05
Termino de pendurar o quadro com a foto de Paçoca na parede. Me afasto para ver o lugar, soltando um suspiro satisfeito. As paredes do quarto agora estão pintadas de bege, com exceção de onde fica minha cama, que está pintada de cinza escuro. A cortina ganhei de Jisung; é cinza, pois de acordo com ele, cinza é a minha cor, seja lá o que isso signifique. A cama agora é coberta por uma colcha cinza claro com branco, meus livros estão arrumados em um armário branco do lado da cama e a caminha de Paçoca está logo ao lado, apesar dele dormir mais na minha cama do que na própria.
Repasso na mente a conversa que tive com Jisung dois dias atrás, agora vejo que entendi tudo errado; o amigo dele não havia ido embora para outra cidade, mas sim para o que chamamos de "o outro plano", isso explica o dia que o vi no cemitério, mas definitivamente não explica Hyunjin estar com ele quando os dois se ignoram na escola.
Hyunjin.
Agora eu sei o seu nome, sei que tem uma irmã gêmea que estudou na nossa escola, mas que pelo jeito não está mais lá, visto que nunca a vi pelos corredores. Sei também que namorou Felix e que possuía vários amigos.
Sei também que começou a invadir meus sonhos.
Se eu fecho os olhos, ainda consigo me lembrar da maciez de seus lábios unidos aos meus, do doce e leve cheiro de rosas brancas se intensificando quando ele se aproxima, do calor de seu toque na minha pele, de seu rosto angelical e seus olhos de jabuticaba me observando como se pudesse ler cada pensamento meu. Desde que sua figura começou a aparecer nos meus sonhos, a música que ouvia parou de tocar, voltando a soar apenas quando não o vejo. Não sei o que esses sonhos significam, desde que cheguei à cidade a duas semanas, o campo de Dentes-de-Leão tem se tornado um lugar presente que visito ao dormir, junto ao suave cheiro de rosas brancas e a doce melodia que conheci nos corredores da J.P. High.
— Minho, a comida está pronta! — A voz de minha mãe me tira dos pensamentos. Desde a nossa discussão, ficamos ainda mais afastados, nem imaginava que isso poderia ser possível. Nossas intenções se resumem a cumprimentos ao acordar e ao dormir e anúncio sobre a comida.
Um suspiro alto deixa meus lábios. Saio do quarto e ando a passos arrastados pelo corredor azul claro. Encontro Hyori ao chegar na cozinha, sentada à mesa comendo arroz com panqueca salgada. Pego um prato e me sirvo, e antes que eu pudesse me virar para comer no meu quarto, escuto sua voz me chamar.
— Minho, precisamos conversar.
— Não, não precisamos. — Respondo secamente, ainda de costas para ela.
— Me... me desculpa. — Sua voz, normalmente ríspida e seca, soa mais amena e calma.
— Desculpa? — Dou uma risada sarcástica e me viro em sua direção. — Desculpas pelo quê? Por ter me abandonado quando criança? Por nunca ter sido uma mãe presente? Por praticamente me rejeitar? Por não ter me oferecido apoio quando meu pai morreu? Desculpas pelo quê, mãe? — Dito a última palavra com sarcasmo e veneno, deixando explícito o que estava sentindo.
Ela apoia sua testa nas mãos unidas, com o rosto virado para baixo, minha mãe suspira.
— Por tudo, Minho. — Sua resposta me pega desprevenido. Ela vira o rosto para mim novamente, mas seus olhos não conseguem encarar os meus. — Me desculpa por tudo, por ter te abandonado, de rejeitado, ter sido ausente, por ter sido uma péssima mãe. — As mechas de cabelo que estavam soltas do coque caiam sobre seu rosto, mas ainda conseguia ver seu semblante tenso. — Eu conheci seu pai quando ele se mudou pra cá, tivemos um caso de poucas semanas, um caso que resultou em um bebê. — Seu olhar fixo no chão caminha até se encontrar com o meu. — Você. — Seus lábios finos se curvam em um sorriso pequeno e melancólico. — Você era tão pequeno, Minho, tão frágil e delicado, merecia toda a atenção do mundo, eu só tinha dezoito anos, não podia te dar essa atenção...
Para minha surpresa, ela parecia sincera. Ela não estava sendo grossa ou seca como se costume, seu olhar era sincero e não frio, sua voz não estava ríspida, mas passava uma genuína emoção.
— Muitas mulheres se tornam mães novas, mesmo sendo assustador, elas tentam. — Digo após alguns segundos de silêncio. Coloco o prato na mesa e volto a olhá-la com dúvida. — Por quê não tentou?
— Eu tive medo. — Ela levanta os olhos e balança a cabeça, força um sorriso em meio a expressão abatida e olhos marejados. — Eu era irresponsável, imprudente, era um espírito livre. Sabia que se me prendesse ao papel de mãe, eu ia perder minha liberdade, eu não estava pronta pra isso, pra construir uma família. Minho, eu nem sabia te segurar direito, precisava de ajuda até pra te dar banho. — Seus dedos finos limpam uma lágrima solitária que rolava por seu rosto.
Eu nunca havia visto minha mãe chorar antes.
— Seu pai insistiu pra que fossemos uma família, mas eu neguei todos os pedidos. No fim, ele se mudou pra San Marco com você. Todos os dias me deixava recados no celular sobre você, mas eu não os respondia, então o que era diário começou a se tornar semanal, e então mensal, depois anual... e depois de alguns anos esse costume passou a ser algo que ele fazia em ocasiões especiais, como formatura do ensino fundamental. — Mesmo que lutasse contra, sua voz estava embargada pelo choro. — Eu odiava quando ele fazia isso. Não queria saber de você, odiava quando eu me via obrigada a ir te visitar e passar um dia com você, odiava quando você me ligava. Odiava tudo isso, porque eu sabia que você precisava de uma mãe, uma mãe que eu não era, odiava porque eu sabia que não podia ser essa figura que materna que você precisava e não gostava quando seu pai me lembrava disso todas as vezes que entrava em contato falando sobre você, ele nem precisava dizer essas exatas palavras, eu sentia isso, sabia disso! — Sempre soube que era indesejado, mas ouvir essas palavras saindo diretamente da minha própria mãe fazia doer ainda mais, deixa ainda mais real, enfatiza o que sempre soube. — Eu não posso voltar no passado e mudar o que fiz, mas posso mudar o agora.
Sua imagem era apenas um borrão através das lágrimas. Se eu sempre soube tudo isso, por que estou chorando? Isso nunca foi segredo para ninguém.
— Não acha que está meio tarde? — Indago com mágoa transbordando da minha voz. — Você perdeu quase 20 anos da minha vida. — Digo aquelas palavras pausadamente, sílaba por sílaba, ressaltando ainda mais a mágoa e a dor.
— Eu sei, eu sei... — Acenou com a cabeça algumas vezes com os olhos fechados, as lágrimas agora rolavam livremente pelo seu rosto. — E não posso voltar atrás, não posso mudar o passado, mas posso fazer melhor agora, no presente. — Ela se levanta e se aproxima de mim, mas eu me afasto. — Minho...
— Por que agora tão de repente? Encontrou Jesus em algum momento e não me contou? — O sarcasmo era evidente, mesmo com a voz embargada.
— Vi Nayeon perder os dois filhos em menos de um ano. A dois dias a vi no cemitério, fiquei pensando nisso. Ela esteve presente a todo momento, os viu crescer, entrarem na escola, terem o primeiro amor, Nayeon tem todas as boas lembranças com os filhos. Então eu pensei em você... — Mais uma vez minha mãe se aproxima, mas dessa vez eu não me afasto. — Passei tanto tempo me lamentando e me culpando por não estar sendo presente na sua vida, que... — As palavras se perderam em sua boca, parecia estar procurando as certas para verbalizar seus pensamentos. — Ai, Minho... se fosse você agora, a sete palmos debaixo da terra... — Mais uma vez suas palavras se perdem, mas seus olhos expressavam tudo que sua voz não conseguia. — Eu só... — Ela limpa as lágrimas com a mão e suspira. — Eu só tô pedindo uma chance pra tentar ser uma mãe de verdade pra você.
O arrependimento transbordava de seus olhos, assim como as lágrimas agora transbordavam dos meus.
— Você esteve ausente por tanto tempo... — Minha voz sai baixa e trêmula. — Como posso ter certeza que vai ser diferente?
E então ela segura minhas mãos com firmeza e me encara com determinação.
— Apenas me deixe mostrar. Não vai ser fácil, mas eu vou tentar. Desculpas não vão apagar anos da minha ausência, eu sei disso, mas estou aqui agora pedindo uma chance pra melhorar o futuro. — Responde com firmeza. Fico longos segundos em silêncio a observando, ainda cheio de incerteza e hesitação. Sinto suas mãos apertarem as minhas mais uma vez. Meu coração se aperta, foram anos querendo uma mãe presente e agora isso pode estar a alguns passos de mim, mas o remorso e a mágoa que guardo ao longo dos anos não me permitem enxergar um caminho que torne isso acessível.
— Tudo bem... — Dou um pequeno sorriso em confirmação. Mesmo rodeado de incertezas, dou a ela um voto de confiança. — Não vai ser fácil, mas vamos tentar.
Um largo sorriso se formou em seus lábios e seus braços envolvem meu corpo em um abraço apertado. Pela primeira vez em toda minha vida, estou sentindo que estou recebendo o abraço que tanto sonhei; o mesmo que eu via meus colegas da escola receberem de suas mães.
— Obrigada, Minho, muito obrigada. — Seu choro se intensifica mais uma vez. Hesitante e com as mãos trêmulas, retribuo seu abraço, não na mesma intensidade, mas ainda sim o retribuo.
[...]
O sinal para o intervalo toca e os alunos começam a se movimentarem. Alguns apenas levantam e vão até outras carteiras para conversar com os amigos, outros saem da sala e alguns alunos de outras turmas entram. E como sempre, Hyunjin permanece sozinho. Observo-o se levantar e sair da sala. Estou em um dilema a dias sobre falar ou não com ele.
Eu não me importo em fazer amizades.
Mas ele é muito solitário.
Não que eu me importe com ele.
Mas é triste ver o quanto ele é ignorado. Fala sério, nem os professores dão atenção a ele. Ele deve ter feito um crime hediondo para estar sendo tratado assim.
Não me importo com os sentimentos alheios.
Mas eu sinto que deveria falar com ele.
Fico longos minutos olhando para a porta da sala. Levanto da minha carteira e saio da sala de aula. Os corredores estavam agitados e barulhentos como de costume, havia alunos correndo e gritando, nem pareciam adolescentes, mas sim crianças do fundamental.
Em meio a gritaria e a bagunça, uma linda melodia no piano chega até mim. Paro imediatamente de andar, é a mesma música que escuto nos meus sonhos, a mesma que todos também escutam. Viro o rosto na direção da porta de onde a música parecia sair. A sala de música.
Quase ninguém entra aqui fora do horário de aula além dos professores. A curiosidade invade meu corpo, o desejo por saber quem está tocando a música vem me consumindo a dias, e talvez agora seja o momento de descobrir.
Com lentidão, abro a porta da sala de músicas e adentro o cômodo, fechando a porta em seguida. A música, agora mais audível, preenche toda sala. Perto da janela, ilimitado por um feixe de luz, há um piano de cauda preto, e sentado diante dele, está Hyunjin.
Mesmo com alguns fios de cabelo sobre o rosto, posso ver sua expressão calma e serena enquanto toca. Ele está imerso na música, os olhos fechados enquanto os dedos ágeis dançam sobre as teclas do piano. Fico parado o admirando. Não era o diretor ou algum suposto filho que estava tocando esse tempo todo, era Hyunjin.
Aos poucos, o ritmo vai diminuindo até que a última nota se dissipa no ar. Os olhos de Hyunjin de abrem e vão de encontro com os meus, mais uma vez sinto meu corpo congelar no lugar. Os olhos do Hwang são vazios e sem brilho, mas ele me encara com certa curiosidade.
— Desculpa... eu ouvi a música e vi que ela estava vindo daqui... você toca muito bem. — Forço aquelas palavras saírem da minha boca. Pela primeira vez estava falando com Hyunjin. Noto seu cenho franzir e os lábios se entreabrirem, parecia incrédulo. — Então era você esse tempo todo?
Ele parecia surpreso, sua expressão agora mais intensa como se não algo não estivesse certo.
— Você... consegue me ver? — Hyunjin já havia falando comigo nos meus sonhos, mas nunca conseguia ouvir sua voz. Mas agora, no mundo real, pude ouvir sua voz até então desconhecida. Ela é suave e doce, assim como sua aparência gentil.
— E por que eu não conseguiria? — Pergunto confuso com a pergunta. Nos encaramos pelo que pareceu uma eternidade, até que a porta se abre bruscamente, fazendo o contato visual que mantínhamos chegar ao fim.
— Minho! Estive procurando por você. — A voz animada e estridente de Jisung invadiu a sala. — O que você tá fazendo aqui sozinho? Felix está esperando por nós.
Volto minha atenção para Hyunjin, seu olhar intercala entre mim e Jisung. Não estou sozinho, o que Jisung quer dizer com isso?
— Ei, você me ouviu? — O bochechudo se aproxima mais ainda e olha para Hyunjin, parecendo confuso. — Por que está encarando o piano? Há algo de errado nele? — Minhas sombrancelhas se unem em confusão diante a pergunta de Jisung, ele está mesmo ignorando a existência de Hyunjin? — Vamos logo, Minho.
— Espera, Jisung. — O Han me arrasta para fora da sala, meus olhos focam na figura de Hyunjin parado nos olhando.
Assim que a porta se fecha, me viro confuso para Jisung.
— Jisung!
— Que foi? — Ele me encara com confusão, ainda me carregando pelos corredores da escola.
— Você... Você ignorou ele totalmente! — Me livro do aperto de sua mão e paro de andar, consequentemente, ele para também.
— Ele quem, Minho?
— Você não viu ninguém na sala comigo? — Pergunto e ele nega com a cabeça.
— Você deve estar imaginando coisas, Min. — Sua voz agora era mais amena, parecia querer me tranquilizar.
— Não, eu não estou, eu sei o que eu vi. — Minha voz tremia com a certeza do que havia presenciado.
— E eu sei que quando entrei naquela sala, havia apenas você lá. — Minha mente foi a mil, estava fervilhando de perguntas, mas sei que insistir agora não vai adiantar.
— Tudo bem. — Me dou por vencido, acenando com a cabeça. — Eu devo estar cansado, só isso.
— Vem, Felix fez brownie e trouxe pra gente. — Jisung enlaça meu braço e volta a andar, me carregando consigo.
— Falando em Felix... — Tomo coragem para perguntar o que estava na minha algumas semanas. — Ele e o Hyunjin namoravam, né? — Espero por alguma resposta de Jisung, mas recebo apenas o silêncio. — Jisung?
— Como você sabe do Hyun? Eu nunca falei o nome dele. — Sua pergunta apenas me deixa ainda mais confuso. Ele estava mesmo tão disposto assim a ignorar Hyunjin?! A troco de quê?
— Eu vi algumas fotos dele no anuário... também vi algumas no quarto de Felix quando dormimos lá. — O semblante feliz de Jisung se desmancha. É a primeira que pergunto sobre Hyunjin para ele e não sabia o que esperar.
— Eles namoravam sim. — Ele finalmente fala. — Eram um contraste e tanto. — Olho para Jisung, havia um sorriso melancólico em seus lábios. — Felix sempre teve esse estilo mais trevoso, além de ser mais sério. Já o Hyun, apesar de também ser reservado, sempre foi mais doce, tímido, dificilmente saía dos tons claros, mas eles pareciam estar sempre na mesma sintonia. — Mais uma vez o silêncio se instaura sobre nós, até que Jisung volta a falar mais uma vez. — Hyunjin sempre gostou de tocar instrumentos, ele era bem talentoso. Piano, flauta transversal, violão, guitarra, violino... e Felix amava escutar, era um bobo apaixonado. — Uma risada baixa deixa os lábios de Jisung, agora seu sorriso estava maior, seu olhar exalando nostalgia. — Hyun sempre tocava pra nós naquele lago do pátio de trás. Diferente de mim, ele era mais calmo, também éramos opostos, mas eu o amava como um irmão... ainda amo, na verdade. Você pode achar estranho, mas ainda converso com ele. Eu sei que ele me escuta. Eu sinto isso... eu sinto a presença dele. — Sua mão livre alcança o colar de margarida que ele estava usando.
Suas palavras ecoam na minha mente. Permaneço em silêncio absorvendo suas palavras, tentando achar algum sentido para elas. Jisung se referiu Hyunjin no passado a todo momento. Eu estava com o Hwang a alguns minutos, mas ele fala como se o mesmo não estivesse mais entre nós.
— Era isso que você queria saber, Min? — Jisung pergunta, preenchendo o silêncio pesado entre nós.
Engulo em seco, com a pergunta presa na garganta. Ainda andando, agora quase fora dos corredores e chegando ao pátio de trás, volto a falar.
— Jisung... eu percebi que você estava falando do Hyunjin como se... — As palavras não queriam sair da minha boca, eram absurdar demais. — como se ele não estivesse mais aqui. — E então paro de andar, a tristeza volto aos olhos brilhantes de Jisung, que agora está parado na minha frente.
— Minho... do que você está falando? — Suas orbes analisam meu rosto, que olhar tão perdido quanto o meu.
— Você está falando dele como se ele não estivesse aqui, como se... como se ele tivesse morrido. — Dito as últimas palavras tão baixo quanto um sussurro, pareciam palavras proibidas. A situação é estranha, nada faz sentido, qualquer explicação que há parece ser absurda demais.
— Minho, por que está surpreso? — Já presenciei Jisung cabisbaixo e com a expressão murcha algumas vezes, mas nada como a aflição que dominou seu semblante normalmente alegre. — Hyunjin morreu no primeiro semestre. Suicídio. Se foi a apenas alguns meses depois da Yeji, irmã gêmea dele, morrer afogada.
Vejo os lábios de Jisung continuarem a se mover, mas não escuto mais nada. Não escuto Jisung, nem os alunos em volta, a gritaria, a bola batendo no chão da quadra, os professores brigando com os alunos.
Nenhum professor nunca chamou o nome de Hyunjin na chamada, mas ele também nunca se incomodou de avisar sobre.
Ninguém fala com ele, assim como ele não fala com ninguém.
Sua presença na sala é praticamente invisível.
Felix!
Felix ficou confuso quando perguntei sobre o garoto ignorado da sala.
As pessoas passam por ele como se não estivesse ali.
Aos poucos as peças vão se encaixando na minha mente, mas nada faz sentido. É absurdo demais.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro