CAPÍTULO UM - O GAROTO NO ESCURO
(LIVRO I - OS QUE DESEJAM O PARAÍSO)
A MEDIDA QUE AS BATIDAS fraturadas e o riff suave de guitarra ficam em segundo plano na música, no reflexo, o garoto sopesa de uma mão à outra o molho de chaves. Aos seus sentidos elas têm um saibo, um gosto ferruginoso. Era o que costumava ignorar, o fato de ouvir música e senti-la na boca, olhar para o céu noturno e reconhecer um indício metálico, um bafio. Não saberia explicar caso fosse perguntado, então ignorava. Só ignorava.
Com a outra mão, os dedos em pinça, retira o aparelhinho do bolso da calça. Gelados, os dedos, ele quase não consegue senti-los. Pressiona as laterais e o visor azulado do MP3 acende, não conhece a música. 15 Step. Radiohead. A garota da casa doze, o MP3 pertencia a ela, Mika... E ele estava ali para devolvê-lo, por isso o atraso, era o que ia dizer.
Bem assim: "Oi... É, ahm, foi mal... O atraso, esqueci o MP3 e daí voltei pra pegar..." e ela ia fingir desinteresse ou dizer que tudo bem ou mais um monte de outras coisas: "Ah, tudo bem, nossa, podia ter levado amanhã, a gente vai ver se encontra as revistas pro projeto. Não vai? Ah, o Gui, um primo meu, achou um Suplemento Juvenil com histórias do Mandrake, ele manja muito de quadrinhos, a gente pode pedir uma ajuda..."
Flamarion, era o nome do garoto, um nome-herança, homenagem a um avô que ele não conhecera. Um nome maior que seus quase um e sessenta e quatro, maior que toda a experiência de fluidos e odores até ali, maior que a efervescência no paladar causada pelo legado do bisavô famoso pela compra (fortuita) e o loteamento de 65 alqueires do que hoje (oitenta anos depois) era o décimo segundo distrito.
O herdeiro ensaia chegadas no reflexo da placa com avisos sobre o uso adequado do playground, escolhera estrategicamente o lugar após reconhecer o número doze em frente à casa. Nada muito difícil, era a única casa, aparentemente, com todas as luzes acesas. Flamarion sente as mãos empaparem mais uma vez ao diminuir o passo em frente a casa. E se a amiga pedisse que ele deixasse o MP3 e... See ya! Au Revoir! Arrivederci! Hasta la vista, baby? E se não o tal namorado atendesse a porta? Mais velho, talvez tivesse barba, Mika nunca mostrara uma foto, tampouco descrevera as feições do sujeito. Ainda assim Flamarion sabia que 13 trabalhava em um laboratório. E se ele fosse realmente bonito? E se estivesse usando um All Star branco, como ele também estava e a camisa do Rorschach? Seu anti-herói favorito. Mika dissera algo sobre Watchmen e que 13 comparecera de sobretudo, chapéu fedora e uma meia calça pintada a mão servindo de máscara, no aniversário a fantasia da Bestre há uns anos. Flamarion teria pago para ver.
Na praça pequena nos fundos da vila para onde se dirigiu ao desistir de tocar a campainha, sentia que talvez devesse voltar para casa, para a videolocadora ou então ensaiar mais um pouco. Precisava respirar e pensar no que tio B faria. Tudo bem... Sim, ensaiar mais um pouco, seu tio B, o caçula, diria que a prática leva à perfeição.
Flamarion relaxa os dedos e respira contando; três para inspirar, três para reter e o dobro na expiração e de novo... Um, dois, três, inspirando. Um, dois, três, retendo. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, expirando. Mete as mãos nos bolsos e a boca um pouco mole e seca e os lábios semiprojetados, como se para uma foto ou coisa parecida, sabia e não interessava como que se sugasse os lábios com força a pressão faria com que parecessem maiores. Sente então a boca formigar, conta até dez e agora estava movendo-os, os lábios, como as mulheres faziam ao passarem batom.
Olha-se de cima a baixo, o bico do tênis branco salpicado de areia úmida, mais atrás os balanços oscilavam rangendo, as pocinhas de água refletindo nos assentos a luz alaranjada dos postes, o lugar seria assustador se o que passava pela cabeça de Flamarion também não o fosse. Antes de pensar em atrasar intencionalmente e ensaiar sua chegada, do outro lado da avenida, horas antes, observara a movimentação de pessoas entrando e saindo. Havia uma guarita que dividia a frente da vila em duas, as luzes traseiras de um veículo e outro podiam ser vistas entrando à esquerda, ainda assim a pé algumas pessoas também entravam à direita desviando da cancela, embora aquela fosse a saída, era o que estava escrito em letras garrafais numa placa.
Flamarion avistou o grupo atravessar a avenida de um ponto mais adiante da mesma calçada na qual espionava. Seis, aparentemente, cinco garotos e uma garota, o clube. Os faróis dos carros alongavam suas sombras no asfalto molhado. Agora, na outra calçada andavam em duplas e a dupla a dianteira, como era de se esperar fora a primeira a estacar no calçamento de cascalho que levava ao interior do lugar. A cabeça do homem na guarita assente quando um dos garotos pergunta algo que os pneus de um carro abafam, ainda assim Flamarion achou ter ouvido um nome:
Mikaela.
O homem na guarita, de capacete, um militar, aponta para algo, talvez uma orientação sobre quantos quarteirões eles devessem andar ou a própria casa da anfitriã. Lá, no outro lado da avenida, despontando por cima do muro baixo, Flamarion podia ver os telhados gêmeos com telhas terracota das casas assobradadas. Vila Militar Calabar ele anotara, casa 12, tentou contar quantos telhados eram visíveis, mas rente ao muro, deste lado, algumas árvores impediam a visão. Contara seis casas, mais seis e a casa de Mika devia ser a última. Vila Militar Calabar, por que ela tinha de morar logo numa Vila Militar?, pensa o garoto, respira fundo e olha para os dois lados antes de atravessar. O sexteto já estava dentro, aperta o passo, sabe o que fazer, o ritmo dos pés lembravam vagamente uma marcha. Mika não dera nenhum outro detalhe ao telefone e Vila Militar Calabar não era bem o que o garoto tinha imaginado. Havia seguranças e pior, seguranças em verde-exército e capacetes e sem dúvida, com armas, quem sabe granadas e talvez uma lista com a foto dos mais procurados.
E se ele, um moleque com um tio que já passara algumas noites preso e uma mãe que fingia vez e outra ser alguém importante do marketing numa empresa que a fazia vestir terninhos azul-bebê em datas de auditoria e ensaiar frases de efeito e números falsos, estivesse na lista? Improvável, ainda assim, coisas improváveis eram possíveis. E se eles o confundissem com algum outro moleque de cabelo curto demais e espinhas demais e tamanho de menos? Sem contar aquela vez no corredor dos salgadinhos, que fora cúmplice, quando o vizinho, Bocão, abrira embalagens à procura de tazos colecionáveis ou da vez que no orelhão em frente à videolocadora rival, discando o número do letreiro e então pressionando e segurando o número nove antes de puxar o cartão telefônico e manter a atendente na linha, pelo vidro eles a viam, o telefone encaixado entre a orelha e o ombro e os dedos com unhas postiças em claps e claps e claps enquanto seu tio, o caçula de cinco, figurava facilmente como um cliente adolescente de gel no cabelo se esgueirando atrás de algumas prateleiras e com um estilete ou tesourinha de unha fazendo estragos no maior número possível de fitas VHS.
O garoto respira fundo outra vez. Aquela distância, para sua surpresa, o homem de capacete não passava, na verdade, de um adolescente, talvez com idade para ser um tio caçula ou um irmão três ou quatro anos mais velho. "Boa noite" O garoto diz, a voz trêmula. A voz do tio ecoando de algum canto da memória: Seja educado moleque, não demais, por aí eles pisam em você, e fale alto, sem deixar transparecer na voz o nervosismo. O garoto contou até três, as primeiras lições do tio caçula ainda ecoando e então "Eu estava com uns...", a mão com o polegar apontando para trás por sobre o ombro e a inclinação do corpo não foram movimentos conscientes, mas deram certo.
"Casa doze, Mikaela, não é?"
"Mikaela... a Mika, isso, casa doze, certo..." o garoto disse, passando a língua nos lábios nervosamente, faltava pouco.
A voz do outro, o garoto sabia, era tão encenada quanto a sua. O rapaz de capacete falou mantendo o ar nas bochechas, se estivesse diante de um bebê talvez imitasse um cachorro ou búfalo ou trocasse algumas consoantes num tatibitate.
"Sabe onde é?" A pergunta repentina soara como um latido, era o fim, ele não fizera a pergunta aos outros, talvez soubesse, é claro que sim... Eles estavam bem vestidos e o que você estava pensando quando decidiu colocar essa jaqueta? Era o que o tio ia dizer se ele voltasse para a videolocadora sem pelo menos uma história sobre forcejos sexuais.
"Você vai seguir até a segunda alameda e virar pra direita..." O rapaz diz, um peso recai, subitamente, dentro do estômago do outro, o garoto sentiu os olhos ficarem aquosos de repente.
"Ah, sim, o.k", sente o suor na palma das mãos, "virar pra direita, obrigado". O cascalho era ainda mais barulhento, seus calcanhares afundavam um tanto ao seguir pelo vão entre o muro e a cancela.
O MP3 que escondera dentro da manga do moletom na última aula há poucas horas, tocava Faust Arp. O número de Mika, o garoto havia anotado no alto de uma das páginas na apostila de Inglês, invertido e em tamanho reduzidíssimo, todo cuidado era pouco, ele sabia. Para Mika, na verdade, não parecia um problema dizê-lo em voz alta, o número, quando alguém pretensamente e em tom cômico o solicitava para "agendar uma consulta na psiquiatra", a mãe dela era psicóloga, mas garotos no ensino fundamental ignoram detalhes da realidade tão facilmente quanto crianças recebendo as primeiras lições sobre o trabalho das abelhas, a colheita de repolhos e a movimentação das cegonhas.
Em geral, os apelos vinham do fundão, dos seres do abismo... E ela numa postura desprendida e quase cínica, quase, porque não era difícil reconhecer a intenção ou intenções. Acontece que a questão, ora aparentava tratar-se de um exibicionismo típico da adolescência e da posse de um Nokia 7650, com câmera. Ora de um desejo reprimido em ser cortejada por garotos repetentes com apelidos que ressaltavam pejorativamente partes de seus corpos que um chargista transformaria em piada ilustrada e muito provavelmente esses mesmos garotos pagariam para enquadrar e expô-los em paredes de futuras barbearias gourmet num misto de nostalgia e frustração superada.
Fosse como fosse, difícil mesmo, para o garoto que roubara o MP3 instantes após soar o sinal, fora colocar a segunda parte do plano em ação. Há dias Mika repetia entre uma conversa e outra um número relativo de informações que o garoto memorizava como se fossem um tipo de código importante. O nome dos amigos do namorado, o nome do namorado, a idade do namorado, o fato de o namorado trabalhar em um laboratório, ainda que fosse um estágio. Mas a principal delas dizia respeito ao evento da noite da sexta-feira: O quarto encontro do clube.
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