Capítulo 11: Aca.L.An.Tu.S
Seu Limor Eufésio Rosieno parecia não estar lá dentro, pois o impacto de Cauã na porta do quarto 08 não chamou a atenção de ninguém.
O garoto, tentando se equilibrar, achou melhor tirar as chuteiras e voltar a andar. Com alguns passos sorrateiros em direção à escada, ele quis sair logo dali, mas deu no máximo dez passos. Algo o impediu de prosseguir.
Um barulho de vidro partindo-se no chão de taco ecoou pelo corredor iluminado por lustres de pirilâmpados. Cauã deu meia volta e concluiu que o barulho provavelmente viera lá do quarto 08.
Ao se reaproximar da porta, o menino olhou de soslaio para trás para ver se alguma das bonecas, ou mesmo Aracne, o observavam. Não havia mais ninguém no corredor. As "camareiras" haviam entrado nos quartos. O menino achou oportuno e pensou que uma espiadinha rápida não faria mal para ninguém. "Será que havia alguém lá dentro?"
Ao olhar pela fechadura da porta do quarto 08, Cauã viu um senhor que parecia ter acabado de sair do banho. Ele era gordo e estava agachado com cara de preocupado tentando limpar alguma coisa no chão em frente à cama. Tinha uma careca que ocupava grande parte da cabeça e que refletia o brilho de sua auréola. Suas bochechas eram rosadas e ele trazia enrolado na cintura uma toalha branca que apertava sua pança saliente. E nas suas costas havia um par de asas cinza tatuado.
Cauã só não conseguiu ver muito bem o que o senhor gordo limpava no chão devido ao ângulo que limitava a visão pela fechadura.
— Joaninhas Barbadas. Hmmmmf. Que droga! Vou ter que dar um jeito de conseguir mais disso. — o senhor zangou-se com seu descuido.
Em seguida, ele levantou-se do chão com um pano embebido por uma substância vermelha e o espremeu dentro de um copo sobre a escrivaninha. Como a mão esquerda dele estava enfaixada com gazes, Cauã viu aquilo como um indicio de que aquele homem já havia se machucado outras vezes com frascos de vidro. Restara dentro do copo bem pouco do líquido rubro a ser aproveitado, pois boa parte havia entrado nos vãos dos tacos de madeira.
Cauã decidiu ir embora. Viu que não havia nada de interessante ali. No entanto, o menino foi surpreendido quando o senhor retirou de sua mala uma folha de papel amarelo. O senhor ("Como era mesmo o nome dele?" Cauã pensou) sentou-se de perfil ajeitando-se na cadeira.
— Dois ovos de mafagafo, uma gota de sangue dos doze primeiros de cada constelação... — o senhor leu. — Não será nada fácil realizar este quebrante!
Cauã achou aquilo muito macabro. O papel amarelado continha uma lista de ingredientes para se fazer algo, mas o menino não fazia ideia do que poderia ser.
Dezenas de perguntas lhe vieram à mente. "Será que o hóspede do quarto 08 era um cônico? Mas isso não tinha nexo. Ele tinha tudo o que um anelar tem: anel, auréola e as asas. E outra, Aracne não iria hospedar um bruxo!" ele concluiu ainda mais quando se lembrou das palavras de seu guardião sobre os cônicos: "Nunca confie em um! Eles jogam sujo! Cônicos não são bem-vindos no Monte do Devaneio!". Bem, o hóspede do 08 poderia até não ser um cônico, mas ele era muito esquisito para o gosto de Cauã.
Assim que terminou de ler os demais ingredientes, o hóspede segurou o copo com o líquido vermelho na mão direita, que tinha um anel dourado, e fez menção de levantar-se. Cauã se assustou e, ao se atrapalhar todo, bateu uma das chuteiras na porta. TAC.
O sangue de Cauã gelou. Ele não sabia para onde ir. Pensou em sair correndo, ou entrar em algum dos quartos vizinhos, mas já era tarde quando ele viu o hóspede vindo em direção à porta. Só deu tempo de ele pegar um aspirador de pó vertical próximo a um dos carrinhos de camareira no corredor. O objeto de limpeza, que estranhamente trazia consigo em sua parte traseira uma placa roxa que dizia ARAC- 1974, foi usado por Cauã para disfarçar.
— Serviço de quarto, senhor? — Cauã sorriu na maior cara lavada para o hóspede rechonchudo assim que a porta foi aberta. O menino segurava o aspirador de pó bem como um sorriso amarelado no rosto.
— Não pedi nada não, moleque. — disse o senhor acabando de vestir um roupão. Seu tom não era nada simpático, ainda mais quando apontou para a plaquinha na maçaneta que dizia "NÃO PERTURBE" em kângelus. Os olhos azuis acinzentados do senhor miravam Cauã dos pés à cabeça, reprovando suas vestes: um pijama e pés descalços.
— Ok, só estou conferindo, senhor. — Cauã fez uma voz gentil enquanto respirava de forma ofegante. — Dona Aracne gosta de saber se todos os hóspedes estão bem servidos.
O perfume adocicado do hóspede estava fazendo o seu nariz coçar, e então Cauã não resistiu. "ATCHIN". Ele viu Seu Limor se afastar com receio de ser atingido por perdigotos.
— Desculpe-me, senhor. — Cauã soltou sem graça limpando a mão no pijama.
— Vai me dizer que você também trabalha aqui? — o senhor colocou a mão enfaixada no batente da porta próximo à altura do peito. Ele olhou Cauã com um muxoxo desconfiando do menino.
— Bem, é que Aracne é minha... — hesitou Cauã mentindo. — madrinha. Só estou conferindo se os hospedes precisam de algo. Bem, pelo visto está tudo Ok. Com licença.
O senhor rechonchudo não deu muito crédito para Cauã, que achou melhor sumir da frente dele o mais rápido possível levando consigo o aspirador de pó vertical. Sem olhar para trás, o menino se surpreendeu ao ouvir ser chamado.
— Garoto... já que você é afilhado da dona... peça para que uma das camareiras limpe aqui o chão. Deixei cair um vidro. Há cacos por toda parte. — disse o homem em um tom seco.
— Sim, senhor! — respondeu Cauã virando-se já no meio do corredor e fazendo um sinal de prontidão.
O senhor então fechou a porta do quarto. "Ufa". O menino respirou aliviado. "Melhor eu voltar para o meu quarto" pensou Cauã procurando um canto para deixar o aspirador de pó.
Meia hora havia se passado desde a partida da Canoa Amarela do píer do Rio Aqueronte. Algumas das crianças já estavam começando a ficar impacientes enquanto outras dormiam no submarino.
No primeiro andar, as crianças menores se divertiam cantando músicas com Fantasia que dava doces entre uma brincadeira e outra. Principalmente gomas de mascar para aliviar a pressão nos ouvidos por causa dos três mil metros de altitude do Monte do Devaneio.
Já no segundo andar, C.C andava pelo longo corredor que separava as fileiras de bancos da esquerda e da direita. Com a cara fechada, o pândego observava atento as crianças maiores que vieram a viagem toda conversando sobre as paisagens do monte. Houve um momento em que C.C quis pregar uma peça em um grupinho de meninos que insistiam em fazer bagunça no fundo do andar. Ele deu a eles brigadeiros travessos, todos azuis. E os meninos ficaram quietos, com os cabelos arrepiados e soltando faíscas o resto da viagem após serem eletrocutados várias vezes.
— Apertem os cintos. Chegamos! — o comandante Caronte anunciou pelo interfone com a voz grossa e de poucos amigos.
As crianças começaram a olhar pelas janelinhas redondas para ver a escola. No entanto, assim que o submarino passou por algumas nuvens, elas só conseguiram avistar algo que não esperavam.
— O que é aquele negócio brilhando lá embaixo?
— Parece uma espécie de ...
— Campo de força, crianças. — disse Fantasia sorrindo e chamando o olhar das crianças pequenas para ela. — O que estão vendo é a redoma de Aca.L.An.Tu.S que protege a escola de invasões e do frio daqui de fora. Estamos quase no topo do Monte do Devaneio, e por isso aqui em cima é tão frio. Mas não se preocupem, pois a temperatura na escola é sempre agradável. Estamos só esperando a torre da escola autorizar o nosso pouso.
— Pouso autorizadddoooooo. SEGUREM-SE, CAMBADA! — gritou C.C com sua voz estridente no piso abaixo.
Assim que o campo de força foi aberto, as crianças começaram a comentar sobre uma construção que se agiganteava conforme a Canoa Amarela ia descendo. Era um castelo enorme que tinha duas torres grandes na parte da frente e mais quatro torrinhas na parte de trás. Eles também notaram a existência de outros prédios dentro do perímetro da construção e de um campo redondo que tinha uma pequena torre no centro. E o mais impressionante era que havia um enorme lago que circundava os muros da escola, como um grande fosso.
O lago recebia o nome de Lete, e sua água, ao contrário da do Rio Aqueronte, era mais turva. O submarino pousou sobre a água em frente ao castelo e depois submergiu lançando bolhas na superfície. As crianças se espremeram nas janelinhas para ver o que havia dentro do lago. Elas se assustaram ao verem algumas sereias comendo o que pareciam ser morangos graúdos conforme o submarino descia.
Logo a Canoa Amarela voltou para a superfície e eles atracaram. Fantasia e C.C desembarcaram as crianças e começaram a colocá-las em fila na porção de terra em frente ao portão da escola. Ele era todo em mogno e tinha esculpido em boa parte de sua extensão o nome da escola em kângelus:
As crianças foram logo se aproximando do portão para tocá-lo e, é claro, C.C perdeu a paciência muitas vezes. Ele precisou chamar a atenção de várias delas. A temperatura estava amena, por volta de vinte graus.
No momento em que o Comandante Caronte saiu do submarino, um silêncio pairou no ar, e todos deram passagem para ele. Algumas crianças menores se afastaram de medo do seu tapa olho preto com uma caveira estampada. E as maiores o observaram bater três vezes no portão principal do castelo segurando fortemente a aldrava ligada a uma peça de bronze em formato de cisne.
— Senha do dia, por favor. — uma voz saiu de lá de dentro.
Caronte coçou a ponta do nariz aquilino e olhou para C.C de soslaio querendo saber qual era a senha do dia. O pândego fez cara de que não sabia e olhou então para Fantasia na esperança de que ela soubesse.
— Hoje foi tudo tão corrido que me esqueci de pegar a senha. — ela disse circundada de crianças e dando um sorriso amarelo.
— Bem, temos um problema aqui. — Caronte falou próximo ao portão olhando torto para C.C e Fantasia. — Meus ajudantes incompetentes sequer se lembraram de anotar a senha do dia. Estamos sem a senha!
— Senha do dia correta: Estamos sem a senha. — disse a voz lá de dentro e logo o portão de três metros de altura se abriu.
Uma senhora negra de vestido e turbante preto apareceu. Suas vestes eram repletas de estrelas e pareciam abrigar a via láctea que se movia conforme ela andava. A senhora estava acompanhada de um jovem anjo de asas cinza, mas que não possuía nenhuma auréola sobre a cabeça.
Ao redor dos dois, havia vinte criaturas que lembravam ovelhinhas bípedes cujos rostos eram pretos, mas a pelagem era bem branquinha. Elas eram pândegas, assim como C.C. Além disso, tremelicavam e emitiam alguns balidos quando andavam, como se estivessem conversando entre si. Elas tinham menos de um metro e usavam vestes azuis com o brasão da escola: um escudo dividido em quatro partes com um dos quatro elementos em cada divisão: água, fogo, terra e ar. Em cima do brasão havia uma auréola e quatro asas nas suas extremidades: uma branca e outra preta na parte superior e uma asa marrom e outra cinza na parte inferior.
— Joaninhas Barbadas. 10h45min! Vocês estão atrasados! Achei que tivesse acontecido algo. — soltou a senhora negra de turbante que andava de forma elegante e altiva. Toda preocupada, ela olhava para um relógio de bolso em formato de besouro ligado ao seu vestido por uma correntinha. — O que houve, Comandante Vultur Caronte? — ela disse fechando as asas do relógio-besouro, colocando-o de volta no bolso.
— Contratempos! — Caronte proferiu encarando C.C e Fantasia que abaixaram a cabeça. — Peço desculpas.... Aqui estão! Noventa e nove no total. — ele entregou o saco de cetim com os dentes para a mulher. Ela o guardou em um de seus bolsos e olhou para as crianças que pareciam estar impressionadas com sua figura.
PAF. O barulho do portão fechando-se completamente quebrou o silêncio existente ali depois que a última criança adentrou. Elas foram conduzidas para um corredor com vários lustres de pirilâmpados.
— Bom dia, queridos. Espero que tenham feito boa viagem. Sejam bem-vindos à Academia Legendária de Anjos Tutelares do Sudeste que há 122 anos tem formado os melhores guardiões tutelares da história deste país. Eu sou a coordenadora pedagógica Mestra Mirtes Logia, e esta é a minha equipe de guias. — disse apontando para o grupo de vinte pândegas e para o anjo que a acompanhava. — Vamos guiá-los por um tour por Aca.L.An.Tu.S. O grupo da fada Fantasia deve seguir comigo e algumas das minhas ajudantes. O grupo do pândego C.C irá com as demais ajudantes e com o monitor do dia. Um dos melhores alunos do quinto anelário, que é como chamamos cada ano letivo. Ele se formará em breve e deixará muitas saudades. Não é mesmo, querido?
Ela se referia a Ícaro Takashi. O garoto de traços orientais que usava vestes cor de oliva. Em seu peito havia um brasão preto ornado com detalhes em verde e duas asas cinza nas extremidades superiores.
O quintanista acenou para as crianças meio sem graça. Algumas crianças pequenas acenaram de volta, algumas meninas de 9 e 10 anos suspiraram, e os meninos daquela idade o olharam com admiração.
— Infelizmente, hoje vocês não conhecerão o diretor da escola, o lendário Mestre Folco Lore. — pontuou Mirtes Logia. — Ele está muito ocupado com a semifinal de interclasse de queda-livre. Tivemos um atraso na programação deste ano.
Depois de um tempo, a figura elegante da coordenadora já não fisgava mais a atenção das crianças que passaram a admirar tudo o que havia naquele corredor. Sobretudo quando o seu fim se aproximou e deu lugar para um pátio espaçoso.
De lá era possível ver boa parte das construções dentro do castelo. A empolgação dos visitantes só aumentou ao observarem a decoração das paredes internas do castelo e suas torres. Eles queriam desbravar aquele castelo o mais rápido possível!
O pátio principal estava todo decorado com motivos de natal. Havia guirlandas, anjinhos metalizados e mafagafos em miniatura. Um enorme relógio em formato de torre com três metros de altura ficava no centro daquele pátio. O relógio não era nada parecido com os relógios panquecas a que as crianças estavam acostumadas. Em vez de números, ele tinha os símbolos de cada constelação zodiacal, e no lugar de ponteiros havia pirilâmpados.
— Esse aqui é o que chamamos de relógio das doze constelações. Ele não marca as horas, apenas os períodos do ano. Reparem que apenas o signo de sagitário está aceso. — Ícaro saciou o olhar curioso das crianças. — Logo abaixo do relógio temos uma estátua de bronze em tamanho real do fundador da escola, Getulino Gama. Ele fundou a escola em 1867 com o objetivo de ensinar graciologia aos anelares da região sudeste. A escola foi construída sobre uma pedra mística, o estilhaço do acalanto, por escravos fugidos. E desde então, eles passaram a viver com dignidade no vilarejo próximo à escola. Getulino foi o grande idealizador de Aca.L.An.Tu.S e suas ordens. Liberdade e respeito eram o seu lema.
Mirtes Logia deu um sorriso largo de orgulho de Ícaro por sua desenvoltura ao falar sobre a escola. Mas sua cara logo se fechou quando ela viu no relógio-besouro que já eram 10h55min.
— Bem, então dividimo-nos agora. Encontrar-nos-emos na sala de refeições, a Via Láctea, para o almoço às 12h30min. Até lá! — ela disse para Ícaro, sendo seguida por dez pândegas, Fantasia e seu grupo.
Assim que o extenso pátio terminou, eles seguiram pela esquerda e entraram em um corredor claro cheio de janelas e estátuas de anjinhos. Era um longo corredor com luminárias de pirilâmpados que os levaria até o estábulo onde havia dezenas de potros de unicórnios que as crianças menores poderiam montar e fazer um passeio pela escola.
Já o grupo de C.C seguiu o monitor e mais dez pândegas e foram pela direita passando por um corredor que desembocou em um pátio menor com bandeiras verdes e brasões pretos com asas cinza. Lá C.C ordenou que todos se sentassem nos bancos para ouvir o monitor:
— Bem, garotada. Vamos começar o nosso tour, então. Aqui em Aca.L.An.Tu.S somos divididos em quatro grupos chamados de ordens: Os Asas Negras, Brancas, Marrons e Cinza. Eu sou da Ordem dos Asas Cinza, como já puderam notar. — Ícaro disse arrancando suspiros das meninas ao abrir as asas. — Este aqui é o pátio da minha ordem. Como a Mestra Mirtes Logia disse, eu estou no quinto anelário e vou me formar no início do ano que vem e aí serei ordenado guardião tutelar e passarei a ter uma auréola registrada na Secretaria Anelar de Defesa.
O aluno dos Asas Cinza continuou explicando que ser monitor do dia era uma das tarefas de estágio dos alunos quintanistas, e que após a formatura, ele pretendia prestar a AMEM (Avaliação Magistral do Ensino Mestre), para ingressar na Academia de Arcanjos, uma tal de ARCADA.
Depois de mais alguns informes sobre o número de alunos (um total de duzentos e quarenta) e aposentos da escola (cerca de duzentos), o monitor guiou o grupo para uma das quadras da escola onde avistaram uma senhora de baixa estatura, vestes roxas, cabelo grisalho Chanel e óculos cujas lentes pareciam ser asas de libélulas. Mestra Maria Posa, também conhecida como Fada do Dente, estava em uma aula de voo para os primeiranistas.
Ícaro explicou que no primeiro anelário, todos os alunos das diferentes ordens tinham aulas juntos. Era por isso que os alunos usavam vestes com diferentes brasões e de cores distintas: azul, laranja, verde e roxo.
C.C obrigou todos a se sentarem na pequena arquibancada e fazerem silêncio para não atrapalhar a aula. Luquinha observou que enquanto as crianças prestavam atenção à aula da Mestra Maria Posa, C.C só queria prosear com as pândegas que falavam em um idioma específico.
— Lembrem-se do que eu já lhes disse, garotada. Já estamos no fim deste anelário e alguns de vocês ainda estão voando torto. — Maria Posa caminhou por entre os vinte e quatro alunos da turma. — Quero ver se evoluíram ou se terei que reprová-los em Evocação, Dominação, Fusão e Voo I.
Ao parar de andar, ela pediu que os alunos dessem entre si um espaço de um braço e se concentrassem de olhos fechados.
— Vamos lá, pessoal. Todos se concentrando para evocar suas E.I's.
— E.I's? — as crianças visitantes perguntaram para Ícaro em tom curioso.
— E.I é a energia interna que nós anelares temos. — explicou o monitor. — Ela tem formato de uma serpente alada com asas de pássaros. O tipo e a cor da asa mudam de acordo com a ordem a que pertencemos. Os Asas Negras e os Asas Brancas têm asas de cisnes, os Asas Marrons têm asas de gavião, e os Asas Cinza têm asas de coruja. Ao evocar suas E.I's, os alunos vão precisar dominá-las e depois deixá-las se fundirem aos seus corpos. É assim que "colocamos" nossas asas.
— Isso, muito bem! — soltou a professora toda empolgada enquanto os visitantes olhavam boquiabertos uma áurea luminosa emanando-se dos alunos. — Agora vocês já sabem o que fazer, não é mesmo?
De repente todos os alunos juntos na quadra começaram a cochichar palavras que a princípio não tinham nexo para os visitantes, mas conforme as palavras foram sendo repetidas incessantemente, foi ouvido algo do tipo:
Um ninho de mafagafos está cheio de mafagafinhos.
Quem desmafagafar o ninho de mafagafos.
Bom desmafagafador será.
Tais frases foram repetidas algumas vezes pelos alunos até que formas espectrais de serpentes aladas começaram a subir ao céu vindas dos tórax deles. Os visitantes olhavam para o alto como quem observava fogos de artifícios. As serpentes emanadas, as E.I's, fizeram um movimento circular no céu e voltaram a cair indo em direção aos seus donos.
— Isso, meus queridos!!! Assim que dominarem suas E.I's, virem de costas e façam a fusão com elas. — disse a professora toda empolgada.
Em seguida, as E.I's se chocaram com os alunos dando-lhes belos pares de asas.
— Uau, que demais! — exclamou boa parte do grupo de visitantes na arquibancada observando os vinte e quatro alunos chacoalharem suas asas na quadra.
— Podem levantar voo. Um metro do chão apenas. Olha quem está aqui. Os visitantes do dia! — Maria Posa disse desviando o olhar da sua aula e aproximando-se da arquibancada — Fizeram boa viagem? Esse é o grupo dos maiores, né, Ícaro. Estão todos aqui?
— Estão sim, professora. Cinquenta e nove crianças de nove e dez anos. — Ícaro respondeu olhando para C.C que na hora parou de paquerar as pandegas. Ele parecia intimidado pela figura da professora.
— Bem... — o pândego teve que se esforçar para projetar a sua voz da arquibancada. Ela não era tão potente sem o megafone. — No píer...
Algumas risadinhas deixaram o pândego apreensivo.
— SOCOROOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO. — a voz aguda de alguém cortou C.C.
— Hã? O quê....? — Maria Posa tentou ouvir, mas o pedido de ajuda desviou a sua atenção. — Joaninhas Barbadas! O que você está fazendo, Inácio Fracosso?
— Só ficou aquele menino... que as suas mariposas já devem ter levado para casa. — C.C continuou baixinho com vergonha de sua voz soar mais esganiçada ainda.
— PARE! Assim vai acabar ficando tonto! — Maria Posa correu atrás de um aluno negro e gorducho que estava todo atrapalhado com suas asas marrons.
— Mais tonto do que ele já é, será impossível! — um dos alunos cochichou com o outro.
— Não sei, mestra, minhas asas estão me fazendo voar em círculos. — Inácio Fracosso respondeu com a voz tremendo enquanto fitava vesgo suas asas.
— Faça-as parar, então. — exigiu brava a professora.
— Não consigo. Elas parecem que têm vida própria. Ahhhhhhh. — gritou o menino que estava agora de ponta cabeça batendo as asas enquanto o seu cofrinho aparecia.
Os demais alunos pousaram no chão dando risadinhas. E as crianças panquecas visitantes foram chamadas por Ícaro para saírem da quadra e deixarem a Mestra Maria Posa resolver a situação. Os visitantes foram se afastando, mas sem deixar de prestar atenção na aula ao longe. Foi quando viram Inácio Fracosso voar feito doido e trombar em uma das grades que cercavam a quadra. Ele escorregou de ponta cabeça até o chão, e várias risadas ecoaram pela quadra.
— Os professores daqui trabalham muito. — Ícaro elevou sua voz para chamar a atenção das crianças para si enquanto se dirigiam para o prédio principal da escola. — Eles têm várias funções, e vários deles têm que dar aula em mais de uma escola, como é o caso do Mestre João Pestana que conheceremos ainda hoje. Ele vem lá da escola do Nordeste, da Ac.O.N.Che.G.U.S, todas quintas e sextas para lecionar Fabulosofia I e II.
— E ele vem até aqui como? Voando? — Luquinha se esbarrou nas demais crianças para se fazer ouvido por Ícaro.
— Qual o seu nome, garoto?
— Lucca Cincinato Fernandes, mas pode me chamar de Luquinha!
— Que nada, Luquinha! Embora ele seja um anjo muito habilidoso, é muito longe para vir voando. Ele vem com o Expresso Sudeste, um busão bem ligeiro.
Depois de uma rápida caminhada pelos corredores da escola, o grupo de C.C entrou no prédio central onde estavam as salas de aula. Ao subirem as escadas, as crianças visitantes encontraram sete garotos corpulentos de asas negras. Eles eram do quarto anelário e estavam vestidos com uniformes pretos com detalhes em laranja, capacetes, tornozeleiras e chuteiras que mais lembravam as de futebol se não fosse pelas asas brilhantes de cada lado dos calcanhares.
— E aí, Ícaro, o monitor do dia! Ou seria a babá da vez? — zombou um dos garotos que tinha uma faixa colocada no braço. Ele era forte e tinha cabelo bem preto e cacheado. — Conduzindo os visitantes, ou melhor, a creche?
— Sim, Tomás Miller. — Ícaro soltou com um tom irônico cerrando ainda mais os seus olhos orientais. — Recebemos noventa e nove crianças hoje. E vocês rapazes, indo pro campo perder de lavada para os Asas Cinza do terceiro anelário?
— E desde quando veteranos perdem? Ainda mais para a sua ordem? — sorriu Tomás Miller com desdém despedindo-se do grupo de visitantes. — Se der, Ícaro, leve a "creche" para ver uma partida de queda-livre. Estamos indo para o campo agora.
— Ah, que pena. Não poderemos ver vocês jogando hoje. Estamos indo para a aula do Mestre Morfeu Elísio. — Ícaro disse encarando Tomás Miller. — Tenho certeza de que os nossos visitantes terão uma chance de ver uma partida bem melhor da próxima vez!
Tomás Miller, envolto pelo seu grupo de amigos, estreitou os lábios e foi para cima de Ícaro com suas asas abertas. Ícaro recuou instintivamente da ameaça. Pairou no ar uma tensão muito grande que foi percebida por Luquinha assim que ele chegou ao topo da escada. O menino loiro poderia jurar que uma briga estava prestes a começar.
— Ssenhoressss, quantassss vezzzzzzesssssss eu vou ter que falar que não podem voar aqui dentro? — uma voz sibilada disse chamando a atenção dos garotos.
Uma figura alta e magricela com vestes cinza surgiu na frente de Ícaro, Tomás Miller e do grupo de visitantes que estava terminando de se aglomerar no topo da escada. Ela tinha o nariz empinado e seu cabelo era preto e oleoso.
— Camuflem essas assssssssssssssssssasssssssss, ssssssssssssssssseeenhoressssss.
"Um ninho de mafagafos está cheio de mafagafinhos. Quem desmafagafar o ninho de mafagafos. Bom desmafagafador será" o grupo de garotos soltou fazendo com que suas asas negras desaparecessem.
— Dessssssssssçam logo, meninossssssssss, ou pedirei para fechhhhharem os portõesss de acessssso ao campo. — ela advertiu o grupo de Tomás Miller, passando por entre os visitantes que a olhavam com receio. — SSSSSSeu Ícaro, tenha um ótimo tour. Esssssssstarei de olho nesssssssasssss criançassss!!!
Tomás Miller e seus comparsas se apresaram em descer a escada rumo à partida. A mulher esquisita desceu logo atrás deles dando-lhes broncas e chamando-os de "irressssponsssssáveisssssss".
Nesse momento o grupo de visitantes apareceu por completo no topo da escada. C.C chegou por último rodeado pelas pândegas que ele não parava de paquerar. Ele até se escondeu por trás delas para não cruzar com o caminho da mulher que chiava.
— Aquela é a inspetora Cassandra Sibila. Super rígida. A maioria dos alunos morre de medo dela. Ela adora passar castigo pra gente! — cochichou Ícaro sorrindo para o grupo de crianças visitantes — A chamamos de Sibilante por causa do jeito engraçado de ela falar. Relaxem! Ela não nos oferece perigo!
O monitor do dia disse aquilo em um tom debochado para descontrair as crianças. Muitas ficaram curiosas a respeito de quem eram aqueles caras fortes e do que se tratava aquela tal de queda-livre. Olhando constantemente em seu relógio de pulso, Ícaro guiou os visitantes pelo extenso corredor superior cujas paredes eram revestidas por pedras gastas e luminárias de pirilâmpados. No caminho ele explicou que os garotos eram da ordem dos Asas Negras e que eles se achavam os melhores jogadores de queda-livre, uma espécie de futebol vertical.
Embora a curiosidade dos visitantes tenha sido aguçada pela descrição feita por Ícaro, ele os informou que a partida de queda-livre não estaria incluída no tour daquele dia. E que a próxima "atração" seria a aula de Graciologia I do Professor Morfeu Elísio.
Entre o desapontamento das crianças e sua tentativa de animá-las para a aula, Ícaro parou com o grupo próximo a uma porta grande de madeira que tinha uma aldrava prateada com formato de coruja. De seu bico saía uma argola que Ícaro ameaçou bater para pedir permissão para entrar, mas um bilhete na porta o fez parar. Ele estava escrito em português mesmo e tinha o brasão da escola. Ícaro o leu em voz alta:
— Nossa, já é a quinta aula que ele cancela este mês! — Ícaro soltou incomodado. Ele havia ficado perdido, pois não sabia por qual atividade poderia trocar a aula de Graciologia I.
Entrementes, a euforia das crianças só foi aumentando, e o monitor se viu obrigado a agir e pegou de suas vestes oliva a programação daquele dia. Ele meio que calculou o tempo em voz alta tentando ver se conseguiriam adiantar ou atrasar uma ou outra atividade. Enquanto Ícaro pensava, C.C e as pândegas tentavam botar ordem no furdunço que começou a se formar. C.C decidiu continuar pelo corredor fazendo as crianças o seguirem, pelo menos assim elas se acalmariam. Ícaro os seguiu enquanto pensava, e Luquinha deixou todo mundo passar na sua frente.
O menino loiro ficou por último, pois notou que o brasão que estava no bilhete da porta era o mesmo símbolo do pergaminho que ele havia visto no jogo que Cauã tentara esconder dele. Dessa forma, Luquinha retirou o bilhete da porta e o guardou no bolso de seu pijama.
Quando Luquinha voltou para a fila já no fim do corredor, ele viu um Ícaro que parecia ter finalmente achado uma solução para a aula vaga.
— Vamos para o campo central. A partida de queda-livre começa em vinte minutos. — o monitor anunciou em meio à alegria dos visitantes.
E aí o que está achando? Ainha há muito por vir. Continue acompanhando a história de "Os Fabulosos" e não se esqueça de dar estrelas, comentar e seguir a gente. Tudo isso ajuda a divulgar o nosso trabalho.
Beijos
Luiz Horácio
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