Capítulo 12: O Chalefonema
— Here you are! Achei que fosse ficar no quarto descansando. — disse Aracne ao encontrar Cauã perambulando por um dos corredores da Pousada do Viajante.
Ela dedilhava a capa de um livro que carregava consigo em uma pilha com outros exemplares. Um fio de teia de aranha pegava carona em seu cabelo.
— Ah, e-estou apenas c-conhecendo a p-pousada! — Cauã sorriu sem graça tentando acalmar o coração acelerado. Ele estava escondendo o par de chuteiras atrás de si.
Cauã não queria que Aracne soubesse de nada do ocorrido. Nem que quebrara a caixa, nem que usara as chuteiras e nem que incomodara um hóspede. E ele ainda pensou em inventar um pretexto para obriga-la ir até o seu quarto e não descobrir o que ele havia aprontado. No entanto, ele não conseguiu ir muito longe.
— Quando quiser me contar que você quebrou a caixa de vidro onde estavam as chuteiras do meu daddy, fique à vontade.
Cauã sentiu as bochechas e orelhas queimarem.
"Como Aracne sabia daquilo? Será que ela havia inspecionado o chão do balcão da recepção? Ou teria sido a Culpa que o tinha denunciado? De que jeito? As bonecas não falavam!" martelou em sua cabeça.
— Desculpe-me. — Cauã fez que ia devolver as chuteiras para Aracne.
No entanto, a dona da pousada só indicou que ele deveria segui-la.
— Let's go, vamos ligar para um amigo meu que mora lá no vilarejo, Devaneios. Quem sabe ele possa nos ajudar.
Enquanto Cauã buscava encontrar algum telefone pela recepção, Aracne folheava os livros sobre o balcão. Eles eram tão velhos que suas páginas já estavam escuras e manchadas. E antes que a poeira dos livros encontrasse as narinas de Cauã, ele chegou à conclusão de que não havia nenhum telefone por perto. O barulho das páginas virando e o silêncio de Aracne começaram a incomodar o menino.
— Que livros são esses? — ele quebrou o gelo ao aproximar-se do balcão.
— São livros de registro, curious boy. — Aracne fechou o livro que folheava e seus dedos tremelicaram muito. — Acabei de pegá-los no sótão. Precisava conferir algo neles.
Logo, Soberba e Vaidade apareceram para limpar os cacos de vidro deixados por Cauã no canto do chão do balcão.
— Você está brava comigo? — a voz de Cauã saiu fina.
Aracne preferiu não responder e passou pelo garoto indo em direção aos sofás à direita da recepção. Após seguir a dona da pousada, Cauã chegou à cozinha e a encontrou sentada à uma mesa debaixo de um enorme lustre de pirilâmpados.
Além de Aracne, outras três das setes bonecas estavam lá desempenhando funções domésticas.
Cauã reconheceu de imediato a boneca de cabelo platinado e cartola com penas roxas. Era Saudade que estava de pé em um banquinho lavando alguns pratos na pia. A outra boneca, que Cauã lembrava ser Ansiedade, ocupava-se dobrando dezenas de panos de pratos. Enquanto isso uma terceira boneca, provavelmente Melancolia, cortava cebolas em uma tábua sobre um balcão da cozinha. Seus olhos estavam repletos de lágrimas. Novamente, Cauã notou que nenhuma delas possuía sombras.
As paredes eram todas azulejadas em estilo vitoriano. Na parede mais próxima à pia havia panelas e talheres presos por ganchos e na parede maior havia uma dúzia de armários de mogno. Um em especial saltou aos olhos de Cauã: o mais alto. Suas portas estavam entreabertas, revelando o seu conteúdo.
Havia dezenas de caixas, que mais pareciam urnas, espalhadas por todas as prateleiras. "Chá de sumiço, chá de cadeira, chá de cozinha, chá de bebê, chá-bar, chá-cota e chá-sossega-dragão", Cauã leu em kângelus.
Aracne abriu o armário por completo e fez uma cara esquisita. Ela mexeu entre as caixas como se procurasse por algo. E sua feição piorou quando ela encontrou uma caixa semiaberta.
— Ué, que estranho! Não me lembro de ter feito chá-sossega-dragão recentemente. — ela soltou fechando a caixa. — Anyway!
Logo, Aracne tirou uma chaleira de metal, toda velha, daquele armário. Encheu-a com água da torneira e a colocou sobre a mesa. Em seguida, ela pediu para que Cauã se acomodasse. Quando ela voltou a se sentar à mesa, Cauã viu como os dedos das mãos de Aracne se mexiam sem descanso. Ela tentava disfarçar colocando uma mão sobre a outra, mas aquilo não resolvia. Com a insistência do olhar invasivo do garoto em reparar em suas mãos, a dona da pousada decidiu ocupá-las. Escondeu a mão esquerda embaixo da mesa e com a direita passou a girar nos dedos o pingente em forma de estrela em seu colar. Ela girava o pingente tão rápido que a estrela desapareceu e Cauã passou a enxergar outra coisa. A princípio, viu um animal sem forma, e depois avistou uma aranha.
— Well, boy. — disse Aracne limpando a garganta. — Não estou brava com você, não! Te chamei aqui porque não quero que ninguém saiba que você é um panqueca intruso. Nem mesmo o Seu Limor Eufésio que é um doce de pessoa.
Cauã respirou aliviado por um lado, mas por outro, precisou parar um momento para tentar entender onde estava a suposta doçura do Seu Limor. "Talvez no perfume", ele concluiu.
— Todos podem ser suspeitos e informantes da ARCA. — ela falou com pesar.
— ARCA? A polícia local, né?
— Isso, a polícia anelar formada pelos arcanjos, os anjos militares. Todo cuidado é pouco. Anyway, vamos ligar para Déda, meu amigo reparador de livros e dono do sebo lá do vilarejo.
Cauã ficou esperando Aracne tirar um telefone de algum lugar. E imaginou que talvez algumas das bonecas fossem aparecer ali com algum aparelho, ou quem sabe a dona da pousada usaria seu poder para fazer um telefone aparecer do nada, afinal de contas, tudo era possível naquele mundo fabuloso. Mas nada disso aconteceu.
— Feche os olhos, vou te mostrar uma coisa. — Aracne insistiu olhando ora para o menino, ora para a chaleira sobre a mesa.
O menino obedeceu sem imaginar o que estava prestes a ocorrer. Alguns segundos depois, ao comando de Aracne, Cauã abriu os olhos e se espantou ao ver em sua frente a chaleira. Antes parada no centro da mesa, ela estava flutuando alguns centímetros acima da toalha. Abaixo dela havia uma chama azul ardente que não tardou muito para ferver a água lá dentro. Aracne soltou um sorriso frouxo enquanto ajeitava as agulhas de tricô que seguravam seu coque na cabeça. Ela se preocupou em especial com a agulha maior que ficava no meio entre as outras duas menores.
No momento em que os primeiros sinais de vapor começaram a sair do bico da chaleira, Aracne levantou-se e tirou de um dos bolsos um vidrinho que mais lembrava um tubo de ensaio tampado com uma rolha de cortiça. De lá, ela retirou um fio liso, grosso e preto. Em seguida, ela levantou a tampa da chaleira e jogou o cabelo lá dentro e a fechou. Cauã fez cara de nojo. "Será que foi assim que ela fez o chá que eu tomei lá fora? " ele pensou.
Aracne voltou a se sentar e esperou a chaleira apitar. Uma, duas, três vezes.
— Aí está ele! — ela disse sorrindo para Cauã.
— Quem?
— Hello, Déda! — Aracne disse como quem havia acabado de atender um telefone e apontou para a nuvem de vapor que se formou em cima da chaleira na quarta vez em que ela apitou. A chama diminuiu de intensidade, ficando do tamanho suficiente para manter a água fervendo.
— Alô, Aracne. Quanto tempo, querida. — a figura de um homem magricela, cabelo preto e de olhos puxados atrás de óculos de fundo de garrafa apareceu na nuvem de vapor. Atrás dele havia uma estante com centenas de livros.
— Oh, my dear Déda. Pois é, a long time! Como estão as coisas aí em Devaneios? — Aracne perguntou mexendo os dedos da mão enquanto as bonecas trabalhavam na pia.
O amigo de Aracne foi logo falando sobre o baixo movimento de sua loja, sobre como fazia tempo que não chovia lá no vilarejo e sobre a última vez em que eles haviam se encontrado.
Do outro lado da mesa, Cauã observava espantado os dois conversarem por meio de uma chaleira até seu nome ser mencionado.
— Esse é o Cauã Travassos. Ele está um pouco tímido, mas não ligue. É a primeira vez que ele usa um chalefone. — Aracne deu um sorriso largo para Déda e o menino.
Aracne e Cauã contaram todo o ocorrido para Déda, que também conhecia Custódio, o guardião tutelar do menino. E pediram ajuda para enviar Cauã de volta para o mundo dos panquecas.
— My friend Déda, não teria como você entrar em contato com a Fada do Dente? Afinal de contas, seu filho estuda em Aca.L.An.Tu.S.
— Teria como sim...
— Mas a... Fantasia... — Cauã deixou a timidez de lado. — ...da Canoa Amarela já fez isso! A Fada do Dente não enviou suas mariposas para me levar de volta para casa. Esperei lá no píer do Rio Aqueronte por um bom tempo e nada!
— Really? Então não vai adiantar tentarmos falar com ela.
— E se pedíssemos ajuda para a ARCA? — Déda sugeriu.
— NO, NO! De jeito nenhum! — Aracne se exaltou em demasia. — Não sabemos o que eles podem querer fazer com esse pobre boy! P-Precisamos pensar!
O olhar de Cauã murchou com pesar enquanto Déda desviou o foco para um objeto que trazia em mãos.
— Que livro é esse aí? — Aracne disparou buscando assunto.
— Ah, esse aqui? O achei há pouco em uma das pilhas de livro do sebo. É um diário de viagem. — ele levantou um livreto de páginas amarelas e tomou fôlego para falar. — Pasmem, é o diário de viagem de Pete Atlas!
— Pete Atlas? O último fabuloso a ter a urna do artefato milenar em mãos? — Aracne segurou o pingente de seu colar em êxtase.
— Sim, ele mesmo! — enfatizou Déda.
— P-Pete A-Atlas? — Cauã repetiu interrompendo a conversa. — Esse nome não me é estranho! E o que seria o artefato militar?
— Artefato milenar! — Aracne o corrigiu. — Well, boy... existe uma urna onde se encontra o estilhaço da esperança que um dia foi parte da Esfera de Todos os Bens. O estilhaço da esperança pode realizar o desejo de quem o possuir. Porém...
— Ninguém sabe ao certo onde a urna está. — Déda complementou. — O último a possuí-la foi o famoso professor de Aca.Lan.tus. Ele foi perseguido durante a ditadura anelar por ser um mezzo, metade anelar e metade cônico.
— Ele foi caçado porque era mestiço de anjo com brux...
— Não diga essa palavra. — Déda cortou o garoto.
— Let's say... essa foi a justificativa que o governo anelar usou naquela época que ficou marcada pela perseguição de cônicos. Na verdade, Pete Atlas foi perseguido porque descobriram que ele possuía o artefato milenar que estava em sua família cônica por gerações. Reza a lenda que o professor teria usado o artefato milenar, o estilhaço da esperança, para algum propósito pessoal, mas ninguém sabe qual. Ele foi morto por pesadelos da ARCA, mas antes conseguiu entregar seu bebê para panquecas.
— Nossa, que história triste! — Cauã soltou.
— Pois é! Hoje em dia não se sabe nem o paradeiro da criança e nem do artefato milenar! — Déda explicou.
— Dear friend, você acha que deve haver algum indicio do paradeiro do artefato milenar nesse diário aí?
— Talvez! Quem sabe! — Déda virou as páginas amarelas do livreto de capa preta. — Achei este diário no monte de livros descartados pelo diretor de Aca.L.An.Tu.S depois que a Secretaria Anelar proibiu todo e qualquer livro sobre os cônicos na biblioteca da escola. Provavelmente, deve haver algo sobre o paradeiro do artefato milenar aqui.
— Oh, my! Será que se o encontrarmos, podemos trazer Custódio de volta à vida. E aí você, Cauã, poderá sair do Monte do Devaneio para sempre!
O menino não se conteve e colocou a mão na cabeça.
— Só tem um problema! — Déda fez uma pausa.
— Qual? — perguntaram Aracne e Cauã aflitos.
TOC, TOC. Batidas na porta da cozinha suspenderam a conversa dos três.
— Com licença, Dona Aracne. — disse alguém com uma voz gentil girando a maçaneta da porta. — Estou-me indo.
Um perfume adocicado entrou pela cozinha. "ATCHIIIM". Cauã espirrou. Aracne levantou-se de supetão e tirou a tampa do chalefone que flutuava sobre as chamas no ar. Imediatamente o vapor se dissipou, e a imagem de Déda sumiu interrompendo assim a ligação. O chalefone caiu sobre o centro da mesa, e a dona da pousada virou-se para ver quem a estava chamando.
Era o Seu Limor Eufésio. Cauã o reconheceu pelo vão da porta entreaberta ao avistá-lo da mesa onde estava. O senhor rechonchudo estava vestido com um paletó verde musgo, um sobretudo preto e um chapéu coco. Na mão direita o anel dourado, e a outra mão enfaixada. Aos seus pés havia uma mala grande e antiga com os escritos em Kângelus: Propriedade de Limor Eufésio Rosieno.
— Mas já está de partida, Seu Limor? — Aracne foi logo ao encontro dele e o direcionou para a recepção. — Achei que iria fazer o check-out somente amanhã pela manhã.
— Tive um imprevisto. Preciso voltar para a Travesseiros e Travessuras. Uma carga de novos brinquedos vai chegar ainda hoje. Mas agradeço pela hospitalidade.
— Espere um pouco! Vou buscar sua encomenda.
Curiosamente as três bonecas, que trabalhavam em seus afazeres, pararam do nada e começaram a tirar da enorme geladeira e de um armário alguns ingredientes. Elas os colocaram sobre a pia e começaram a misturá-los, sem Aracne precisar falar nada.
— Quanto ficaram as duas diárias mais os tapetes desta e daquela vez, Dona Aracne? — Cauã ainda ouvia a conversa de Seu Limor com Aracne.
— Trezentos e cinquenta raios, Seu Limor. — ela disse entregando ao senhor rechonchudo um pacote grande de papel pardo enrolado por fios grossos que se não fosse pelo brilho poderiam ser confundidos com barbante.
— Ah, antes que me esqueça. — disse ele entregando o dinheiro a Aracne. — Seu afilhado a avisou que derrubei um vidro lá no quarto e há cacos pelo chão?
— Meu afilhado? ... Ah, sim. Já ia mandar uma das dolls ir lá limpar. — mentiu Aracne mexendo os dedos de uma das mãos encostando a porta da cozinha com a outra.
Cauã, ainda sentado à mesa, sentiu um cheiro no ar que o deixou nostálgico. Era cheiro de bolo de fubá com erva-doce, exatamente como a sua avó e a sua mãe costumavam fazer. Ao olhar para os lados, notou Saudade se aproximando e colocando sobre a mesa uma forma de onde vinha o tal aroma.
O menino respirou fundo, e muitas lembranças lhe vieram à mente. Saudade desenformou o bolo em um prato de vidro. Além de cheiroso, o bolo estava muito vistoso, alto e parecia muito fofo.
Cauã imaginou que aquela seria a sobremesa para mais tarde, e sua boca salivou. Mas por pouco tempo, pois, logo Desilusão apareceu e jogou sobre o bolo o que parecia ser calda de chocolate, mas que na verdade era uma lama muito fedorenta. Desilusão, Saudade, Melancolia e Ansiedade sorriram satisfeitas.
— Ei, o que estão fazendo? Vocês estão estragando o bolo. — Cauã disse tapando o nariz.
Aracne voltou à cozinha e olhou encantada para o bolo coberto de lama sobre a mesa. As bonecas fizeram a mesma cara e saíram. O menino não entendeu nada.
— Cauã, o bolo não era para nós! É para o bicho de estimação de Déda.
Assim que falou de seu amigo, ela se lamentou de a ligação ter sido interrompida.
— Por que não liga para ele de novo? — Cauã sugeriu como se aquilo fosse óbvio. — Precisamos terminar aquela conversa.
— Não dá! Eu usei o último fio de cabelo dele que eu tinha. Ah, sorry... — ela disse para Cauã que estava com cara de perdido. — o chalefone funciona com o fio de cabelo da pessoa com quem queremos falar. Só dá para usar um fio por ligação, e cada centímetro do cabelo equivale ao tempo que se pode falar em minutos.
Aracne mostrou para Cauã o interior do chalefone onde havia restado apenas um pouco de água ainda morna.
— O fio já se desintegrou. O melhor é irmos até Devaneios e falarmos com Déda pessoalmente.
— O que será que ele quis dizer com "Só há um problema! "? — o receio tomou conta do rosto de Cauã. Seu medo de não poder voltar para casa só foi aumentando.
— Logo saberemos. Relax, boy. Vamos te ajudar. — Aracne sorriu. — Vamos deixar tudo pronto para a viagem! Partiremos amanhã cedinho.
Cauã consentiu com a cabeça e fez que ia levantar, mas sentiu uma leve pressão no tornozelo, exatamente onde estava o pequeno arranhão que não sabia onde havia adquirido.
— O que foi?
— Acho que dei mal jeito com as chuteiras! — ele fez um muxoxo.
— Ao menos, você já aprendeu a usá-las? — Aracne soltou. — Você terá poucas horas para isso. Como eu disse, vamos para o vilarejo amanhã cedo, e você vai voar com as chuteiras troposféricas.
— Eu o quê? Vou o quê? Chuteiras o quê?
— Você vai usá-las. As chuteiras troposféricas! Têm esse nome porque produzem nuvens que permitem a locomoção rápida durante uma partida de queda-livre, sem que o anelar se canse de tanto bater suas asas. São um ótimo meio de transporte. — Aracne sorriu. — Ah, e tome cuidado com as chuteiras de meu daddy, ok?
— Sim. Yes, yes. — Cauã concordou meio aliviado, meio tenso com tamanha responsabilidade.
E aí o que está achando? Ainha há muito por vir. Continue acompanhando a história de "Os Fabulosos" e não se esqueça de dar estrelas, comentar e seguir a gente. Tudo isso ajuda a divulgar o nosso trabalho.
Beijos
Luiz Horácio
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