Capítulo VI: Sorriso sádico
Deixe-me só, leve contigo esta maldição,
Arranque de uma vez as trevas que habitam meu coração...
O Sol adentrava o quarto com seus raios quentes. Continuava deitada nos aposentos de Antero, ele preferiu que ficasse ali para que me vigiasse durante a noite. Meu irmão estava sentado na poltrona, perto da janela.
— Antero — chamei, pois ele olhava para o lado de fora.
— Agnessa! — Se apressou em sentar-se ao meu lado. — Como estás, minha irmã?
— Estou bem, nem parece que aconteceu tudo aquilo ontem à noite — respondi com a voz um tanto baixa.
— Vou pedir para que Giórgio chame uma das criadas e ordene que traga seu café da manhã aqui.
— Não tem necessidade. Eu posso descer. Só preciso tomar um banho, ainda sinto o cheiro daquela coisa horrível impregnado em mim — disse, contorcendo a face enojada.
— Vou chamar a mamãe para lhe ajudar, sei que preferirás que ela lhe auxilie no lugar de alguma das criadas.
— Sim, por favor. Elas já têm trabalho demais aqui no castelo e também com suas famílias.
— Usarás a tina¹ ao lado do quarto dos nossos pais, ou a que fica perto do teu?
— Eu vou subir até o meu quarto, peça a Giórgio que pegue meu vestido rosado na sala das vestimentas, por favor.
— Como preferiste, Ag. Tens absoluta certeza de que estás bem? — questionou uma segunda vez, atencioso.
— Estou sim, meu irmão. Obrigada pela preocupação e também por ficar aqui comigo. — Segurei em sua mão e sorri.
— Vou chamar a mamãe e comunicar Giórgio de seu pedido. — Ele deu um beijo em minha testa. — Certeza que podes subir sozinha?
Anuí, sacolejando a cabeça.
— Depois eu preciso conversar contigo, mas por favor, não conte ao papai.
— Tudo bem, Agnessa. Ficarei aqui lhe esperando.
Assim que Antero deixou o cômodo, eu me levantei da cama, esfreguei os olhos e bocejei. Calcei meus sapatos e caminhei — ainda com um pouco de sono — até meu quarto, que ficava bem longe dos aposentos de meu irmão. Mais precisamente, ao lado da quarta torre, na parte de trás do castelo de Erysimun.
Minha mãe apareceu logo em seguida, suando como se tivesse acabado de jogar água em sua face.
— Agnessa! — falou ofegante. — Seu irmão acabou de dizer-me que acordou, vim correndo para saber como estás.
— Vou bem, mamãe. A senhora não precisava correr como uma égua indomada. — Ri.
— Ainda tens o atrevimento de gargalhar! — falou. — E eu morrendo de preocupação. — Se aproximou de mim e eu a abracei.
— Está tudo bem, mamãe. Só quero sua ajuda para desamarrar o vestido.
— Claro, vire-se — ordenou.
Eu coloquei os cabelos longos para cima e os segurei.
A tina estava repleta de água nova, um dos criados havia acabado de trocá-la.
Depois disso, minha mãe se retirou e eu fiquei só. Coloquei primeiro os pés naquela água fria misturada com algumas ervas.
Sentei-me. Senti o contato com o líquido e minha pele se arrepiou, em seguida deitei-me devagar, molhando cada fio de cabelo presente em minha cabeça. Mergulhei. Quando voltei para a superfície, passei as mãos sobre os olhos e aproveitei aquele tempo para pensar. Fiquei ali com as pernas dobradas e os braços em volta delas, imaginando o que faria depois de tudo. Pensando no que teria acontecido comigo na noite anterior, e em como resolveria minhas pendências referentes à chave da aura.
Depois de limpa, levantei-me e coloquei as vestes brancas que usávamos para dormir, calcei minhas chinelas de bocejo e fui até meu quarto. Meu vestido já estava preparado ao lado do espelho. Meu diadema de esmeraldas estava em cima da cama, colocado de uma maneira encantadora. Uma rosa amarela repousava ao lado dele. Sorri observando a flor.
Em nossa cultura, dar uma flor dessa cor significava desejo de pronta recuperação. Era também um sinal grande de carinho e afeto.
Me sentei sobre os lençóis e peguei-a em minhas mãos, aproximei-a de minhas narinas e inalei seu aroma. Em seguida, com certo esforço, me vesti sozinha. Pedi às costureiras que fizessem algo diferente naquele vestido, ele tinha amarraduras frontais, para que eu pudesse usá-lo sem pedir ajuda alguma.
Penteei os cabelos em frente ao espelho. Me banhei em algumas borrifadas de perfume e prendi a tiara com pedras verdes no topo de minha cabeça.
Assim que abri a porta do quarto, Giórgio estava do lado de fora, parado como uma das nove torres.
O encarei confusa, porém com um sorriso nos lábios.
— O que foi? — perguntei.
— Parece que Vossa Alteza está muito bem — respondeu.
— Estou bem melhor.
Ele ficou parado, me encarando de uma forma estranha. Suas rugas estavam ressaltadas e se moviam lentamente na face enquanto seu pomo de Adão subia e descia.
— Princesa, tens certeza de que...
— Giórgio, eu estou em plena forma! Não é necessário que tu te preocupes, está bem? — disse me aproximando dele.
— Assim espero, princesa. A propósito, estava tudo como pediu?
— Sim, tudo perfeito. E obrigada pela rosa amarela. — Sorri.
— Agradeça ao domador. Foi ele quem pediu que lhe entregasse. Estava deveras preocupado com Vossa Alteza — comentou, olhando para os lados do corredor, certificando-se de que ninguém ouviria.
— Isso é verdade? — questionei com certo contentamento.
— Sim, alteza. Mas não digas a seus pais que eu lhe entreguei a rosa em nome de Ícaro.
— Permaneça bonançoso. Não direi nada. Sei que eles iriam lhe questionar, e a última coisa que quero é uma discussão — repliquei. — Vou até o quarto de Antero, me acompanhas?
— Sentir-me-ia honrado, princesa. No entanto, tenho coisas para resolver nesta parte do castelo.
— Problemas com as roupas dos criados outra vez? — perguntei.
— Nem me fales! — Ele ergueu os braços.
Sempre amei aquele jeito espalhafatoso do conselheiro de meu pai, era uma ótima pessoa, além de ajudar com os assuntos reais do dia a dia.
Voltei para os aposentos de meu irmão, onde o mesmo me esperava, sentado no batente da janela.
— Antero — o chamei, entrei e fechei a porta.
— Ag, tu estás linda. E tens cheiro de rosas — disse, como sempre fazendo-me sentir melhor.
— Preciso conversar contigo acerca da coroação.
— O que queres? Precisas de ajuda?
— Na verdade, não. Queria perguntar-lhe uma coisa.
— Diga, sou todo ouvidos. — Foi até mim.
Respirei fundo e fechei os olhos antes de começar, quando me senti pronta, questionei-o:
— Antero, por que não tomaste o seu lugar como rei? Sabes que eu não tenho desejo de governar.
— Minha irmã. O papai foi bem claro quanto a isso. Ele quer que eu seja o seu mentor para assuntos espirituais e que você seja a grande rainha soberana.
— Não entendo o porquê. Eu nem consigo por a mão naquela maldita chave! — Cruzei os braços e andei pelos seus aposentos.
— Agnessa! Veja como tu te diriges do objeto sagrado!!!
— Diz isso porque podes fazer bom uso dela quando bem entenderes, Antero.
— Tu também conseguirás. É só uma questão de vontade. A chave só se permite ser tocada por alguém que queira realmente o fazer. Pelo visto, o papai te obrigou.
— É claro. Eu tenho apenas dezenove anos, meu irmão. Acho que o pai quer se isentar das suas responsabilidades de rei, voltando tudo para minha pessoa.
— Não diga isso, Agnessa. Tu sabes que és a escolhida por um propósito. — Ele se aproximou de mim e segurou em minhas mãos. — Tens nos olhos o brilho e a determinação que um rei precisa para governar seu povo. Tens o dom de falar, de expressar suas vontades da melhor maneira. Ama a todos, inclusive os criados. Erysimun precisa desta rainha, o quanto antes. — Beijou minha testa.
— Antero, eu... posso lhe fazer um pedido?
— Claro, princesa.
— Prometa que tu não sairás do meu lado até o fim dos nossos dias. Prometa que não vais deixar-me sozinha.
— Eu prometo, Agnessa. Mas lembre-se, a rainha é você. Terás que tomar decisões sobre as quais eu não poderei lhe auxiliar. E provavelmente serão as decisões mais difíceis. No entanto, mantenha-se tranquila, mesmo que não possa lhe ajudar, estarei sempre ao seu lado, minha irmã.
— Obrigada, Antero — falei sem mudança na entonação. — Agora, será que podes ir comigo até o joalheiro real? O papai mandou fazer uma coroa sob medida para mim. Estou deveras incomodada por ter que trocar minha tiara de princesa por uma coroa pesada e desconfortável.
Meu irmão riu de um jeito tão bonito que apenas ele conseguia.
— Claro que eu vou, e também conversarei com o joalheiro para que diminua as proporções da coroa e a faça o mais leve possível.
— Não sabes como amo-te, Antero.
— Sei sim. Porque eu lhe amo com a mesma intensidade. — Me abraçou.
Após deixarmos seu quarto, seguimos até o joalheiro, que tirou todas as medidas necessárias e anotou a forma como eu imaginava minha coroa. Foi bem rápido, queria que as coisas se resolvessem daquela forma, porém, nem tudo foi tão simples.
— Pronto, minha irmã. Agora já estou liberado? — perguntou, enquanto caminhávamos pelo corredor, em direção ao salão das refeições.
— Sim, tens pressa de ir a algum lugar? — indaguei. — Vais visitar a costureira, não é mesmo? — Sorri com malícia e ele correspondeu.
— Tu tens o teu domador de cavalos. Deixe-me amar, irmã — brincou.
— À vontade, mande um beijo a ela. Avise-a que irei tomar um chá em sua casa antes da coroação — falei, pois era uma velha conhecida da tal jovem.
Ela foi quem fez a maior parte dos meus vestidos depois de completar dezessete anos. Eu sempre ficava ao seu lado, vendo cada ponto ser feito de uma maneira mágica.
— Se precisares de algo, peça que algum criado me chame. — Ele deu um beijo em minha bochecha se retirou.
Observei sua silhueta sumir ao longo do corredor, andava apressado por conta do amor que sentia pela moça e pelo anseio de reencontrá-la.
Olhei para os lados, ninguém me espreitava, decidi então fazer o que minha cabeça mandara desde o momento em que me levantei.
Troquei a direção que seguia, tomando rumo da masmorra. Desci as escadas sem que meus pais soubessem de meu paradeiro. Apenas os guardas que tomavam conta das celas sabiam de minha presença, e mesmo assim, eles tinham ordens explícitas de não falar nada sobre o que acontecia lá embaixo, para quem quer que fosse. A menos que o rei ordenasse.
Me aproximei devagar do local onde o feiticeiro estava. Meu vestido era pesado, eu segurava sua saia para ter mais liberdade com os pés. Assim que me viu através das grades, o homem se levantou correndo do leito em que se encontrava. Seus lábios carregavam um sorriso sádico. Seus olhos verdes, quase azuis, eram tão sombrios quanto as magias que praticava.
— Ora, ora, princesa. Imaginei que receberia sua ilustre visita. — Fez uma reverência, de maneira irônica.
— O que fizestes? Aquilo foi culpa sua? — inquiri sem me aproximar demais das barras que nos separavam.
— Precisava chamar sua atenção de alguma forma, não podia lhe convidar para uma conversa diante do rei Demétrio. Ele jamais permitiria que ficássemos a sós.
O sorriso não saía de sua face, era amedrontador.
— O que queres? — perguntei alterada.
— Primeiro, preciso que tu te acalmes. Só quero lhe ajudar.
— Quase me matas!!! — respondi.
— Já disse que foi necessário. E também, foi bom para que tenhas conhecimento do que posso fazer sem ao menos tocar na pessoa que desejo afetar ou ajudar.
— Pare de embromação! Digas logo o teu propósito.
— Fiquei sabendo que se tornará rainha. Mas sei também que ainda não consegue tocar no objeto sagrado.
— Como sabes?
— Eu sei de muitas coisas, princesa.
— E o que pretendes? — questionei.
— Como disse, quero lhe ajudar. — Estendeu as mãos em frente ao corpo. — Eu sei uma forma de manter o equilíbrio do reino sem que toques na chave.
— É impossível! — bradei nervosa.
— Claro que não. E eu posso lhe mostrar, se quiseres. Basta que deixes de lado esse orgulho e me peças ajuda.
Eu estava quase hipnotizada por suas íris perfeitamente coloridas.
— E como isso aconteceria? — Pisquei algumas vezes rapidamente para voltar ao meu estado normal.
— Sinto muito. Não posso dizer-te até que aceites os termos. — Ele tensionou os ombros.
— Então vais apodrecer nesta cela imunda! — esbravejei e saí pisando duro, porém, parei ao ouvir o tal homem gritar-me.
— Princesa! — Ele chamava com o rosto colado às grades. — Ainda hei de ver-te aqui antes de sua coroação — disse, como se previsse o futuro.
— Não voltarei! — respondi em meio ao corredor.
— Isso é o que pensas — respondeu. — E a propósito, não precisas mais me chamar de feiticeiro. A senhorita pode ter a honra de usar meu nome.
— Não me interessa!
— Órion. Meu nome é Órion — falou com satisfação, ignorando o que eu havia acabado de dizer. Parecia um louco. — Ainda vais necessitar de meu auxílio, princesa — dizia, em um tom assustador.
Deixei o lugar, com o peito carregado. Qual seria o método capaz de manter a paz em Erysimun senão a magia da chave? Estava por demasiado curiosa, e aquilo foi o estopim para tudo que veio a seguir.
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