssssenhora. Não é sobre issssssso que o diretor quer converssssssar, não.
Assim que elas viraram à direita, Luquinha aguardou um pouco e logo as seguiu novamente. As duas pararam em frente a uma porta de madeira escura onde havia uma placa dourada com uma inscrição em kângelus que o menino não entendia.
— Messssssstre Folco Lore. Prontinho, aqui está a Messssstra Maria Posssssssa. — a voz de Cassandra Sibila ecoou.
Em pouco tempo, a inspetora saiu da sala. Assim que encostou a porta, ela ajeitou as vestes cinzas e seguiu pelo corredor sem notar a presença de Luquinha.
— Mestra Maria Posa. — a voz do diretor soou severa, não lembrando nada da animação mostrada durante a partida de queda-livre. — Fomos reportados que as suas mariposas trouxeram uma criança panqueca sem o dente para o Monte do Devaneio.
— O quê?
— Pois é! — o tom de Folco Lore foi ficando cada vez mais sério. — C.C colocou no relatório que se trata de um menino negro chamado Cauã Travassos...
— Não é possível! — queixou-se de forma dramática a professora que era conhecida por ser uma fada do dente muito competente e rígida com as suas mariposas. — Elas nunca se enganam!
— Bem, não sei o que aconteceu, mas a Secretaria de Defesa Anelar será notificada também. — o diretor bufou desanimado. — Eu tinha tanta esperança de reencontrar a urna que guarda o artefato milenar. Ela provavelmente está com o filho de Pete Atlas cujo paradeiro eu senti na rua Rua 17. O nosso plano de resgatar o artefato milenar e achar a criança perdida estará em risco caso a Secretaria desconfie da gente.
— Você... disse menino... negro de nome... Cauã, certo? — soltou a professora matutando.
— Sim, Mestra Maria Posa.
— Ele deve ser o garoto do número 30 da Rua 17, onde vendi três fronhas. Tentei ler a mente dele por meio da minha poltrona telepática durante a noite passada, mas algo deu errado.
— De qualquer forma, mestra, podemos descartar esse menino como sendo a criança perdida. Cauã Travassos deve ser filho legítimo daquela família!
— Sim, senhor! Duas mulheres negras me atenderam lá. O menino não deve ser o filho de Pete Atlas então! O mafagafologista era ruivo. Nossa esperança de que a criança perdida tivesse sido adotada por aquela família se foi!
— De uma vez por todas, Mestra Maria Posa! A propósito, suas mariposas resgataram o menino lá do píer do Rio Aqueronte e o levaram de volta para casa?
— D-do que es-está fa-falando, Mestre Folco Lore? — a professora gaguejou.
— Ué, o relatório de C.C diz que um pedido de resgate foi feito para a senhora pela fada Fantasia hoje pela manhã.
— Não recebi pedido nenhum! Nenhum chalefonema sequer.
— Joaninhas Barbadas! — Folco Lore soltou sem paciência. — Há uma criança panqueca perdida lá fora. E é preciso resgatá-la. Vou abrir mão dos seus serviços como Fada do Dente e vou pedir que a senhora vá atrás desse menino.
— Claro, mestre. Mas e a pulverização dos sonhos? Como ela será feita?
— Não será! — a voz de Folco Lore deixou até Luquinha apreensivo.
— Mas a Secretaria Anelar de Defesa vai bravejar!
— Ela vai bravejar de qualquer jeito. Precisamos reparar um dano! — o diretor comentou com pesar. — No entanto, Mestre Foberto Ícelos está de olho nas crianças da casa de número 29. Há uma menina ruiva que ele acha ser a criança perdida.
— Jura? Ele não me falou nada disso! — Maria Posa soou indignada. — E o que ele disse sobre o garoto da casa 66, Mestre Folc...
— O que você está fazzzzzzendo aí, ssssssssseu danadinho? — a inspetora Cassandra Sibila puxou Luquinha pela orelha de trás da estátua ao lado da porta da direção. — Volte já para o sssssseu grupo de visssssitantes, sssseu panqueca curiosssssssso.
Após ser literalmente arrastado pela inspetora por alguns corredores, Luquinha chegou à porta da Via Láctea. C.C, que se empanturrava com algo, engasgou assim que viu o menino loiro ser praticamente jogado na sua direção.
— Fique de olho nesssssssse menino panqueca, C.C. Ele tem cara de que vai aprontar.
As palavras de Cassandra Sibila deixaram Luquinha sem graça, e ele não conseguiu sequer encarar o pândego que, ao limpar a boca, indicou que ele deveria se juntar ao grupo no salão.
A visão que o menino teve ao passar pela porta foi a de um enorme salão repleto de vitrais à esquerda. Os vitrais pareciam se mexer de acordo com a incidência dos raios solares. Neles havia anelares com roupas antigas e dezenas de mafagafos no céu. As paredes à direita eram escuras e tinham nelas as diversas constelações. O teto comprido possuía um pé-direito alto que sustentava alguns enormes lustres de pirilâmpados. O chão era feito de vidro possibilitando que se visse o lago Lete por baixo dele. Dezenas de mesas compridas e forradas com belas toalhas de renda se espalhavam pelo salão. Sobre elas havia centenas de pratos com guloseimas. E na mesa próxima ao canto direito estava sentado o grupo completo de visitantes que finalmente estava reunido. Todos se fartavam com a comida da escola.
A coordenadora pedagógica, Mirtes Logia, chamou a atenção dos visitantes para um pinheiro com decoração de natal. Ele trazia em seus galhos centenas de bilhetes pendurados onde os alunos haviam registrado seus desejos para o ano letivo de 1995. Além disso, havia no pé da árvore um mural de contagem regressiva para o fim das aulas.
Faltam 03 dias para voltar para casa. Aca.L.An.Tu.S sentirá falta de vocês!
As crianças comiam com boca boa as frutas que haviam sido dispostas em grandes travessas, mas o que a maioria delas havia realmente gostado era um salgado de que até Ícaro, que vivia ali, estava se empanturrando. Sua massa era macia e dentro dele havia gramas e mais gramas de queijo-manteiga. Era daí que vinha o seu nome: pão de batata amanteigado.
Quando Luquinha se aproximou do grupo, Ícaro se assustou e tentou engolir o seu pão de batata. Ele não havia notado a falta do menino loiro no grupo. Ícaro pediu para que Luquinha se sentasse logo, antes que levasse uma bronca por ter perdido um aluno desgarrado.
— Onde você estava, garoto? — o monitor indagou oferecendo pão de batata amanteigado e um copo de suco para o menino que se sentou em sua frente.
— Me perdi! — o garoto mentiu pegando um dos salgados e experimentando.
Nesse momento, Fantasia, a fada guia do Canoa Amarela, começou a andar pelo salão em volta da mesa do grupo. Ela parecia estar vendo se os alunos realmente estavam comendo. Ícaro se levantou e começou a fazer a mesma coisa seguido pelas pândegas.
— Comam tudo, crianças. — a fada disse fazendo caras e bocas enquanto caminhava seguida pelas pândegas que não tiravam os olhos das crianças. — A comida de Aca.L.An.Tu.S é realmente sensacional, não acham? Hmmmm, o suco de morango deve estar uma delícia!
— Suco do quê, ela disse? — Luquinha soltou na mesa em que estava.
— De morango! — alguém lhe informou.
Luquinha achou aquilo sacanagem. Ele era alérgico àquela fruta. Ele estava tão empolgado antes de saber o sabor do suco, pois o pão de batata amanteigado estava realmente uma delícia. Dessa forma, ele devolveu o copo à mesa, não disposto a tomar nada. No mesmo instante C.C se aproximou dele e ríspido disse:
— Pode tratar de tomar todo esse suco aí, ou vamos te jogar no Lago Lete no caminho de volta! E você vai esquecer de tudo antes mesmo de chegar em casa!
Luquinha pensou em explicar que ele era alérgico a morango, mas seria desafiar C.C que já estava com um ódio mortal dele. O menino colocou um pouco do suco na boca e assim que C.C virou-se, Luquinha devolveu o líquido no copo. Ao seu lado na mesa havia um garoto gorducho que parecia não estar saciado e Luquinha lhe ofereceu seu suco.
— Eu não quero isso aí não. Você babou aí dentro, seu porco. — retrucou o gordinho.
Luquinha olhou de soslaio e viu que C.C se aproximava de novo, mas dessa vez acompanhado por Caronte, o comandante do Canoa Amarela. Uma figura assustadora com tapa-olho de caveira.
Com receio de que C.C fosse chamar sua atenção por não ter tomado todo o suco, Luquinha pensou em jogar o suco embaixo da mesa. Mas desistiu porque poderia ser visto pelas pândegas que não tiravam os olhos dele. Depois de matutar um tempo, ele teve uma ideia que era no mínimo constrangedora, pelo menos para ele, "mas quer saber, amanhã eu nem vou me lembrar disso tudo aqui" ele pensou.
Luquinha pegou o copo de suco de morango e o colocou na boca, mas em vez de beber o líquido, o menino o deixava cair pelos cantos da boca molhando assim todo o seu pijama. Se lhe perguntassem o que havia acontecido, ele diria apenas que foi um acidente. Assim que acabou, o menino bateu o copo na mesa com cara de sabichão para que a pândega mais próxima visse que ele havia tomado todo o suco.
— Eu vi exatamente o que você fez, garoto! — C.C disse voltando a se aproximar de Luquinha.
— O que eu fiz? — indagou Luquinha virando-se e dando de cara com o nariz aquilino de Caronte, que por sua vez estava com os braços cruzados e com cara de poucos amigos.
Sem dizer uma palavra sequer, o comandante do Canoa Amarela fitou o menino loiro nos olhos e segurou seu rosto forçando-o a abrir a boca. Assim que Luquinha a abriu colocando a língua para fora, Caronte constatou que a língua dele estava vermelha de suco e o soltou.
— Isso basta! — disse Caronte para C.C. ajeitando o tapa-olho. — Hora de partir. Verifique se todas as crianças tomaram o suco e me encontrem em frente ao portão do castelo.
Luquinha se ajeitou no banco um tanto envergonhado ainda mais quando o garoto rechonchudo começou a zombar dele pelo pijama molhado. Não fazia sentido para ele a obrigatoriedade de tomar aquele suco. Ele só sentiu uma leve coceira na língua e torceu para que aquilo não fosse provocar sua alergia.
Mirtes Logia apareceu para se despedir dos noventa e nove visitantes panquecas que rumaram para a Canoa Amarela. Eles partiram de Aca.L.An.Tu.S exatamente às 14h da quarta-feira. E nada ocorreu no caminho de volta para casa.
Quando deu por si, Luquinha já estava em sua cama na casa de número 66 na rua 17. Seu despertadorindicava 2h30 da manhã da quarta-feira. A diferença no fuso horário do Monte doDevaneio dava a ideia de que muito tempo havia se passado.
E aí o que está achando? Ainha há muito por vir. Continue acompanhando a história de "Os Fabulosos" e não se esqueça de dar estrelas, comentar e seguir a gente. Tudo isso ajuda a divulgar o nosso trabalho.
Beijos
Luiz Horácio
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