
Capítulo 2
Apesar da boa vontade de Eris em cumprir as próprias obrigações, era uma verdade que não negava para si mesma que, desde o casamento de Lara, os bailes viraram situações quase intragáveis. Não que Eris não gostasse de dançar — depois de escrever, deveria ser esse o seu passatempo favorito —, o problema era ser olhada enquanto fazia isso. Julgada, medida e etiquetada como uma renda. Como filha de um barão, seu valor tendia a ser alto. Era uma pena que sua falta de traquejo com as pessoas a maculasse como uma mancha a uma renda francesa. Tinha todas as qualidades para enfeitar uma vitrine, mas fora jogada no fundo da loja, e não podia negar que toda a culpa por não ter um lugar de destaque era sua.
Desde sua apresentação à sociedade, os esforços de Eris foram mínimos para se adequar a ela. Não dizia, mas achava os assuntos vagos e a futilidade da maior parte dos costumes de todo estúpidos. Lara a vencera no cansaço e foi a responsável por fazer com que Eris percebesse que havia outras garotas com quem ela poderia conversar enquanto os rapazes levavam as beldades da temporada para dançar. Quanto a provar que alguns rapazes poderiam ser interessantes, a amiga não teve tanto sucesso — mas, mais uma vez, aquilo era mais culpa de Eris do que de Lara.
Assumia que o Duque de Wanthrop era um bom homem. Lord Robert Bradley também era um amigo que valia a pena se manter. Além deles, porém, não costumava trocar amenidades com qualquer outro ser do sexo oposto. Até pouco tempo atrás, sequer havia chegado perto dos dois de boa vontade. Nas vezes que dançou em público, o fez obrigada pelo pai. Por sorte, Wanthrop a salvou em algumas destas situações. Preferia ao Duque, já que a falta de talento para dança do Conde era notória. O talento de Belmont era tomá-la pela mão e a levá-la para caminhadas ao redor do salão, onde os dois podiam conversar sem chamar muita atenção ou mesmo se envolver em um escândalo. Com uma personalidade tão tímida quanto a dela, talvez o esperado fosse que os dois sempre se mantivessem em silêncio, mas a verdade é que achavam conforto nesta semelhança, mesmo que os assuntos fossem absurdamente banais.
Naquele momento, porém, Eris não via Lara, Wanthrop ou mesmo Belmont dentre as milhares de faces que se confundiam no salão iluminado. Naquele final de maio a cidade já começava a se tornar excessivamente quente, e, por isso, não eram poucos os nobres que já se despediam da temporada social e rumavam para suas casas de campo. Este era o motivo provável pelo qual mesmo o baile organizado pelo terceiro filho de um baronete, escandalosamente casado com uma americana, contasse com tantas cabeças da nobreza misturadas com as de novos ricos. A falta de eventos levava a nobreza a atitudes desesperadas.
Para o consolo de alguns — sobretudo daqueles que fechavam o rosto sempre que viam uma socialite americana ou um novo rico rondando o salão com um sorriso, ou mesmo distribuindo impolidos apertos de mãos —, a cozinheira dos Benwin era excepcional. Eris já tinha se servido de alguns bolinhos e arrependeu-se por ter se afastado da mesa de quitutes. Calculou uma nova rota até lá sem ter que deparar-se com o pai ou a mãe, de quem havia fugido logo que chegaram ao baile, e a seguiu sem se permitir olhar para um lado sequer, com medo de que fosse interpelada por qualquer motivo. Para sua desgraça, porém, antes mesmo que pudesse pegar o primeiro bolinho na mão, a figura de Carole Mortimer se colocou na sua frente.
— Miss Murray, não imaginei que a fosse encontrar hoje. Como meu querido Lorde Bolton ainda tem assuntos na cidade, papai resolveu que nos demoraríamos por mais um tempo. — Como se desse a entender que lembrara de algo, ela continuou. — Não me diga que o Barão resolveu ficar na cidade por você! É realmente uma pena que a amiga ainda não tenha encontrado um bom par depois de tantas temporadas.
Eris, nem em suas piores previsões, pensou que poderia dar de cara com Carole, muito menos que se irritaria tanto com sua impertinência. Era óbvio que aquela criatura não era e jamais fora sua amiga. Uma companhia adequada, a quem tinha que cumprimentar por mera educação, mas de quem não se via obrigada a escutar os desaforos por seu estado civil.
— Os motivos pelos quais meu pai permanece em Londres pouco são de seu interesse, Miss Mortimer. Ele não está tão incomodado quanto você com a minha lista de pretendentes porque sabe que não precisa fazê-lo.
Em sua defesa, com um prato de biscoitos em uma mão e uma taça de ponche na outra, Eris tentou desviar de Carole para evitar sua própria falta de tato. Uma pena que sua prudência não tivesse espelho na sua interlocutora, que, não satisfeita em guardar a língua dentro da boca, ainda teve o disparate de se colocar na frente de Eris.
— Penso que não só ele, mas também você deveria se preocupar com isso. Não ouvi falar sobre parentes ricos que sustentem a você e a ela depois que o Barão se for e, com ele, o título. A não ser, é claro, se a Baronesa estiver gerando um herdeiro em segredo, o que seria de todo deselegante em sua idade avançada.
Era realmente uma pena que Carole não tivesse mantido a boca calada. Eris limitou-se a olhar com muita discrição de um lado para o outro, antes de, sem qualquer intuito de esconder sua verdadeira intenção, derramar por inteiro o conteúdo de seu copo nas saias de Carole. Sequer teve tempo de dizer as falsas desculpas que estavam na ponta da sua língua antes de a outra quase estourar os tímpanos dela e de metade do salão com um grito agudo.
A ida de Harvey para o baile dos Benwin era puramente profissional. Seria difícil se divertir com a maioria dos convidados o olhando como se o faisão do jantar tivesse saído correndo pela mesa e pousado na cabeça do anfitrião da noite. Por mais bem recomendado que fosse por um nobre, não era um deles. Bebia como eles, até mesmo falava como um, mas era como se na sua face e em suas roupas compradas já prontas estivesse estampada a letra escarlate que o tornava um pária. Ainda assim, esses mesmos nobres se alegravam em poder contar com seu auxílio em um contrato, ou quando descobriam que era recomendado não só por um nobre, mas por outro bom advogado cujo nome eles já conheciam.
Estava em uma conversa particularmente interessante com Belmont, com o Conde de Warthfall e com o Visconde de Townshend quando os quatro foram surpreendidos pela gritaria não muito longe de onde estavam. Não que Harvey nunca tivesse visto uma mulher empurrando outra a ponto de que a segunda caísse no chão com a graça de um saco de batatas, mas jamais esperou que isto acontecesse naquele tipo de salão. Aquele era um entretenimento mais valioso do que qualquer voo de faisão já assado, e ele e Warthfall não disfarçavam a curiosidade.
— Se ninguém separar aquelas duas, creio que Bolton vai ter que encontrar uma nova noiva.
Foi Warthfall, ou melhor, Brandon Lilburn quem comentou, quase sem conseguir segurar a risada. Harvey era mais discreto em seu sorriso, mas Robert pareceu preocupado com a cena que se fazia entre as duas damas. Afastou-se dos amigos e se aproximou da confusão, que já avolumava espectadores, dentre eles Townshend, que fugira dos companheiros de conversa sem que qualquer um deles tivesse percebido.
— Bradley deveria ter deixado elas brigarem mais um pouco. Eu poderia ter começado a colher as apostas antes de ele estragar a melhor diversão da noite.
O Conde continuou a falar, fazendo com que Harvey risse abertamente. Nenhum dos dois tirou os olhos de Robert, que conduzia a dama morena, antes envolvida na briga, para fora do salão, sob uma saraivada de fofocas que corriam como fogo na pólvora.
— Não seria um pouco cruel com as duas?
— Se conhecesse Carole Mortimer, meu caro Prescott, saberia que nenhuma vergonha é suficiente para ela. — Brandon indicou com o olhar a loira que, ainda no salão, era amparada por outras duas damas, já longe da mesa de quitutes onde a confusão começara. — Fico me perguntando o que ela teria dito para que Miss Murray, que foi amparada por nosso Bradley, lhe tenha calado a boca de forma tão eficaz. Agora vamos averiguar se os bolinhos saíram ilesos a esta confusão, já que seria uma pena que tenham sucumbido.
Aquela não era uma má ideia, e Harvey não demorou a seguir Warthfall. Era uma pena que, no meio do caminho, o Conde tenha sido capturado pela Duquesa de Norfolk. Olhou para Harvey como se pedisse que uma missão de salvamento fosse enviada para tirá-lo das garras da matrona. A resposta do advogado foi um curto aceno com a cabeça, sem se desviar de seu caminho. Se ia fazer uma desfeita a uma duquesa, que a adoçasse com qualquer que fosse o quitute. Por sorte os bolinhos escaparam intactos da recente confusão, mas antes que Harvey pudesse decidir com qual deles compraria a liberdade do Conde, sentiu chutar algo para não muito distante dali. Estreitou o cenho quando desceu os olhos para o chão e viu esquecido um caderno de medidas pequenas. Um rápido escrutínio pelo salão revelou que ninguém tinha os olhos postos na sua figura, por mais que um ou outro ainda olhasse em direção à mesa e voltasse para as suas fofocas.
Abaixou-se com toda a graça e agilidade que foi capaz, não demorando a ter o caderno entre as mãos. Não havia qualquer gravação na capa de couro, ou mesmo na primeira página, que não tinha a mácula de qualquer gota de tinta. A partir da segunda página, como ele constatou ao folheá-lo, um emaranhado de letras se espremia em uma caligrafia desleixada, que seria legível numa iluminação mais favorável. Teria continuado seu escrutínio às folhas se, por sua visão periférica, não tivesse percebido que Warthfall o olhava pronto para lançar sobre ele seu eterno rancor, que seria deixado como uma herança maldita para todos os seus descendentes. Antes, porém, que aquela praga se concretizasse, Harvey guardou o caderninho no bolso da casaca e pegou o bolinho que tinha mais perto da mão, indo salvar não só sua descendência de um rancor nobiliárquico, como os negócios que pretendia firmar com o Conde.
O mau humor de Eris não tivera chance de arrefecer no caminho de volta para casa. Robert fora gentil em ceder sua carruagem para que ela, sua mãe e a criada que as acompanhava fossem levadas de volta para casa. A ladainha de sua mãe quanto à inadequação de seu comportamento — sobre como ela jamais poderia esperar que sua filha, sempre tão cordata e bem-educada, houvesse se prestado à baixeza de se portar como um moleque de rua e tendo outra dama como sua vítima — fora incessante.
— Aquela mulher não seria vítima nem mesmo de uma cobra! Mais fácil que se juntasse ao bando dela e fosse viver feliz destilando seu veneno por outros bailes.
— Isso não justifica seu comportamento.
Claro que não justificava, mas Eris só esperava sair das vistas da mãe — o que o fez tão logo desceu da carruagem e entrou em casa, com rumo certo para seu quarto — para lançar um sorrisinho de lado. Não era de hoje o seu desejo de dar uma lição naquela criatura, e, se fosse abençoada, pelos próximos anos Carole se manteria a uma distância adequada de sua pessoa, poupando Eris do desagrado que sua presença lhe trazia.
Como sua mãe não bateu na porta do quarto logo em seguida, Eris sabia que, pelo menos até a manhã seguinte, estaria livre daquele assunto. Começou a puxar um a um os grampos e acessórios que mantinham seus cabelos volumosos em um coque alto o suficiente para ser considerado elegante, mas desconfortável. Desamarrou e desabotoou as partes que pôde do seu vestido, sabendo que precisaria da criada para se livrar de todas as peças. Enquanto a esperava, colocou a mão no bolso do vestido, pronta para puxar seu caderno e, quem sabe, narrar parte dos fatos da noite. Também poderia terminar a crônica sobre a qual refletia quanto ao final antes de ter que sair de casa. Todos os planos ruíram, contudo, quando ela não sentiu o couro da capa dentre os panos do vestido.
Procurou nos dois bolsos por incontáveis vezes. Até mesmo a criada, recém-chegada no quarto, havia sido tomada pelo nervosismo da patroa. Só desistiram de sua busca quando todos os recantos do vestido, e depois todo o aposento, foram minuciosamente explorados, sem que aquela caderneta específica tivesse sido encontrada.
— Estou certa de que amanhã acharemos o caderno na biblioteca, Miss, ou mesmo em alguma sala.
— Eu tenho certeza de que o perdi, Lily.
Lily não entendia por que a patroa, que tinha tantos cadernos, estava tão incomodada em perder aquele. Não era grande, nem mesmo muito bonito. Ela poderia ir em qualquer loja e comprar uma nova caderneta, com letras brilhantes na capa e linhas nas folhas, mas não falaria nada daquilo enquanto trançava os cabelos de sua tristonha patroa.
Eris sentiria falta da crônica que nunca acabou. Só porque não poderia, desejou reler todas as idiossincrasias alheias e próprias que haviam dado vida para aquelas folhas amareladas que não limitavam suas ideias com pautas retas. Deitou-se na própria cama com a vitória por ter expulsado Carole Mortimer de seu mundo eclipsada pela perda precoce de todas as ideias que pensara ter eternizado naquelas páginas.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro