CAPÍTULO QUATRO - EU ENTENDO A SUA LÍNGUA
(LIVRO I – OS QUE DESEJAM O PARAÍSO)
"TEM UM NÚMERO...", a menina diz, a voz relativamente firme, ajeita a toalha na altura do pescoço, no chão, as pegadas úmidas denunciavam o fato de ter esquecido o celular entre as almofadas do sofá mais cedo, "tem um número desconhecido me ligando" repete e suspira encaixando as pernas lisas no espaço entre o sofá e a mesa na qual havia um imenso aparelho de fax do pai, deteve-se no aparelho sem perceber que 13 ainda falava ao seu ouvido. O fax, era o tipo de coisa que o pai, não viria buscar tão cedo, não agora com a situação exposta. Mika fazia percursos mentais procurando um mínimo indício de que o pai estivera mentindo o tempo todo, uma pista nas palavras dele e no comportamento ao visitarem os avós e ao se agruparem para ver a rua lá embaixo entre os intervalos das competições de acrobacia aérea que assistiam num canal italiano na tevê a cabo e até mesmo nas despedidas, ele, o pai, sempre muito apressado e ela desde sempre achara que as razões envolviam o trânsito ou o fato de ele levantar bem cedo no dia seguinte. "O banana do meu pai..." ela fala, como se retornasse ao próprio corpo, ouviu vozes ao fundo, na outra extremidade da linha 13 falava com um dos amigos. Aquela noite contaria em detalhes aos amigos do clã tudo sobre o pai, desde a vez que ele quase fora descoberto, ela tinha uns oito ou nove anos e encontrara um bilhete bem ali, ao lado do fax, nele, alguém tinha escrito — valeu pelo trato de ontem, P.S.: Robin — e então ignorou, guardando o bilhete no bolso do shorts. Mais tarde perguntaria se o pai tinha um trator e desconversaria ao não encontrar no bolso, o bilhete, tinha trocado de roupa. No presente, Mika desenha uma espiral com o dedo na fina camada de poeira aveludava sobre o aparelho de fax. "Em qual estação vocês estão?", pergunta, o olhar vago "Ah, certo, o maior problema é a caminhada até aqui... É – ela abre um sorriso – ah, então... é o segundo celular que ela perde, minha irmã, e meu pai deve ter deixado um outro com ela. Ele se acha na obrigação de fazer as vontades dela desde a história envolvendo o Gui. É, enfim, dona Lilian ficou puta da cara, sabe como é a minha mãe, não sabe? Ela nunca perde nada, nem a cara de cansaço – 13 ri do outro lado – você ri, porque sabe que não é mentira, precisava ver quando a Laila contou que tinha perdido outro celular" e solta um "tsc, tsc" em seguida, tornando a olhar para o visor do celular. "Ela é insistente... Ah, não, não 13, não vou, não, não vou atender, ela nunca me liga, deve ser pra pedir alguma coisa, pra eu levar ou sei lá, não sei... Não sei, vocês estão perto? É só entrar, só entrar, eu deixei avisado... Ele mesmo, ele, o próprio, Rubens, qual era mesmo o nome do personagem que ele usava? Isso, Minotauro Paladino", fala e solta uma gargalhada "Ele foi convocado acredita, o pai dele mexeu uns pauzinhos, não quis que ele fosse pra longe, pra marinha ou sei lá... O pai dele e meu pai ainda são amigos eu acho, não sei se ele sabe sobre o Gui, é... O Gui é meio-irmão do Rubens, filho do pai, a mãe do Rubens nunca aceitou que ele viesse pra cá, é... quando meu pai vinha buscar a gente, ele gostava de passar por lá, na casa deles, eles moram bem em frente, dá pra ver a casa da entrada da Vila, mas isso faz uns anos... O Gui acabou ficando na casa dos meus avós, no quarto que era do meu pai, lembra dessa história? Depois que ele apareceu aqui, a gente tinha uns dez anos, ele é, sei lá, uns seis anos mais velho, isso, acho que dezesseis, por aí... e ele veio e tentou entrar, mas parece que a mãe do Rubens não deixou ou pediu que ele esperasse do lado de fora e ele acabou invadindo. Os guardinhas, na época, arrastaram ele pra fora e a coisa foi feia, minha mãe quem viu e reconheceu ele e foi ela quem correu para a enfermaria do Aeroclube, meu pai ainda era instrutor de voo, ele precisou ir pra um hospital depois e enfim... Você sabe o resto da história. Já o Rubens, a gente meio que não conversa como antes e eu quase não o vejo, acho que se chamarmos ele..." O celular vibrou uma terceira vez. "Ela de novo... Vou atender, Conversamos depois, pode ser?"e num passo lateral desajeitado ela ergue a perna por sobre o braço do sofá e apoia o queixo no joelho.
"Laila... Alô?"
Mikaela não falava nem via a irmã há, pelo menos, duas noites, desde o episódio no qual Laila, mentira sobre ir para a casa do pai após um evento na escola. Às três da manhã, do dia da tal mentira, entre um acesso de tosse e gritos roucos, a mulher de rosto lânguido entrara desvairada no quarto que Mikaela dividia com a irmã. Num arroubo assustado, a menina puxa o cobertor sobre o qual, Meu Cabra, o vira-lata caramelo da família dormitava aos pés da cama, e em um duplo susto o cachorro corre para se esconder sob a cama vazia de Laila. Lili, a mãe, de camisola, atira o celular para Mika ainda desencaminhada e com o coração aos pulos.
"Seu pai", a mãe diz, "Fala com ele... fala aí... Com ele... Esse aqui é seu?" E balança um All Star rosa encardido "É você que calça o mesmo que eu... Não é?" senta na beirada da cama e empreende uma disputa contra o cadarço do tênis, no qual a menina dera um nó.
"Ei, por que..."
"Su-sua irmã" a mãe disse emitindo em seguida um som ambíguo ao conseguir calçar um dos pés, "Seu pai tá no telefone, ele está com ela..."
"Hã?" resmunga, desinteressada.
"Fala com ele!" e virou-se para encará-la – a expressão de cansaço da mãe dera lugar a um olhar mortificante. "Se ele ainda estiver na linha", completou respirando muito depressa.
"Pai?" murmurou a menina "Alô? Pai?"
"Dá aqui, me dá, me dá!" a mãe insiste, sem paciência.
"Calma!"
"Mikaela!" exclamou passando as mãos pelo rosto.
A menina desviou os olhos da mulher irritada e estendeu uma mão para fora da cama, "Vem cá Meu Cabra", falou esfregando os dedos, o vira-lata, lambeu o nariz e saiu do esconderijo encaixando a cabeça na mão da menina.
"Mikaela!" repetiu a outra, num berro ainda mais alto. Meu Cabra, latiu em resposta.
"Lilian!" a menina berrou em seguida "O que tem meu pai? É sempre meu pai, meu pai... Meu pai, o que tem ele? A Laila não está com ele? Não é o que você queria depois que ela perdeu outro celular? Meu Deus do céu, eu só quero um minuto de paz sem que alguém entre no meu quarto como se alguém estivesse morrendo..."
"Alguém está morrendo" a mãe disse e fechou os olhos, respirou fundo, as mãos afastadas do corpo como se tentasse ficar de pé pela primeira vez na vida "Sua irmã... Sua irmã teve, ela teve... Ela bebeu, deram alguma coisa pra ela, eu não sei, seu pai disse que eu, nós... Eu e você...", varreu o ar com a mão e completou enxugando o que Mikaela viu serem lágrimas de verdade "A gente precisa ir...".
"Mas, mas a... a Lála está... Ela..."
No caminho até o hospital Mika pensara nas inúmeras vezes que escondera dos pais momentos de medo e perigo considerável. As vezes em que pulou cercas e caminhou sobre os trilhos em trechos desertos entre uma estação e outra; o mato alto e as costas nuas de casas construídas em terreno invadido. Os passos ecoando nos galpões de tijolinhos cetrinos, o Sol projetando nesgas douradas pelos janelões da antiga garagem de trens, no lusco-fusco... E então um apito. Um trem, um trem de carga, 13 e ela trocaram olhares. Mika diz ter uma ideia. O trem então surge, veloz, o galpão estremece, o barulho é ensurdecedor. Eles se colocam a postos, Mika enterra a ponta do tênis no solo arenoso, o sorriso no rosto de 13 diminui a medida que a sua frente o trem se alonga. 13 diz algo que ela não consegue ouvir, mas a garota entende.
Eu entendo a sua língua, pensa, nos muitos sentidos.
É o que ia dizer se alguém fizesse objeção, conhecia 13, conhecia as histórias que JT contava muitas e muitas vezes, mas conhecia a boca de 13, o beijo, até mesmo de ponta-cabeça, como em The O.C., Seth e Summer, quando o Seth com uma máscara de Homem-Aranha escorrega do telhado e fica pendurado por uma perna ou coisa assim e imita a cena do filme, ao passo que JT e os outros às histórias, que não terminavam nunca, pois algum detalhe sempre era acrescentado, algum ponto de vista ou observação aparentemente irrelevante, mas que tornavam as histórias de JT, sobre 13, parte da tradição do clã. Um dos apelidos de JT nos encontros internacionais de RPG era Peixe Grande, em razão do filme homônimo, no qual um pai a beira da morte conta histórias extraordinárias sobre sua vida ao filho. JT não estava doente, tampouco prestes a morrer, ainda assim suas histórias seguiam o mesmo modelo das supostas mentiras do Peixe Grande do filme. Era comum que as histórias começassem a partir de uma memória e os gatilhos eram sempre as deixas de Geleia, cujo nome, era também em homenagem a um personagem, mas no caso dele, embora preferisse algo como Venkman, de Peter Venkman, a semelhança com o fantasma verde da franquia de Os Caça-Fantasmas, concedeu-lhe o codinome do qual ele até tinha algum orgulho.
Em uma das vezes que JT ouvira de Geleia alguma coisa sobre lojas online de camisetas temáticas, JT roubara o turno para soltar que 13 perdera uma camisa de banda numa aposta e que ao aceitar o desafio 13 não imaginava que o motor do carro fosse dar problema logo quando parte da cara dele estivesse pendurada após descer a curva do estacionamento do antigo Barateiro num carrinho de supermercado assoviando This Is the End, a cicatriz 13 tinha de fato. E então JT esclarecia que Nikolai Fraiture era um gênio e que This Is the End era do projeto paralelo do baixista da banda favorita de 13, The Strokes... E que 13 era seu primo de quarto grau e às vezes de terceiro e que embora ele fabricasse substâncias "simpaticonaméticas", 13 era um motherfucker de bom coração. E era a vez de 13 corrigí-lo, primeiro, dizendo que as substâncias, na verdade, eram simpatomiméticas, depois o fato de ele trabalhar em uma empresa que produzia fios têxteis para o mercado automotivo e não anfetaminas. 13 não desmentia JT, ainda que o corrigisse. Mika gostava de ouvir JT falar e achava graça das caras que Geleia fazia tirando os óculos e limpando com a ponta da camisa dando-se por vencido. A menina esperava ansiosa o dia que JT contaria sua versão da história do trem, não só porque, com certeza, o amigo inventaria que talvez o trem de carga fosse um trem-bala japonês ou o aerotrem das propagandas eleitoras, mas porque ela estava nela, na história, mesmo que com algumas cicatrizes e mais especificamente com uma cicatriz na cabeça...
"Três!" Mika e o namorado gritam juntos. Em segundos 13 estava uns cinco ou seis passos a frente da menina e então dez, quinze, vinte e o trem tomando distância, um competidor intrépido, sacolejando sobre os trilhos. O rapaz não percebera o ocorrido, mas Mika tropeçara em uma das vigas ou nos próprios pés, como ela disse com a camisa do namorado aparando o sangue. A ida até o hospital fora outro dos problemas, pois o ferimento, na cabeça, obrigava a menina a manter uma das mãos ocupada contendo o sangramento, além de a dupla ter de voltar pela cerca, na qual tinham escalado para pular e 13, sem camisa, teve de aceitar o cardigã vermelho da namorada e ao longo do caminho arrancar olhares de curiosidade e graça das pessoas na estação... Talvez JT contasse que o namorado da menina era fã de Kubanacan, alérgico a malha de algodão ou tão somente azarado.
13, seu nome verdadeiro era Tomás e foi o nome que ele disse quando o médico perguntou quem a levaria para casa. Quatro horas de espera num Pronto Socorro apinhado de gente, três pontos na cabeça, um Raio-X e o elogio do médico ao modelito outono-inverno de lã que 13 estava usando, sua camiseta, que Mika devolvera conferindo o estrago, era uma versão primavera-verão do que Mr. Orange estaria usando se Cães de Aluguel se passasse na Tupinilândia.
"Pelo menos a gente agora pode ver eclipses juntinhos com essa sua chapa aí" 13 disse pegando o envelope com o Raio-X das mãos de Mika e passando um braço por sobre o ombro dela.
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