Caça e Caçadora
Cada passo de Alice era como um golpe no próprio mundo. Mesmo inconscientemente, ela estava deixando sua raiva vazar mesmo em um ato tão simples quanto "andar". Ela queria destruir tudo, sem exceção. Esse lugar idiota, que fazia ela lutar contra outros campistas tão fracos que parecia ser o equivalente de brincar com crianças. Mas, principalmente, ela queria destruir Zack Bell. Ela esperou tempo demais para agir sozinha, e agora seu pai havia pagado o preço. Agora, no entanto, sua técnica estava pronta.
Ela lembrava das palavras de Tristan, que o ensinou a analisar suas fraquezas e criar algo novo para cobrir elas, e Alice sempre ouvia seu pai quando o assunto era lutar. Como não poderia? Tristan era sem dúvidas o homem mais forte do mundo todo, e além de seu pai, ele era seu ídolo. Agora ela tinha uma chance perfeita para provar que ela já estava em um nível acima do resto, que Alice era melhor que todos eles. E também, mesmo que ela gostasse de admitir para si mesma que isso não importava, seria ótimo provar de uma vez por todas que ela era a melhor filha.
O que, obviamente, já era verdade.
Finalmente chegando no centro de treinamento do acampamento, Alice vê a lâmina ainda embainhada guardada logo ao lado da mesa de seu pai, exatamente onde ele havia deixado. Ela imaginava que Lancelot havia sido deixado para trás por conta da força imensurável de seu pai, que nem precisava mais de lâminas. Ela não deixaria a oportunidade passar, pois ela não era tão forte quanto seu pai, logo Lancelot faria a diferença. Assim que Alice segura o punhal da espada, ela ouve aquela voz irritante.
— Vós sois indigna, pequena leoa, soltai-me imediatamente!
— Argh, fica quieto, pedaço de metal. — Alice grunhe, prendendo a bainha em sua cintura. — Eu vou te mostrar que sou digna logo logo.
— Não sois indigna pela fraqueza física. — Lancelot responde, mantendo seu tom de voz sempre tão "mais sagrado que tu". — Mas sim pela fraqueza de espírito. Teu pai, mesmo com todos os motivos do mundo, jamais cedeu à corrupção. Eu vejo a vossa alma, e vos digo: cederás.
— Tsc, que besteira.
Ela? Fraca de espírito? Claramente a espada estava ficando gagá, e não era ela que perderia seu tempo tentando convencer o velhote que ela era digna de herdar a vontade de seu pai. De qualquer forma, a aprovação dele não importava. Lancelot era uma ferramenta, ela era a guerreira. Já com todas as suas coisas em mãos e pronta para partir, Alice se vira de costas para sair do centro de treinamento pela última vez pelo que poderia durar muito tempo. A garota admite que sentiria falta daquele lugar, claro, mas não seria de lá, e sim das memórias que construiu com seu pai, e soltar ele era a missão.
Uma vez, Ártemis havia dito para ela as seguintes palavras: Lar não é onde você mora, mas quem se importa quando você se for.
Alice não sabia bem o porquê disso passar em sua mente agora. Não é como se ela fosse sentir saudades desse acampamento deprimente, né? Não, claro que não. Afastando esses pensamentos idiotas da sua mente, a garota se surpreende com quem vê na porta. Com uma aparência sempre tão poderosa e imponente, lá estava a deusa da caça, Ártemis, aparecendo como se tivesse notado que a garota havia acabado de lembrar dela. Mesmo com toda a sua presença, algo nela parecia diferente, um ar triste. Alice, obviamente, conseguia entender a razão.
— S-senhora Ártemis? — a garota gagueja em choque por um instante, logo depois retomando sua postura séria e cruzando os braços. — Você veio tentar me impedir de ir embora? Com todo respeito, senhora Ártemis, mas-
— Alice, eu já lidei com seu pai por tempo o suficiente para saber que vocês dois são impossíveis de convencer. — a deusa sorri, logo depois se aproximando em passos lentos. — Porém, só para garantir. Você pretende mesmo ir?
— Sim! Sem dúvidas. Eu treinei por tempo o suficiente, eu já até consegui criar a minha própria técnica. — Alice responde com determinação em sua voz. Nenhuma parte de seu ser duvidava de suas palavras, e até mesmo Ártemis conseguia sentir isso. — Foi pra isso que meu pai me treinou, e eu vou provar pra vocês que eu sou mais do que capaz. Eu preciso fazer isso, mãe!
Ah, droga. Alice pensa com seus olhos arregalados e suas bochechas queimando em vergonha. Ela não recusava a ideia de pensar em Ártemis como sua mãe, obviamente, já que esse foi o papel da deusa durante toda a sua vida. Ainda assim, era demais para ela usar essa palavra em voz alta. Em um instante, toda a confiança em sua voz estava em jogo.
— Foi o que eu imaginei. Alice, você é tão... parecida com seu pai. Suas palavras, seu jeito, sua força. É quase como se eu estivesse vendo uma versão mais jovem dele. — a deusa se aproxima de Alice e se abaixa para ficar na mesma altura da garota, mantendo um sorriso que Alice só conseguiria descrever como "sorriso de mãe". — Eu jamais impediria você de seguir sua determinação. Só peço que tome cuidado. O mundo virou um lugar muito perigoso recentemente.
— Eu sei, mas eu já sou forte o suficiente pra lidar com essa missão sozinha.
— Só que você não está sozinha. — Ártemis responde. — Assim como seu pai não lutou sozinho na guerra, você não vai lutar sozinha agora também.
— Ah... é que... é que não tem ninguém que... sabe?
O que ela gostaria de dizer é: todo mundo é fraco demais pra me acompanhar, senhora Ártemis. É uma frase que ela diria sem pensar duas vezes no seu dia a dia, até mesmo em frente ao seu pai. Algo na deusa da caça invocava um senso de "responsabilidade" em Alice que ela ainda não havia conseguido lidar, e provavelmente nunca conseguiria.
— Em tempo você vai entender o que eu estou falando. Você ainda é muito jovem. — a deusa se levanta e planta um beijo na testa de Alice, que novamente luta para manter o seu rosto menos vermelho que um tomate. — Agora vá, Alice, e saiba que a luz da lua sempre estará com você.
— V-valeu, senhora... mãe. — a garota diz enquanto caminha apressadamente para a porta. — Eu não vou decepcionar vocês, eu juro.
— Você não conseguiria nos decepcionar nem se tentasse, Alice. — a voz da deusa encorajava a garota, que agora estava mais determinada do que nunca. — Tome cuidado, e te vejo em breve, filha.
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Alice acorda com um susto e o som de sua própria lâmina sendo sacada. Os olhos da garota vão de um lado ao outro da floresta à procura de alguma coisa, um sinal sequer de perigo que justifique o seu estado atual. Felizmente, não havia nada. Infelizmente, isso só significava uma coisa: nem mesmo ela era imune a passar dois meses isolada de tudo e sendo caçada a todo momento. Alice ainda não sabia quem exatamente estava atrás dela, porém ela sabia que alguém estava. Pegadas, barulhos de noite, uma gata preta que aparecia de vez em quando. Ela gostava da gata? Sim, gostava, óbvio, e a gata claramente gostava dela também.
Ainda assim, Alice sabia identificar uma criatura mágica de longe.
Como de costume, ela sabia que o gato não ia fazer nada, mas ela ficaria com a atenção dobrada só por garantia. Guardando a lâmina de volta na bainha, Alice finalmente se toca que, como de costume, ela havia dormido muito além do horário ideal. Em breve o sol iria se pôr, e ela estava parada na mesma maldita floresta faz semanas. Irritada consigo mesma, a garota tira um pequeno pote de sua mochila e vai até o rio que havia visto no dia anterior, pronta para a sua rotina diária.
Com o pote cheio, Alice se ajoelha em frente a ele e se prepara. Primeiro ela pega um fragmento quebrado de um machado que estava guardado em sua mochila, logo depois fechando seus olhos e concentrando a sua mente. Zack Bell, onde está Zack Bell? Ela repetiu essa pergunta para si mesma inúmeras vezes, focando toda essa energia no fragmento do machado. Quando Alice começa a sentir a magia dentro de si, a garota abre os olhos e encara a água no pote.
Um deserto é a primeira coisa que ela vê, sentindo até mesmo o calor do lugar. Alguns arbustos e morros de pedra eram as únicas decorações onde quer que esteja, e isso dificultaria muito na hora de apontar sua localização. Olhando ao redor, Alice vê vários monstros carregando caixas e entrando em um buraco no chão. Outra entrada pro labirinto, ela pensa, se sentindo sortuda por ter tido chance de encontrar Zack antes dele se esconder no domínio de Hermes. Quando a garota finalmente vê o seu alvo, ela mal consegue impedir seus dentes de rangerem em ódio. Se ela tivesse essa capacidade, cortaria a cabeça dele nesse exato momento, porém a única coisa que Alice poderia fazer nesse estado era observar. No momento ela teria que se contentar com suas ideias de como mataria Zack Bell.
Ao lado dele estava um homem ainda mais poderoso. Antares, ou Prometeu. Por ter ido embora do acampamento antes de sequer receber informações mais detalhadas sobre o resultado da missão de Alessandra e os outros fracotes, Alice precisou passar os últimos meses adquirindo informações sozinha. Em pouco tempo ela descobriu a identidade desse homem, que embora fosse ainda mais perigoso que Hermes e Zack juntos, ainda não era o seu alvo principal, mas era só questão de tempo até que fosse. E quando chegasse a hora, ele seria só mais um a cair para sua espada.
— E o progresso com nossos peões, Zack? — o homem de cabelo vermelho diz com um tom de soberania sutil. Ele parecia ser tão arrogante que isso machucava Alice fisicamente. — Espero que esteja tudo indo bem.
— Ah, nada demais. A mais velha é a melhorzinha, mas... não são tão bons. Serviriam melhor de entretenimento no coliseu.
— O truque do Nolan deve resolver essa parte. — Antares diz com uma expressão monótona, porém logo começa a olhar para os lados, como se estivesse procurando algo. — Fora isso, só precisamos que eles cumpram os papeis deles, nada menos, nada mais.
— Para isso eles devem prestar.
Peões? Mais velha? Ela sabia que alguns semideuses estavam presos no labirinto, porém ela não fazia ideia do que realmente estava acontecendo lá. Não é como se importasse no momento, pois se ela derrubasse Zack, o resto cairia logo depois. Antes que Antares pudesse continuar sua conversa, Alice sente seus olhos cruzando com os dele, e a garota sente arrepios subindo por sua espinha. Ele não estava olhando na direção dela por coincidência. Ele sabia que ela estava lá. Como?
— Um momento, Zack. — o homem sorri. — Me parece que minha sobrinha está nos escutando agora.
— Quê?
Alice e Zack falam ao mesmo tempo, mas por motivos completamente diferentes.
— Eu não costumo avisar mais de uma vez, então tome muito cuidado quando você pensar em usar suas magias para nos vigiar no futuro. Esse aviso serve para a outra garota também, Alice. Vejo vocês em breve.
Como se seu coração estivesse sendo agarrado pelas mãos dele, Alice mal consegue controlar a repentina instabilidade em sua magia. Se ela continuasse lá, talvez sua alma fosse separada do seu corpo ou até pior. Sem pensar duas vezes, ela cancela a magia e volta para o seu corpo, e a dor era imensurável. Alice sentia como se seu próprio interior estivesse queimando nesse momento, com chamas que ardiam por dentro e eram impossíveis de serem apagadas. Ela não fazia ideia de quanto tempo havia demorado nesse estado, porém quando voltou a si, nada parecia ter acontecido. A dor não estava mais lá, sua alma estava intacta — ou ela acreditava estar — e uma pequena gatinha estava lambendo seu rosto.
Pelo sol ainda estar presente no céu, não parecia ter passado muito tempo, o que era bom. Fazendo uma anotação mental para evitar usar essa magia caso houvesse a possibilidade de Antares estar perto de Zack, Alice, mesmo apesar do seu cansaço repentino, guarda o fragmento do machado e puxa um mapa, anotando possíveis localizações. Pelo caminho que Zack estava seguindo, era capaz dele estar no Arizona neste momento, então esse era o próximo objetivo da garota. Ela estava conseguindo ver um padrão se formando nos movimentos dele, logo faltava pouco para ela conseguir criar um plano para interceptá-lo.
Antares. Ele era forte, talvez forte demais para ela nesse momento. Se ela pudesse lutar contra ele dez vezes, teria sorte se ganhasse uma única vez. Ainda assim, era só o que ela precisava: uma vitória. Alice ainda estava evoluindo, ela não havia chegado nem perto de seu limite. Se ela ficasse tão forte quanto seu pai, então nada seria perigoso demais. Com sua determinação inabalada, Alice começa a conversar com a gatinha que estava sentada ao seu lado.
— Tá, se eu roubar um carro, então eu devo cobrir um bom chão até os porcos começarem a encher meu saco, né? — ela pergunta, porém a felina não responde. — Foi o que eu imaginei.
Cogitando acariciar os pelos da gata, Alice ouve o grito de sua águia, Narciso, ecoando pelos céus. Sua águia era útil, já que dificilmente algo fugia de seus olhos, e era o principal motivo para ela poder ter a chance de descansar de noite. Dito isso, talvez tenha sido por conta de seu nome, mas Narciso era extremamente ciumento. Incontáveis vezes ela teve que se privar de interagir com a gatinha por conta do ciúmes insuportável da águia. Essa seria mais uma dessas vezes, mas um dia, sua chance viria.
Deixando os dois animais peculiares de lado, Alice se lembra do bar que havia visto na estrada. Por motivos óbvios, a garota evitava sequer passar perto daquele lugar, porém agora seria uma ótima pedida. Todo lugar assim teria comida, e sua barriga roncando indicava que havia passado da hora dela se alimentar direito. Infelizmente, Alice tinha muito a aprender sobre caçar, logo comer tinha se tornado uma situação complicada. Com isso, o bar eliminaria dois problemas: um veículo e comida. Sem perder tempo, ela caminha pelas árvores até chegar na estrada, onde passa a caminhar pela direção que lembrava.
Não demorou muito para chegar, e mesmo assim o sol já estava se pondo. A luz alaranjada lentamente cedia seu espaço no céu para a escuridão da noite, uma vista que todos estavam acostumados, claro, porém Alice sempre tratava como algo especial. Tristan havia tornado aquela vista algo rotineiro para ela. Todo dia que estavam juntos eles sempre assistiam o pôr do sol lado a lado. Ela sabia o porquê, óbvio, era difícil esquecer que a esposa de seu pai era a própria dona da carruagem da lua. E por isso, ela novamente se sentia levemente para baixo.
Ela sentia saudades de Tristan. Saudades do jeito que seu pai conversava com ela, saudades de assistir o pôr do sol juntos, até mesmo saudades das piadas ridículas dele. Sem a certeza de que ele estaria sempre por perto, o mundo parecia um lugar mais perigoso, por vezes até sem graça. Esse era mais um dos motivos pelo qual ela se lembrava constantemente que era seu dever soltar ele. Custe o que custar.
Suspirando e tentando afastar os pensamentos ruins, Alice finalmente se vê em frente a porta do bar. Por um momento a garota cogitou usar um feitiço de ilusão para alterar sua aparência, o que evitaria muitos problemas com sua idade. Isso, no caso, seria bastante útil se ela tivesse o mínimo problema em espancar todos lá dentro e ir embora com o que quer. Felizmente para ela, agredir homens bêbados em um bar não era algo que extrapolava seu código moral, muito pelo contrário!
Abrindo a porta e sentindo o cheiro de álcool ruim no ar imediatamente, Alice mal consegue segurar a careta de nojo que inadvertidamente toma seu rosto. Música alta, pessoas já bêbadas mesmo não estando tarde e uma infraestrutura que denunciava que aquele lugar estava quase desabando. Todos esses pontos fazem ela se questionar o porquê das pessoas conscientemente escolherem passar seus dias assim. O resgatável nessa situação era o fato de ninguém ter prestado atenção nela, e por isso ela estava grata o suficiente para esquecer todo o resto.
Chegando até o balcão enquanto tentava se manter escondida o máximo de tempo possível, Alice chama a atenção do bartender com dois socos leves na madeira do balcão.
— Já vai, calma. — um homem grande e barbudo responde irritado, porém logo ele olha e percebe quem havia chamado a atenção dele. — Ô garota, você tá com seus pais aqui?
— Sim, claro. — Alice mente. — Só queria pedir um pouco de comida antes de sairmos. Tem o que nesse lugar?
— Pô, pra quem tá com os pais por perto, você bem que parece ter saído da mata, hein?
Levantando a sobrancelha, Alice começa a indagar se ela devia dar um soco nele nesse momento ou só continuar a mentira. Pelo cansaço que ela estava sentindo após seu encontro com Antares e Zack, a garota simplesmente queria comer e dormir. Se aquele cara quisesse complicar a vida dela, bem, a culpa do que poderia acontecer seria toda dele.
— Eu gosto da mata, algum problema com isso? — ela responde. — Diz aí o que tem pra comer, cara, não me complica não.
— Mal educada pra caralho, hein?
— Sou mal educada com otários e babacas, qual dos dois você é?
O homem encara ela com raiva, porém logo depois ele suspira e revira os olhos. Claramente ele não levava ela a sério, e por isso a noite dele ia ser muito difícil. Afinal, quem gostaria de ter seus braços quebrados no meio do horário de trabalho?
— Garota, chama teus pais aí, não vou ficar batendo boca com criança não.
— Tá com medo, gordão?
Parecia um instinto dela: provocar. O jeito que as pessoas se irritam com facilidade, as reações deles. Era tudo muito hilário, e ela tinha o espírito certo para isso. Talvez algo passado por seu pai, talvez algo vindo do sangue de Afrodite. Não importava, o que importa é que ela era boa demais nisso, e era melhor ainda quando chegava a hora de fazer suas palavras contarem. Isso não tinha preço.
Assim que ela estava pronta para afundar a cara do homem no balcão, ela sente um aviso vindo de Narciso. A águia havia avistado três monstros por perto. Não, não apenas por perto, e sim no bar que ela estava. Ela podia desescalar a briga nesse momento, pegar a comida e ir embora, emboscando eles na floresta depois. Mas qual era a graça nisso? Com um sorriso no rosto, Alice vai até a caixa de música e arranca ela da tomada. Finalmente um pouco de paz. Música era um saco. E isso lembrava ela de uma pessoa que era ainda pior e gostava de música.
Revirando os olhos só de ter essa lembrança colocada em sua mente, Alice não perde tempo:
— Durmam!
Ela comanda, impondo magia em sua voz, que ecoa como uma explosão sonora. Imediatamente todos os humanos no bar caem inconscientes, e agora só restava ela e três criaturas. Grandes, gordos e com um olho só no meio do rosto, vestidos de roupas humanas que não apenas eram claramente um disfarce como eram uma agressão à moda. Sacando sua lâmina, Alice cogitou dar um tempo para eles falarem algo antes da luta. Infelizmente, ela sabia que eles só conseguiam soltar frases como "vamos devorar você, semideusa!" ou coisa do tipo.
Sem perder tempo, Alice avança com sua lâmina no mesmo passo em que saca ela, desferindo um corte arqueado que atravessa dois ciclopes de uma vez só, ferindo gravemente o terceiro. Assim que a criatura levanta o seu tacape para tentar acertá-la, o monstro grita em choque ao ver que o seu braço havia sido arrancado em um piscar de olhos. Ele nem ao menos teve a oportunidade de perceber o segundo ataque de Alice, que estava com um grande sorriso vitorioso em seu rosto.
— Ajoelhe-se. — ela comanda com sua voz encantada, e o ciclope, já com a mente fragilidade, não tem escolha senão obedecer. — Você vai me contar onde está Zack Bell.
— Eu... eu vou te... não... eu não posso... — a criatura resiste, recebendo em seguida um soco no rosto. — Grr, ele está... ele está em...
— Me conte ou morra, verme.
Alice ordena, pronta para fazer juz a sua palavra. Sem socos, sem mais cortes superficiais. Caso ele decidisse resistir mais uma vez, sua cabeça sairia rolando antes dele se juntar aos seus companheiros em uma nuvem dourada.
— Você! Você e sua irmã vão morr-
Antes mesmo dele ter a oportunidade de terminar a frase, Alice já havia decepado o ciclope, que se desintegra. Irmã? Ele teve mesmo a coragem de usar o termo "irmã"? Alice não tinha uma irmã, nem mesmo na cabana de Afrodite. De qualquer forma, não é como se uma criatura de baixo escalão como um ciclope no meio do nada fosse ter informações úteis. Ela tentou e ele resistiu, simples assim. Ele só não precisava ter deixado um gosto tão amargo nessa vitória.
— Irmã? Seu babaca.
Ela cospe no chão, onde o corpo dele se encontraria caso monstros não sumissem após a morte. Ainda indignada e com mais raiva dentro de si do que poderia extravasar, Alice quase faz mais uma eliminação quando ouve o barulho de uma porta abrindo dentro do estabelecimento. De dentro de um dos banheiros do bar, uma criança que devia ter aproximadamente a metade da idade dela saia. Assim que ele olha para ela, seus olhos se arregalam.
— Ih, ih caralho. — Alice xinga, logo depois percebendo a situação em que estava. A garota guarda a lâmina e se aproxima até que ele esteja no alcance de sua fala encantada. — Você vai esquecer que viu isso e vai dormir também.
Sem ter chance de resistência, a criança apenas fecha os olhos e lentamente cai no chão, dormindo como todo o resto. Ela odiava usar a fala encantada tantas vezes em sequência, já que aquilo a deixava exausta em pouquíssimo tempo. Alice preferiria usar essa energia em combate corpo-a-corpo, porém por vezes a situação necessitava de um charme que só ela possuía. Os próximos minutos foram marcados pela garota pulando por cima de pessoas inconscientes e saqueando a cozinha, arrumando para si um delicioso hambúrguer de costela e uma lata de coca-cola. Essa era uma ótima janta para ter depois de tanto tempo no relento, e logo ela se viu correndo de volta para a floresta, afastando-se do bar o máximo possível antes de acender uma fogueira para se manter quente.
Depois de uma longa verificação pelos arredores acompanhada de Narciso, Alice se senta ao redor da fogueira e desembrulha a sua janta, saboreando cada mordida como se fosse a última. Quando ela estava com seu pai, comer hambúrgueres não era tão incomum assim. Vez ou outra ele usava os pássaros dele de entregadores e ambos comiam juntos. Inclusive, a última vez que fizeram isso eles estavam acompanhados de Alessandra. Assim que essa memória reaparece em sua mente, a mordida no hambúrguer parecia ter azedado. Tristan provavelmente tinha incluído ela por ter se sentido mal por ter sido pego na mentira. Óbvio que ele não era o pai biológico das duas, mas e daí? Por que criar tanta confusão por isso mesmo tendo vivido uma vida de princesa que nem ela viveu?
Garota idiota, idiota, idiota mil vezes!
E por que logo ela era a pessoa que causava essa sensação terrível dentro dela? Essa situação inteira era lamentavelmente patética. Alice tinha muito mais o que fazer do que lidar com uma garota que preferia ouvir música do que lutar. Como alguém tinha coragem de passar anos vivendo com as duas pessoas mais fortes do mundo e simplesmente se recusar a treinar? Realmente, a frase que ela ouviu de seu pai algumas vezes antes era verdade: a carne só cai no prato do vegano.
Enquanto esses pensamentos estragavam o gosto de sua preciosa janta, Alice continua a sua rotina noturna. A primeira coisa que fez foi apagar a fogueira e cobrir as chamas, evitando que a fumaça chamasse a atenção de qualquer um que estivesse à procura dela. Logo depois a garota fez mais uma ronda noturna com Narciso, e só então se sentiu confortável o suficiente para sentar em sua cama improvisada. Como se algo estivesse alertando ela, seu corpo estava se proibindo de dormir, mesmo com o excesso de cansaço acumulado. Seus instintos nunca estiveram errados antes, então pra que duvidar deles agora?
E no timing perfeito, Narciso capta a presença de alguém se aproximando. Não parecia ser uma emboscada, e seu alvo não estava correndo em direção a ela, logo Alice simplesmente sacou sua lâmina e se preparou para o combate. Ela não estava preocupada, pois qualquer monstro que estivesse na floresta nesse momento seria apenas uma distração. Os verdadeiros perigos estavam bem longe, e era ela que estava indo atrás deles, não o contrário. O problema surgiu quando ela reconheceu o rosto de seu inimigo: Dante Redgrave.
Assim que ela bateu os olhos naquele moicano ridículo do rapaz, Alice já tinha certeza de quem era, e um breve uso de magia revelou que não se tratava de uma ilusão, o que era ainda mais preocupante. Dante era idiota demais para rastrear ela por tanto tempo, logo ele com certeza não era a mente por trás disso.
— Dante. — ela diz, sem guardar sua lâmina, porém mais confortável ao saber a identidade dele. — Tá perdido na mata?
— Não mais que você. — o rapaz responde, se aproximando com as mãos levantadas. — É assim que você me cumprimenta depois de tanto tempo? Mancada.
— Era isso ou sua cabeça voando, tá reclamando de que?
Suspirando e revirando os olhos, Dante apenas ri e olha ao redor pelo acampamento improvisado de Alice. Sua expressão traía a pena que ele sentia daquela situação, o que irritava ainda mais a garota. Ela não queria pena de ninguém, muito menos de Dante Redgrave. Ela respeitava a força dele e o jeito que ele gostava de lutas quase tanto quanto ela, mas o rapaz não tinha mais qualidades do que isso. Irritante — por falar quase tanto quanto ela, embora ela jamais admitiria que era esse o motivo — e burro igual uma porta, ao ponto em que quaisquer características redimiveis dele não sejam o suficiente para colocá-lo em um patamar muito alto. Ainda assim, ele era melhor que noventa e nove por cento dos outros campistas, mas isso não era um testamento ao valor dele, e sim a fraqueza do resto.
— Te falar, eu nem devia tar aqui. Acontece que depois de tanto tempo vindo atrás de você e sendo feito de otário, eu meio que quero me vingar um pouquinho.
— Se vingar? Para de falar em enigma.
— Não esquenta muito com isso não. Não é culpa sua. — o rapaz diz ao sacar uma espada gigantesca de suas costas. A lâmina brilhava em dourado e azul, e com certeza ela nunca tinha visto isso nas mãos dele antes. — Um treinozinho básico, eu e você? Pelos velhos tempos.
— Cê sabe que eu não consigo dizer não pra isso.
— Bom saber que você não mudou nada nesses últimos meses.
Com um sorriso, ambos avançam e chocam as suas lâminas uma na outra. O calor emanado pela espada de Dante era tão forte que fez com que Alice recuasse imediatamente. Além disso, ela sabia que um confronto direto com Dante não funcionaria nunca. A força física dele era mil vezes maior que a dela, logo ela teria que vencer em habilidade pura, o que não era tão difícil. Alice faz outra investida na direção dele, porém esquivando do seu ataque no último segundo e contra-atacando com um corte em seu braço, que o rapaz por pouco bloqueou a maior parte dos ferimentos.
— Sua mamãe te deu essa espada?
— Pior que sim. — Dante abre um sorriso arrogante. — E teu papai, te deu alguma coisa? Ih... esqueci que ele tá ocupado.
— Filho da puta!
Alice sabia que era uma armadilha. Era óbvio, afinal, tanto Dante quanto ela haviam aprendido a provocar o oponente pela mesma pessoa: Tristan. Ele nem ao menos estava sendo sincero, já que com certeza Dante também sentia falta de seu mestre. Ela sabia que o rapaz tinha um talento natural em ser irritante, e ainda assim ela havia se deixado ser pega na ferida. Esse era o plano de combate dele em todo momento: Irritar o oponente e esperar ele cometer um erro. Entretanto, havia uma grande diferença entre os oponentes anteriores de Dante e ela.
Ela não cometia erros.
Alice arremessa a bainha da Murasama na direção de Dante, distraindo ele por tempo o suficiente para a garota conseguir sacar Lancelot e usar o seu golpe que treinou por incontáveis anos. Sacar, imbuir magia, atacar com força. Por conta da bainha, Dante estava completamente desprevenido, e naquele momento Alice sabia que seu ataque tinha sido perfeito. Se ela tivesse usado a parte afiada da espada, Dante teria sido partido no meio sem sequer ter entendido o que aconteceu. Mas já que ela era piedosa — mesmo com quem não mereça — o rapaz apenas voou para longe com o impacto, sofrendo algumas queimaduras da magia que ela imbuiu no ataque.
— Satisfeito?
— Porra... acho que tô. — Dante se coloca de pé com dificuldade, levantando a mão para significar sua rendição. — Você ficou ainda mais forte, boa.
— É, eu não tô satisfeita. Por que você se segurou?
— Não é como se fosse mudar muito o resultado, né?
— Não ia, mas você sabe que se luta comigo, tem que ir com tudo. — Alice se aproxima em passos pesados, irritada. O comentário sobre Tristan pode ter passado impune, já que era o jeito dele e ela não o culpava por isso. A verdadeira ofensa tinha sido o fato do rapaz ter segurado sua força. — Por que você se segurou? Tá me subestimando?
— Relaxa, esquentadinha, não é nada disso não.
Já que ele estava de pé, qualquer agressão nesse momento seria válida, pois ele não era um oponente indefeso. Com isso em mente, Alice estava pronta para socá-lo.
— Quem te mandou atrás de mim? Você é um animal, não me encontraria nem se tivesse do meu lado. — a garota questiona enquanto tenta expressar o máximo de raiva que pode. — Última chance, Dante. Ou você para de gracinha ou...
— Haha, você vai descobrir agora.
Assim que ele diz isso, a garota sente um impacto em seu ombro esquerdo. Com os olhos arregalados e completamente surpresa, ela se vira para ver uma flecha enfiada em seu corpo. Um arqueiro. Sua mente começa a passar por todos os rostos que conseguia se lembrar dos campistas. Nenhum deles acertaria uma flecha de tão longe na escuridão. Decidida que agora aquela luta era pra valer, Alice arranca a flecha de seu corpo e com a mesma mão dá um soco no queixo de Dante, que cai para trás.
A garota avança pela floresta com o máximo de velocidade que consegue, desviando de algumas flechas e sendo ferida de raspão por outras. Pura raiva abastecia o seu corpo com energia nesse momento. Quem era tão ousado ao ponto de enfrentá-la com truques? Independente da identidade do seu novo inimigo, essa pessoa pagaria caro. A cada flecha que vinha em sua direção, Alice estava mais e mais certa de que não podia ser ninguém que ela conhecia do acampamento. Ela correu por mais de cem metros no completo escuro. Nenhum campista era competente a esse ponto.
Assim que ela vê uma silhueta na distância, o sorriso da garota aumenta. Seu alvo estava em vista, era agora ou nunca. Nesse momento, o símbolo de um sol começa a brilhar nas costas de sua mão, porém algo estranho toma a sua visão. O arqueiro que estava disparando na direção dela parece ficar mais incompetente, e algumas flechas erram o alvo sem que ela precisasse se movimentar. Não era mais a mesma pessoa disparando com toda certeza. Se aproximando, Alice vê um esqueleto com um arco em mãos, e ao redor dele o ambiente estava completamente distorcido e podre. As árvores, a grama e toda a vida naquela região parecia ter morrido e estava passando por um rápido processo de decomposição.
Esqueletos, morte, espera...
— ALESSANDRA!
Alice grita com raiva, entendendo a identidade de sua perseguidora. Querendo ou não, claramente havia sido treinada por Ártemis na arte da caça, mesmo que ela não tenha sido tão boa nisso durante seu último encontro. Agora ela estava disparando flechas através da floresta e criando armadilhas? Uma parte sua estava surpresa com a capacidade dela, mas sua mente estava completamente focada em descontar toda a raiva que havia criado pela garota durante os últimos meses.
Cega pelas emoções que estavam afetando ela, Alice avança e destroi o esqueleto arqueiro, porém logo depois sente dois impactos em sequência nas suas costas. Ela se vira enquanto corta com Lancelot, mas seu alvo pula para trás e esquiva do ataque. Vestida com uma jaqueta de aviador — que, honestamente, parecia legal — e com a cara mais desgraçada que ela havia visto nos últimos meses, lá estava Alessandra. A outra filha de seu pai e definitivamente-não-minha-irmã de Alice. O cabelo anteriormente trançado dela estava completamente bagunçado, grandes olheiras cercavam seus olhos e sua pele morena estava pálida. Após os avisos de Antares, ela sabia que a garota estava fazendo alguma coisa durante o tempo que não se viam, mas o estado deplorável dela era um indicativo que o que quer que esteja fazendo, é algo idiota.
— Com essa cara parece que eu nem preciso fazer nada pra te matar. — Alice diz, rindo. — Dois minutinhos de luta e você cai morta sozinha. Bem, se é que você consegue aguentar isso tudo.
Sem resposta, Alessandra apenas ergue sua foice e adaga e continua encarando Alice. Aqueles olhos, esses malditos olhos sem vida dela. Eles nunca falharam em incomodar uma parte do coração de Alice que ela nem sabia que existia. Ela também não precisava entender a sensação: era ruim, portanto Alessandra pagaria caro. Óbvio, Alice não tinha interesse em matar ela por uma pletora de motivos, mas nada impedia ela de repetir seu pequeno confronto no caça-bandeiras. Ela ainda lembrava do jeito que a garota fugiu desesperadamente, tentando se esconder e falhando repetidamente. Alessandra parecia outra pessoa, determinada — e realmente tendo machucado Alice, mesmo que pouco. A garota não sabia se preferia ela assim ou não.
— Qué que você veio fazer aqui, esquisita?
— Te trazer de volta.
— HA, essa é boa. E qual é seu grande plano, me vencer numa luta?
— Se eu precisar, sim.
— Se você conseguir, né, Alessandra? — Alice provoca, incomodada por sua oponente sequer sentir que tem uma chance de vitória. — Vem, me mostra o seu melhor, dessa vez de verdade.
Seguindo o pedido de Alice, Alessandra avança com suas duas armas, deslizando e fazendo um pequeno corte na perna esquerda da guerreira, que retribui com um ataque próprio enquanto a garota ainda estava abaixada, porém a mesma rola para o lado e desfere outro corte, dessa vez com a foice. Aproveitando a lentidão do golpe, Alice bloqueia a foice com sua lâmina, porém uma estocada da adaga de Alessandra encontra o braço dela, fazendo um pequeno corte.
— Se você tivesse feito isso antes, não tinha sido tão humilhada.
Alice se permite usar um pouco mais de sua habilidade, visto que Alessandra estava acompanhando ela até esse ponto. Pronta para desferir um golpe que poderia finalizar a garota, ela vê que as mechas douradas do cabelo de Alessandra rapidamente se tornam azuis, e nesse momento a esquiva realizada era inacreditável. Alessandra relaxou seus joelhos em um piscar de olhos, inclinando seu corpo completamente para trás e passando por baixo do golpe de Alice. Sem perder tempo, a guerreira aproveita o movimento da sua espada para girar e tentar outro golpe, mas Alessandra responde com um único passo para o lado, evitando completamente o ataque.
Ela estava escondendo essa habilidade também? Não, não estava. Alice sabia quando alguém segurava o poder contra ela, e Alessandra não estava fazendo isso. A garota simplesmente mudou ao mesmo tempo que a cor do cabelo. Assim que a caçadora tenta desferir golpes com suas armas, Alice vê que os ataques estavam mais lentos, porém a garota estava virtualmente impossibilitada de ser acertada se Alice não se dedicasse o bastante para isso.
Azul significa chata de acertar, mas fraca.
Alice faz essa anotação mental, contra-atacando sem usar a sua lâmina, e sim a sua voz.
— Ajoelhe-se!
Ela comanda, e nesse momento os olhos de Alessandra se arregalaram enquanto a garota obedeceu forçadamente o comando. Sorrindo com sua superioridade, Alice avança nela e ataca com toda a sua força, arremessando sua oponente para longe. Sabendo que ela não havia colocado força o suficiente para derrubá-la somente com isso, a guerreira correu na direção das árvores que havia jogado Alessandra. Para a sua surpresa, ela não viu ninguém, nem sequer rastros de que Alessandra esteve lá apenas um segundo atrás.
Concentrando-se em sua ligação com Narciso e seus próprios instintos de combate, Alice não conseguiu encontrar Alessandra em lugar nenhum.
— Trabalha, Narciso, trabalha.
Ela sussurrou para si mesma, mantendo a guarda alta e olhando para todos os lados. Nesse momento a garota percebeu que estava sentindo outra sensação estranha. Por alguma razão, mesmo usando vários truques, ela não estava nem um pouco irritada com Alessandra. A garota estava lutando como uma caçadora, e estava lutando de verdade. Ela estava dando tudo de si nesse momento, o que era mais do que ela fez da última vez. Alice ainda não sabia o porquê, mas é como se ela estivesse sentindo um pouco de orgulho. Ou ela só estava aliviada pela outra filha de Tristan não ser uma completa desgraça para o nome dele.
— Tô gostando de ver, Alessa! Você deve ser boa pra caralho em esconde-esconde. — Alice provoca. — E lutar? Tá sabendo fazer isso também ou mamãe e papai não chegaram nessa parte ainda? Bora, me enfrenta, VEM!
Assim que Alice sente uma perturbação na magia do lugar, seu sorriso se estende de orelha a orelha. Alessandra havia usado as sombras para se teletransportar, pegando a guerreira completamente de surpresa e desferindo mais um corte nela, dessa vez em seu estômago. Todos cortes superficiais, exceto pelo disparo de flecha que havia perfurado o seu ombro. Individualmente? Era o mesmo que cair no chão e se ralar. Tudo isso combinado? Até mesmo Alice poderia admitir: ela estava sentindo.
Entretanto, a parte que mais chamou a sua atenção foi o que aconteceu após ter sido atingida pelo ataque. Surgindo do seu sangue na adaga de Alessandra, um líquido preto viscoso começa a sair da arma e subir pelo braço da caçadora, logo depois entrando por seus olhos e deixando para trás apenas resquícios de sua existência, como manchas negras de lágrimas.
— CARA você é muito bizarra!
Alice diz essas palavras involuntariamente. Dessa vez não era nem mesmo uma provocação, e sim seus pensamentos sinceros. Não era sempre que ela via um líquido preto entrando nos olhos de alguém, mas assim que isso aconteceu, algumas feridas no corpo de Alessandra começaram a se recuperar. Nesse momento Alice percebeu que uma batalha de atrito seria completamente desvantajosa para ela, e portanto ela teria que acabar com isso rápido. Felizmente, esse era o plano dela desde o começo, ela só não poderia perder muito tempo testando os limites de Alessandra, o que era uma pena.
— Ai, Alessa, se você quiser mesmo que eu pense sobre voltar no acampamento, desvia disso. — Alice se colocou em posição de combate, exatamente como fez no caça-bandeiras. — Você não esqueceu, né?
Secretamente, Alice desejava que Alessandra desviasse disso. A luta estava ficando interessante, mesmo que não representasse nenhuma dificuldade de verdade. Se acabasse do mesmo jeito que da outra vez, ela ficaria tão decepcionada que o resto do mês seria preenchido pelas memórias amargas dessa luta. Alice repetiu todos os passos que treinou e aperfeiçoou durante os anos, imbuindo magia até o limite e desferindo o seu melhor golpe. No último instante, ela viu Alessandra tocando em algo em seu bolso, e seu cabelo — que havia acabado de voltar a ser dourado — ficou azul novamente.
Quando a sua lâmina estava prestes a fazer contato com Alessandra, a caçadora parecia que deslizaria para baixo novamente, algo que Alice já previa. O que ela não esperava, no entanto, era que Alessandra na verdade havia planejado pular por cima. Assim que ela o fez, tudo parecia estar em câmera lenta. Ela via sua lâmina errando o alvo ao mesmo tempo em que observava a expressão ainda focada de Alessandra. Seus olhos se encontraram por um breve instante, e tudo acabou com uma adaga dourada sendo arremessada das mãos da caçadora, fazendo outro corte superficial na guerreira.
— Hahaha... hahahahahahaha! Você... você desviou mesmo. — Alice mal consegue controlar a risada. — Alessa, a gente vai aumentar um pouco o nível agora, vê se você consegue me acompanhar.
Assim que Alice se vira para Alessandra, ela vê a garota com os olhos arregalados pulando para trás. Alessandra havia sentido a diferença na energia que Alice passava. Se antes ela estava apenas testando a caçadora, agora ela estava lutando pra valer. Sem limites, com toda honestidade do seu coração. Esse era o seu jeito de respeitar os esforços de Alessandra.
Talvez por ter sentido essa mudança, os olhos de Alessandra brilham em verde por um momento, e logo aquele mesmo líquido que curou ela começou a vazar pela jaqueta, cobrindo-a completamente e formando um sobretudo totalmente preto. Parecia ser um tipo de armadura, mas não é como se isso fosse mudar o resultado dos ataques que viriam a seguir. Alice quase riu por conta disso. Avançando com toda a sua força, a garota sorri quando percebe que o cabelo de Alessandra havia mudado para vermelho, e logo seu alvo não conseguiu esquivar desse ataque.
Mesmo bloqueando parte da força com sua adaga, Alessandra recuou daquele conflito com seu braço trêmulo pela força que teve que usar. Sua expressão agora havia adotado indicação de raiva, e essa era a primeira vez que Alice viu Alessandra daquela forma. Ela nem sabia que a garota era capaz de ficar com raiva. Trocando golpes a todo momento, a guerreira percebeu que embora Alessandra estivesse menos ágil, ela estava mais forte, atacando impulsivamente e com força.
Vermelho significa forte, mas burra.
Alice faz mais uma anotação, e ela sentia que havia lido seu alvo completamente a esse ponto. A não ser que Alessandra tenha ainda mais uma cor de cabelo diferente, porém ela sentia que não. E se tivesse, de que importava? Era só mais uma oportunidade para estudar o seu alvo e quebrar completamente ela. E foi exatamente o que ela fez, aproveitando uma brecha criada pela impulsividade de Alessandra e acertando a garota com o punhal de sua lâmina bem na barriga dela. Fazendo com que a garota caia de joelhos e comece a tossir, sem ar pela força do impacto.
Tomando essa oportunidade para descansar depois da longa sequência de golpes desferidos e recebidos, Alice percebeu que suas mãos estavam com leves queimaduras, assim como a sua lâmina. Com certeza um efeito da armadura de Alessandra. Clicando com a língua, Alice adotava uma expressão mais neutra, nem um pouco impressionada.
— Se tirar seus brinquedinhos, o que sobra de você?
Ela pergunta, vendo a quantidade de coisas que Alessandra possuía. Isso sem contar a tiara das caçadoras na testa da garota, que com toda certeza também tinha alguma magia por trás. Pessoas que dependiam demais de itens sempre eram fracos.
— Sobra uma caçadora. — Alessandra responde rangendo os dentes e ficando de pé novamente. — E você fala muito.
— Hmm...? — Alice se impressiona com o tom ousado da resposta dela. Ela estava decidida: aquela expressão de Alessandra era a sua favorita até então. Ela até que fica bonitinha espumando de raiva, Alice pensa. — Então vem me caçar, caçadora!
Mais uma vez, Alice vê as sombras se distorcendo e Alessandra desaparecendo. A guerreira imediatamente revira os olhos, se concentrando novamente na ligação com sua águia. Se sua previsão estiver correta, então Alessandra ainda passaria mais alguns segundos no estado "vermelho", logo era improvável que ela estivesse pensando direito em se esconder.
— O mesmo truque não costuma funcionar duas vezes, caçadora.
Alessandra estava machucada, logo seu plano era óbvio: ela faria de tudo para acertar Alice com sua adaga, buscando se regenerar. O contra-ataque era simples, a guerreira simplesmente iria esquivar. Ela já havia chegado no estágio da luta onde estava completamente aquecida. Sua confiança aumenta ainda mais quando Narciso capta um vulto se movendo pelas árvores na direção de Alice. Se a caçadora não tivesse cuidado, então ela poderia ser derrubada nesse exato momento.
Já preparada, Alice recebe os ataques de Alessandra com um sorriso, desviando de tudo com o mínimo de movimentos necessários, um passo de cada vez. Alice não tinha pressa nenhuma para revidar, esperando o momento certo, quase soltando uma risada quando percebe que Alessandra havia cometido um grande erro. A caçadora tentou ser gananciosa demais, atacando e se colocando em perigo. Era exatamente o que Alice havia analisado sobre o estado atual da sua oponente: um rostinho bonito, mas muito burra.
Segurando o punhal de Lancelot com as duas mãos, Alice movimenta todo o seu corpo para fazer um corte horizontal que era impossível de Alessandra desviar. Ela já conseguia sentir o impacto em seus braços antes mesmo dele ocorrer, e Alice aproveitou cada fração de segundo que viu a expressão de Alessandra se tornando uma de realização. A garota sabia que iria perder, e Alice sabia que ia vencer. Bem, esse teria sido o caso, mas esse destino não estava nos planos das Moiras — ou, nesse momento, de Lancelot.
Impondo sua vontade, a lâmina para no meio do ar, recusando-se a se movimentar. Foi um breve instante, porém mais do que o suficiente para dar a oportunidade de Alessandra contra-atacar e recuar. Enquanto a garota sumia nas árvores, Alice pôde ver que o cabelo dela voltou às mechas douradas, e um grande sorriso estava estampado em seu rosto.
Um sorriso.
Um maldito sorriso.
Como ela tinha coragem de sorrir em um momento desses? Ela ia perder, ambas sabiam disso, se não fosse pela espada, as coisas teriam sido bem diferentes. Rangendo os dentes e sentindo como se sua luta estivesse sendo atrapalhada, Alice não perde tempo e arremessa a lâmina o mais longe que pôde, vendo ela atravessando várias árvores até finalmente encontrar uma grande rocha, que por pouco não se parte ao meio.
— Você tem que parar de ficar mudando de personalidade, Alessa. — Alice tenta lançar uma provocação, porém estava irritada demais para sequer pensar no que dizer. — Se eu fosse você, ficaria só com o cabelo vermelho. Faz mais o seu estilo.
Por mais que ela insistisse, Narciso não estava mais conseguindo encontrar Alessandra. A garota havia saído de seu estado de fúria, e agora estava racional o suficiente para não ser pega pela águia. Aquilo frustrava um pouco os planos de Alice, que sabia que era questão de tempo até a caçadora atacá-la de surpresa para regenerar suas feridas. Essa luta estava começando a ficar extensa até demais, o que era desfavorável para a guerreira.
— Esse fonezinho que você mexe, essa adaga que te cura, sua jaqueta que me queima, essa região inteira cheia de morte. — Alice lista enquanto caminha pelas árvores, dessa vez com a Murasama em mãos. — Eu sei que isso tudo é um plano seu. Você deve tar se perguntando por que eu não te desarmei ou sai de perto desse lugar, né? Deixa eu te contar, esquisita: é porque você precisa de tudo isso pra ter uma chance contra mim, e eu não preciso nem me preocupar com seus truques de merda. Eu vou te mostrar o que é força de verdade, então cai dentro, porra!
Como uma resposta ao seu desafio, Alice ouve o barulho de ossos se movimentando rapidamente, e a garota percebe dois esqueletos correndo em sua direção, flanqueando-a. Sua lâmina se move mais rápido que sua mente, preparando-se para derrubar os dois com um só corte amplo, porém seus instintos foram ainda melhores. Era um plano simples, e bem idiota. Enquanto Alice estivesse distraída com os esqueletos, Alessandra aproveitaria a brecha para atacá-la no meio da confusão, e isso poderia ser perigoso. Se ela decidisse focar na caçadora, então ambos os esqueletos ainda causariam muito dano a ela. Para qualquer outro, a situação parecia ser impossível de vencer, mas não para Alice. Para ela, nada era impossível.
— Marcha da Morte. — as palavras do encantamento invocam a magia da espada. — Venham, ciclopes.
Imbuindo sua lâmina com magia, a guerreira invoca os espíritos dos ciclopes que havia derrotado no bar, ordenando-os a defendê-la. Livre para agir, Alice vira-se para onde ouviu os passos quase inaudíveis de Alessandra, bloqueando os golpes dela com sua lâmina. Enquanto suas armas chocavam-se umas contra as outras, gerando uma tempestade de fagulhas, ambas as garotas sorriam genuinamente, encarando uma a outra nos olhos. Alice sorria com a certeza de que venceria, e Alessandra retribuía a sinceridade que a sua oponente estava colocando naquela luta. Aquele momento era o mais próximo que elas já chegaram de uma comunicação sincera e pura.
Alice conseguia sentir com cada confronto de armas a determinação e força que Alessandra estava mostrando, e alguns movimentos dela por vezes lembram o estilo de esgrima de seu pai. Movimentos e golpes sem muito significado por trás, como se Alessandra estivesse copiando o que viu à risca, até perfeitamente, porém sem entender a ideia do que estava fazendo. Ela era como um diamante bruto, e Alice sabia exatamente o que precisava fazer para lapidá-la. Se ela tivesse a oportunidade, sabia que extrairia o máximo de potencial da garota.
É uma pena que Alessandra não tinha mostrado tal potencial antes, pois agora poderia ser tarde demais. Ela não tinha tempo para isso, não com seus inimigos à solta e seu pai esperando por ajuda. Quando as garotas finalmente se cansaram do turbilhão incessante de golpes, ambas pularam para trás ao mesmo tempo, recuperando o fôlego. Os braços de Alice queimaram tanto por dentro quanto por fora, pelo cansaço e pela armadura irritante de Alessandra. Ela não gostaria de admitir, mas sua força estava começando a ser reduzida pelos vários acertos. Alessandra definitivamente não era uma oponente que deveria ser subestimada em um-contra-um. Bem, isso no caso de não derrubá-la em um golpe só, o que Alice poderia ter feito dezenas de vezes se quisesse.
Como a situação estava começando a ficar complicada, Alice decidiu que acabaria com a luta agora. Ela já estava satisfeita.
— Você sabe que não consegue vencer.
— É, parece completamente impossível.
Alessandra responde com um sorriso, até mesmo soltando uma risada no fim da sua frase. A garota mal conseguia ficar de pé. Suas pernas estavam trêmulas, seu corpo estava lotado de pequenos cortes que estavam sendo regenerados a todo momento, e era impossível de saber se os ossos dela sequer estavam no lugar. O que mantinha ela de pé? Alice não fazia ideia, mas era respeitável.
— Então por que perder tempo? Eu já disse que pensei na conversa que queria ter com você, e isso não importa mais. — Alice comenta, tentando atar a única ponta solta que faltava naquele combate. — Chegou a hora de crescer, Alessa. Tem coisas muito mais importantes acontecendo no mundo agora do que isso.
— Eu... eu devia ter impedido você de sair antes. Eu sei que... sei que... sei que você é melhor, e mais forte, e... mesmo você dizendo que não se importa, eu sinto que preciso te dizer algumas coisas. — as palavras de Alessandra saiam por pouco, e até para Alice era evidente a dificuldade que ela tinha com se comunicar. — Pro nosso pai... sempre... sempre foi mais fácil lidar com você do que comigo.
— Garota, se você começar com coitadismo agora, eu juro que limpo sua cara no chão.
— N-n-não é coitadismo. — Alessandra levanta as duas mãos e as balança ao mesmo tempo que balançava a cabeça, claramente envergonhada. — E-eu não disse que ele n-não me ama. Ele ama. Mas você um-uma vez perguntou por que... por que eu era especial e... e é esse o ponto. Eu não sou especial, a gente n-não precisa ser especial pra ele amar a gente.
— Você não entende mesmo. — Alice suspira. — Talvez seja fácil pra você, já que você é fraca. Ninguém espera nada de você, mas eles esperam tudo de mim. Eu tenho um propósito, ele me treinou pra fazer as coisas que só ele conseguiria fazer.
— M-mas você não precisa fazer isso pra ele te amar. — Alessandra mantém o sorriso. — Ele vai te amar mesmo se você não quiser lutar nunca mais. O-o que a gente... a gente escolher, ele vai apoiar. N-nós só precisamos ser nós mesmas.
— E é justamente por eu ser eu mesma que eu tenho que fazer isso. Porque eu sou uma guerreira, eu cresci pra ser uma guerreira.
— É, você é, mas... mas lutar sozinha é uma longa queda, A-alice. Você não precisa lutar sozinha.
Por um momento, Alice se lembra das palavras de sua mãe. A semelhança entre as duas era impressionante, embora Alessandra não comandasse nem um por cento da aura autoritária que Ártemis tinha. Ao ver o jeito que a garota não perdia o sorriso enquanto falava, o coração de Alice novamente começa a acelerar. Dessa vez, no entanto, ela não odiou essa sensação. Ainda assim, sua vontade de espancar Alessandra ainda permanecia viva e forte, já que a garota parecia incapaz de sair desse mundo de fantasia.
— Quem você acha que consegue me acompanhar, Alessa? — Alice questiona, mesmo sabendo que a resposta era "ninguém". — São todos fracos, só serviriam como fardo.
— Eu, Alice. — a garota responde. — Eu quero ir com você.
Por um momento, por uma fração de segundo, Alice havia cogitado a ideia. Ela com certeza via positivos. Alessandra seria uma exímia batedora e isca, mas quando chegasse a hora de enfrentar os perigos reais, Alice não conseguiria lutar enquanto protegia ela, e logo seu fardo revelaria o verdadeiro peso.
— Você? Você é tão fraca quanto o resto.
— Mas eu t-tô melhorando.
— E ainda assim não é o suficiente. — Alice suspira. — Vai demorar demais até você conseguir me acompanhar, e o Tristan não tem esse tempo. Eu não vou ficar enrolando, Alessa, não desse jeito.
— E-então... então eu proponho uma aposta. — a caçadora diz, soando confiante. Apenas erguendo a sobrancelha, Alice continua ouvindo. — S-se eu te acertar em ch-cheio, você tem que ir pro acampamento comigo.
— E se você não acertar nada e eu te derrubar?
— V-você decide.
Alice sorriu. Em primeiro momento, nada vinha à mente dela. Não é como se Alessandra tivesse algo verdadeiramente útil a oferecer, porém a ideia de ganhar aquela oposta de uma forma esmagadora era o suficiente para atraí-la. Em nenhum instante Alice sequer cogitou a possibilidade de perder, já que isso jamais aconteceria. A aposta era tentadora demais para recusar.
— Tô dentro. — Alice sorri e adota uma postura de combate. — Me surpreenda, caçadora.
Sorrindo de volta, Alessandra avança em um piscar de olhos, fazendo um corte horizontal com sua adaga que seria o suficiente para incapacitar Alice, caso a garota não tivesse aparado com sua lâmina, mais uma vez gerando uma explosão de faíscas. Girando seu corpo para acompanhar a movimentação rápida de Alessandra, Alice responde com um corte vertical, mas sua oponente desvia com um passo para o lado. Assim que Alice percebeu o cabelo azul na caçadora, ela não perdeu tempo, conjurando mais uma magia.
— Ajoelhe-se!
Ela ordenou, confiante de que aquele era o fim. Claro, deveria ser o fim. Como se suas palavras tivessem sido refletidas até ela, Alice sente a energia nos seus joelhos sumindo, e em um piscar de olhos a garota estava ajoelhada em frente a Alessandra. Mesmo colocando toda a sua força em seu corpo, ela não conseguia se mover. Como? Como ela fez isso? Alice se pergunta várias vezes, rangendo os dentes e gritando para conjurar o máximo de força possível para livrar-se daquela magia. Não, era tarde demais. A foice de Alessandra já estava prestes a fazer contato com seu pescoço. Não.
Não.
NÃO!
Os instintos de Alice se fazem presentes de vez, e ela vê a adaga que estava lentamente se aproximando de seu corpo parando no ar. Meio segundo. Meio segundo de hesitação foi o suficiente para Alice se colocar de pé, agarrar o braço de Alessandra e entortá-lo, forçando a caçadora a largar sua adaga. Sem perder tempo, Alice coloca seu braço completamente para trás e logo depois concentra toda a sua força, dando um passo para frente e conectando seu punho no rosto de Alessandra, que é jogada para longe com o impacto.
O coração de Alice era audível até mesmo fora de seu corpo, batendo com uma mistura de alívio e pura raiva. Ela mal conseguia acreditar. Mesmo sendo um truque, Alessandra tinha a vantagem. Não, ela poderia ter vencido. Ainda assim, ela hesitou. Respirando fundo diversas vezes, Alice se aproxima com passos pesados.
— Você disse que estava melhorando. — a guerreira diz, observando enquanto a caçadora lentamente recobrava a consciência e se forçava a ficar de pé. — Você teve a coragem de me enfrentar de frente. Você finalmente lutou de verdade. Tudo isso pra você hesitar? ISSO NÃO É A PORRA DE UM TREINO, ALESSANDRA.
Alice grita, desferindo outro soco assim que a caçadora se põe de pé. Mais uma vez, Alice se aproxima de Alessandra, que novamente se força a ficar de pé, com uma força que Alice não conseguia entender.
— Você acha que o Zack ia deixar você ir embora só porque você não matou ele? NÃO, se você hesitar que nem fez agora, ele ia cortar essa sua cabeça de vento fora e cuspir no chão. — a guerreira encara Alessandra com seus olhos cheios de rancor. — O Tristan não te ensinou? Ataque primeiro, ataque com força, sem piedade. SEM. PIEDADE!
Outro soco, e outra vez Alessandra conseguiu ficar de pé. A raiva de Alice estava começando a sair do controle. Ela não conseguia conceber o porquê de Alessandra não ter desistido até agora.
— VOCÊ PERDEU, DESISTE!
Assim que Alessandra ficou de pé, a garota adotou uma postura de combate e sorriu para Alice, já completamente destruída.
— E-eu... ainda... tô de pé.
— Você vai implorar pra ter desistido então.
Outro soco, um atrás do outro, e toda vez Alessandra se colocava de pé, sempre preparando-se para uma luta corpo-a-corpo que ela não venceria nem em mil anos. A luta já havia acabado desde o momento em que Alessandra perdeu sua adaga, mas ainda assim a garota não parecia ter nenhuma intenção de desistir, mantendo seu sorriso mesmo com os repetidos socos.
— Eu não sei o que nosso pai te ensinou. Se não foi o básico, então foi o que? Gentileza? Enquanto você aprendia isso, eu aprendi vontade. Quando você aprendeu a ser boazinha, eu aprendi a ter ambição. — Alice agarra Alessandra pela gola da jaqueta, que já havia voltado ao estado normal. — Eu olho nesses seus olhinhos mortos e às vezes eu fico com vontade de te matar. Outras vezes eu já acho que você quer que eu te mate.
Nenhuma resposta. Alessandra apenas respirava fundo enquanto tentava se manter consciente e Alice a encarava com raiva. As duas ficaram assim por quase um minuto inteiro, se olhando com cada vez mais perguntas.
— POR QUE você tá enchendo a porra do meu saco? — Alice grita, já no limite de sua fúria. — Você NEM ME CONHECE.
— É... eu... eu quero conhecer você, Alice. — Alessandra responde, lutando para se manter acordada. — Eu quero muito... te conhecer de verdade.
A raiva some. Todo resquício de ódio e incômodo desaparece da mente de Alice como se nunca estivesse lá para começar. A única coisa que sobrou foi a sua expressão de confusão, encarando a garota quase inconsciente em suas mãos. Ela não fazia ideia de como responder aquilo. Como deveria? Era a resposta menos óbvia que já recebeu em toda a sua vida.
— Você... — Alice começa a buscar as palavras, encontrando dificuldade até nisso. — Você estragou a luta, parabéns.
A guerreira solta a gola de Alessandra, embainha a sua espada e se senta no chão. A caçadora caminha até a suas adagas e as guarda também, logo depois sentando-se ao lado de Alice, ainda lutando para se manter consciente, porém agora sem o auxílio da adrenalina que antes fluia por todo o seu sangue. Ambas ficaram em silêncio por vários minutos, apenas encarando a noite estrelada e tentando o máximo possível descansar. Considerando que as duas estavam com dezenas de cortes por todo o corpo, era questão de tempo até a quantidade minúscula de sangue que saia de cada uma se tornar um grande problema.
Ainda assim, Alice não sabia o que dizer.
Conhecer de verdade? Por que? Era um conceito claramente desconhecido em sua mente, já que a garota não conseguia cogitar que os motivos de Alessandra eram tão simples assim. Se ela dissesse algo como "eu quero que você me ensine a ser tão forte quanto você" ou "eu quero te superar", Alice compreenderia imediatamente. Aquela resposta era mais parecida com uma martelada na cabeça do que qualquer outra coisa, e possivelmente tinha sido o ataque mais efetivo da caçadora durante toda a sua luta.
O que Alice devia fazer com isso?
Era besteira, apenas mais uma idiotisse de uma garota idiota. Ela não deveria perder o próprio tempo com isso. Alice sabia de todas essas coisas, mas uma parte sua cogitava a ideia. Era tudo tão confuso, e nenhuma de suas perguntas tinham respostas fáceis. Se ao menos Tristan ou Reyna estivessem disponíveis nesse momento, ela provavelmente perguntaria a eles, porém essa não era a hora. Não, espera, por que ela sequer estava dando atenção para esse assunto? Ela tinha outras prioridades!
— Alessa, me mostra sua adaga de novo.
Alice pede, e mesmo tomando um susto com o pedido repentino, Alessandra obedece, sacando sua adaga de ferro estígio. As duas se olharam por um breve instante, logo antes da caçadora cortar o contato visual, tímida — por alguma razão. Aproveitando a brecha, Alice agarra o pulso de Alessandra e move a mão da garota para fazer um corte raso na mão da guerreira. Assim que ela o faz, a adaga faz o resto do trabalho e regenera as feridas de Alessandra, deixando-a em um estado bem menos deplorável do que antes.
— Pronto, com isso você não vai morrer no caminho de volta.
— E-então... você não vai v-voltar?
— Não. — Alice responde de forma fria, ficando de pé. — Você perdeu a aposta. Agora você tem que fazer alguma coisa que eu pedir. E... eu não pensei em nada, fica pra depois.
— Eu... eu não vou desistir.
Alice para de andar. Ela olha para trás mais uma vez, vendo a determinação na expressão da caçadora. Por um momento, os olhos sem vida dela pareciam ter uma chama por trás, a chama que ela via no espelho quando se encarava. Mesmo que aquilo pudesse ser um saco, Alice estranhamente não se sentia incomodada. Ela até esperava que Alessandra voltasse mais vezes para elas lutarem mais, mesmo que essa oponente não tenha mais nenhuma surpresa para ela.
— Eu sei. — a guerreira sorri. — Então é melhor você voltar quando deixar de ser uma fracote, entendeu?
Alessandra também se coloca de pé, já parcialmente curada.
— S-s-sim... e... Alice... — a voz da garota começa a ficar mais fraca, ao ponto em que fica quase inaudível. Alice olha para ela com a sobrancelha levantada, vendo a garota cambalear como se estivesse prestes a cair. — Eu não... tô me sentindo... t-tão bem...
Imediatamente após dizer isso, Alessandra cai pra frente, ficando deitada no chão, inconsciente. Para piorar a situação, lentamente a garota parece começar a desaparecer, como se estivesse ficando invisível. Felizmente, o processo para na metade, deixando Alessandra apenas parcialmente translúcida. Alice sabia o que era aquilo: letargia. E uma bem forte, ou talvez seja apenas uma individualidade do sangue de Hades.
A guerreira encarou todo o processo com a mesma expressão neutra, e apenas quando se passou um minuto inteiro, ela finalmente conseguiu entender toda a situação. Uma semideusa em letargia no meio de uma floresta — que estava cheia de monstros — enquanto é caçada, sendo protegida apenas por Dante Redgrave de todas as pessoas? Se Alice permitisse isso, a senhora Ártemis nunca iria perdoá-la. Ela sabia que perderia os próximos dias nessa floresta, vigiando Alessandra dia e noite. A questão é: vale mesmo a pena?
Suspirando e olhando para a lua, Alice solta o seguinte comentário:
— Você só pode tar de sacanagem comigo.
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As próximas horas foram marcadas pelo absoluto tédio. Alice lembrou de ter ficado uma hora inteira sentada ao lado de uma árvore remendando os próprios ferimentos até Dante finalmente acompanhá-las, trazendo em suas mãos Lancelot, que não estava nem um pouco satisfeito por ter sido arremessado em uma pedra. Segundo ele, ficar preso em uma rocha "não era nada original" e "já aconteceu com outra espada antes". Alice não tinha energia nem vontade de dar atenção para nenhum dos dois, preferindo continuar cuidando de suas feridas até todas estarem cuidadas.
Já Dante se responsábilizou por cuidar de Alessandra, encontrando a solução genial de cobrir a garota com plantas, camuflando-a de qualquer um que passe por perto. Por alguma razão, ele não parecia nem um pouco surpreso com o estado atual de Alessandra, dizendo coisas como "é, nada de novo", "já tinha demorado demais" ou "é daí pra pior", todas frases que faziam Alice cogitar o estado mental de Alessandra. Quem em sã consciência estaria forçando tanto assim o próprio corpo? Bem, ela. Isso era a coisa mais "Alice" do mundo, embora a guerreira jurasse que com ela era diferente.
Quando a hora de descansar finalmente chegou, Dante concordou com ficar com a tarefa de vigiar no primeiro turno, pois percebeu que Alice estava no limite do cansaço. O que ele não sabia, no entanto, é que ela tinha um plano. Ela pensou sobre, até mesmo cogitou a possibilidade de cuidar de Alessandra enquanto ela estivesse dessa forma, porém o senso de responsabilidade com a missão fez com que ela tivesse que escolher prioridades. Quem sabe até quando Zack estaria alcançável? A qualquer momento isso pode mudar, e não é Alice que apostaria no contrário.
E então, quando a garota finalmente sentiu que Dante estava distraído o suficiente, Alice se pôs de pé, começando a se esgueirar para longe do acampamento improvisado. Assim que ouviu a voz de Dante, no entanto, ela imediatamente congela.
— Já vai?
Dante pergunta, rindo. Alice jamais admitiria isso em voz alta, porém ela genuinamente se assustou com isso. Sua mente começa a questionar como ele conseguiu notar seus movimentos, e no fim ela atribui isso a "estar distraída demais".
— É.
— Imaginei. Você não tem ideia de quantas vezes a Alessa tentou fazer a mesma coisa nesses últimos meses. — o rapaz responde, suspirando como se estivesse cansado. — No meio da floresta, no acampamento, às vezes até indo pro submundo. Vocês duas são iguaizinhas, sério.
— No dia que eu aceitar ser comparada com ela, eu mesma deixo você cortar minha cabeça fora, porque eu já vou estar morta por dentro.
Dante riu novamente, mas algo na risada dele deixou claro a Alice que era a forma do rapaz de não levar ela a sério. Isso irritou a garota, que não estava entendendo a atitude dele.
— Tá rindo de que, babaca? — Alice tenta cortar a risada dele. — Eu tô indo embora, nem tenta me impedir. Eu não tenho tempo de ficar brincando de casinha com vocês, ô sargento babázona.
— Eu não vou impedir você de nada, que nem eu não impedi a Alessa. — ele responde, ainda segurando a risada. — E você sabe que não é brincar de casinha, larga de ser um porre. E mesmo se fosse, ainda é melhor que se jogar de cabeça contra inimigos muito mais fortes do que você.
— Mais fortes? — dessa vez, Alice é quem ri. — Acho que você tá me subestimando mesmo, Dante. Nessa luta, eu venceria.
— Alice, para com isso. Ninguém tá te subestimando, ninguém nunca te subestima. Não faz mal aceitar que tem gente mais forte que você no mundo. Faz menos mal ainda admitir que ir atrás de inimigos que sabem qual é seu plano é uma ideia idiota pra caralho. — Dante fica mais sério, embora ainda tentando apenas conversar, sem mostrar nenhum indício que estava se irritando, ao contrário de Alice. — Se lógica não funciona com você, então sei lá. Não vou te pedir pra ficar, mas eu te peço pra pelo menos dar uma chance pra Alessa. Você viu o quanto ela se esforçou, ao ponto em que o único motivo pra ela ter ficado no acampamento foi te trazer de volta.
— É, ela é mais idiota do que eu pensei, e daí?
Alice comenta, cruzando os braços e olhando para o lado. Alessandra tinha mesmo ficado no acampamento só por causa dela? Alice mal conseguia conceber essa ideia. Por que? Nenhuma atitude de Alessandra parecia fazer sentido, e a cada nova informação ela só ficava ainda mais confusa com a caçadora.
— E daí que ela tá certa. Eu vi vocês lutando. Alice, eu sei que você só se importa com força e luta e blablabla, então eu tô falando sério quando digo que vocês juntas seriam imparáveis. — Dante chama a atenção de Alice, que volta a pensar nessa ideia. — Você sabe que eu tenho um bom olho pra gente forte, e a garota tem potencial.
— Dante... — a garota começa a pensar no que dizer, ainda absorvendo todas as informações e se sentindo terrivelmente conflitada sobre tudo. Sem saber exatamente como continuar o assunto, ela apenas desvia e troca a pergunta. — Eu percebi vocês vindo atrás de mim nesses últimos meses. Por que vocês demoraram tanto pra vir falar comigo?
— É, isso você tem que perguntar pra Alessa, não pra-
— Nah, eu não me importo.
A garota interrompe, ainda escondendo o rosto. Era mentira. Ele sabia, ela sabia, ambos concordaram silenciosamente em não continuar o assunto. Verdade seja dita, até Dante gostaria de entender o porquê da demora, pois ele estava abastecido apenas com suposições sobre o assunto. Ainda assim, o rapaz nunca tomou tempo para indagar Alessandra, já que ele conhecia a garota por tempo o suficiente para saber que ela provavelmente evitaria o assunto de uma forma ou outra. Se ela não conseguia contar isso para ele, malmente imaginava ela sendo capaz de responder Alice.
— Como eu estava dizendo... — Dante continua após ser interrompido. — No fim, é o que o Tristan ia querer. Ele sempre foi assim, protegia as pessoas próximas acima de qualquer missão. Você não vai conseguir fazer isso se estiver longe ou... morta.
— E você tá achando que é próximo de mim?
— Quem disse que eu tava falando de mim? — Dante sorri, logo depois virando-se para deitar no colchão de viagem que trouxe, aconchegando-se e cobrindo os olhos com o braço. — O que acontece depois disso vai da sua consciência, guerreira. Sua vez de ficar de vigia, se quiser ficar com a gente, claro. E se não quiser, a gente se vê em breve.
— Ela não vai desistir, né?
— Ha. — Dante ri, como se a própria sugestão fosse ridícula. — Nem fodendo.
Alice revira os olhos, tratando tudo aquilo como se fosse um mero incômodo para os seus planos. Ela se sentia exausta, não fisicamente, e sim mentalmente. Tentar entender as ações de Alessandra era como conversar com uma parede: inútil e francamente, patético. Ainda assim, ela não conseguia afastar seus pensamentos da ideia de realmente voltar para o acampamento. Ela era a melhor de todos lá, e sabia que poderia causar um impacto de verdade. Alice poderia muito bem treinar os semideuses, especificamente Alessandra — que serviria como um braço direito — e logo depois seguir seu plano, agora com reforços.
Por outro lado, essa era a sua oportunidade. Ela treinou a vida toda para isso, e sabia que era possível. Não era uma ilusão, muito menos fruto de seu ego, era um fato. Se Alice lutasse com tudo o que tem, as chances de alcançar a vitória eram quase cem por cento. Ela salvaria seu pai e provaria de uma vez por toda a sua força. Nem mesmo ele poderia duvidar dela agora. No fim, era o que ele esperava dela, e Alice sabia disso. Por que mais ele teria passado tanto tempo treinando-a se não para torná-la numa guerreira que herdaria seu papel como heroi?
Talvez... talvez seja o que Alessandra disse. Talvez ele tenha treinado ela pois era o que os dois gostavam de fazer juntos. Ele amava lutar, ela também, e poderia ter sido só isso. Talvez Tristan não esperasse nada especificamente, e ele aceitaria sua decisão de voltar e atrasar os planos.
Não.
Que ideia ridícula.
Alessandra não sabe o que fala.
Por que eu perco meu tempo?
Alice se senta em uma pedra e tira Lancelot de sua bainha, encarando seu próprio reflexo no metal e refletindo. Se ela pudesse, perguntaria ao seu pai o que fazer. Mas não era exatamente esse o problema? Ela não podia fazer mais isso, e deveria seguir apenas o que foi ensinado a ela e seus próprios instintos. Enquanto várias memórias surgiram na mente de Alice, lembranças de tudo que Tristan ensinou, a garota murmurou para si a pergunta mais crucial que fez nos últimos meses:
— O que meu pai faria?
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