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Prólogo

7 de Setembro de 2018
16h54

 Cecília passava apressada pelos corredores do mercado, seus olhos pulavam entre as prateleiras repletas de itens para casa, decorações, roupas, brinquedos e até pneus. Correu por metade da loja gigantesca, mas não encontrou o que procurava. Lembrou da época distante em que fazer compras era divertido. Passear pelo espaço, ver preços, provar algumas coisas... Mas isso era passado, assim como tudo o que costumava lhe dar prazer. Checou o relógio de pulso mais uma vez.

— Merda. — eram quase cinco horas. As crianças sairiam para o desfile de 7 de Setembro às cinco e meia.

 Resolveu procurar alguém que trabalhasse ali. Rodou pelo lugar, se sentindo incomodada até com a musiquinha irritante que saía pelos alto falantes. Estava cansada, o dia tinha sido um estresse. Finalmente conseguiu encontrar o típico colete verde com o símbolo do hipermercado.

—  Com licença. — tocou no ombro do rapaz que enchia uma prateleira com potes para biscoito.

— Pois não?

— Eu preciso de uma roupa de índio.

 O homem a olhou estranho.

— Roupa de índio?

— Minha filha tá no grupo de representação indígena para o desfile.

— Ah, sim. — ele terminou de colocar os dois últimos potes. — A gente tinha essas fantasias, mas uns clientes reclamaram, disseram que eram preconceituosas e tal. Então a loja retirou tudo.

 Que momento oportuno para aquilo.

— Mas vocês ainda tem?

— Sim, tão no estoque.

— Você pode me conseguir uma? Por favor, moço, é uma emergência.

— Não sei... Talvez a senhora devesse tentar pela internet.

— Eu não tenho tempo para comprar em outro lugar! — percebeu que estava quase gritando. Sua cabeça latejava como o inferno. — Desculpa, sério. O que acontece é que tô separada há alguns meses e meu marido já acha que não sou capaz de cuidar dos meus filhos, se eu não conseguir a merda dessa fantasia, ele vai surtar.

 O atendente pensou enquanto desmontava a caixa de papelão e a colocava no carrinho.

— Eu acho que não tem problema. Quantos anos a sua filha tem?

— Sete. Ela é tamanho P.

— Espere aqui, por favor.

 Cecília andou de um lado para o outro desejando um cigarro, instantaneamente vendo a cara de reprovação de sua psicóloga. A visão a fez lembrar que precisava anotar a mudança da próxima sessão, seria na sexta e não na quinta. Tirou uma das alças da bolsa do ombro e procurou sua agenda ali, até lembrar que havia deixado na casa da irmã. Respirou fundo, não poderia enlouquecer antes de mandar as crianças para o desfile.

 Lançou mais alguns olhares ansiosos para o relógio. Eu e minha mania de deixar tudo para a última hora, pensou. Mas não é minha culpa, Ricardo sempre cuidou dessas coisas todos os anos. Só de imaginar o olhar do ex-marido se não conseguisse a maldita fantasia... Cigarro não seria o suficiente, se ela fosse enfrentar algumas horas com ele teria que tomar o calmante.

 Por que a colocaram para ser índio? Ela é loira. Ricardo havia perguntado outro dia.

 A professora disse algo sobre identidade e raízes do país, eu não sei.

 Ele havia revirado os olhos, no seu típico comportamento de crítica contra o mundo.

 O atendente voltou mais rápido do que ela esperava, segurando uma cruzeta de plástico com um vestido cor de couro velho, com algumas tiras aqui e ali. Cecília achou pavoroso, mas sabia que Clara iria amar.

— Obrigada, você salvou minha vida. — falou, soltando um suspiro de alívio.

— Precisa de algo mais?

— Só chegar em casa em dez minutos.

 Correu para o caixa e pagou no cartão, o dinheiro do pai das crianças só cairia na próxima semana. Já estava quase saindo da loja quando lembrou do presente de aniversário do Miguel.

 A moça do caixa sorriu para ela com compaixão ao vê-la mais uma vez. Que maravilha eu devo estar depois de oito horas naquela fábrica e uma noite mal dormida porque a droga do cachorro do vizinho não parou de latir.

— Filhos. — Cecília soltou com uma risadinha que saiu quase histérica. Precisava se apressar, graças a Deus não teria que preparar o jantar, Ricardo os levaria para comer fora pelo aniversário do filho.

 Finalmente no carro, Cecília dirigiu no limite de velocidade e ainda furou um sinal vermelho. Lembrou de seu pai, como ele nunca respeitava as regras de trânsito e aquilo costumava irritá-la. Agora ela sabia.

 Morava no último apartamento de um prédio de três andares, para onde havia se mudado com as crianças depois do divórcio. Era apertado, os filhos dividiam o quarto, não tinha elevador e conseguia ouvir até a descarga do vizinho de baixo. Ricardo vivia oferecendo para pagar um lugar maior, mas ele já arcava com o aluguel, a escola e até os custos com a psicóloga dela. As crianças já tinham seus momentos de ricos quando estavam com o pai.  

 Parou o carro em frente de casa e viu o vislumbre da filha na janela quando desceu. O rostinho animado, as mãos no parapeito. Clarinha gritou pelo irmão e sumiu. Cecília pegou a fantasia e o presente não embrulhado no banco do carona e bateu a porta do carro. Pensou em trancar, mas acabou desistindo.

— Dane-se, quem quer roubar essa porcaria? — Vale do Porto era uma cidade pequena, ainda chamada de interior por muitos. O centro estava em ascensão, com todas aquelas lojas, mas os bairros ainda eram seguros o suficiente para as crianças brincarem na rua.

— Mamãe! — Clarinha gritou assim que ela entrou, pulando. O cabelo reto e um tanto loiro se abrindo no ar.

— Calma, Clara, cadê seu irmão? Miguel, comprei uma coisa pra você!

 O filho mais velho largou o controle da TV e levantou do sofá.

— O que é? — ele perguntou, se aproximando.

 Cecília entregou a caixa com o brinquedo para ele. O filho olhou para aquilo e depois para ela.

— Um carro?

— Não era o que você queria?

— Não brinco mais de carro, mãe.

 Cecília quis dizer que era melhor ele brincar, porque aquele troço custou quase cinquenta reais, mas Clara ainda estava pulando, chamando sua atenção.

— Você achou, mãe? Você achou?

 Ela tirou da sacola a fantasia para a menina, que soltou um grito de alegria.

— Posso vestir?!

— Rápido, estamos atrasados.

 Clara desapareceu no corredor, sem nem mesmo fechar a porta do quarto e Miguel também saiu, arrastando os pés. Cecília andou pela casa, recolhendo a bagunça que os filhos fizeram nas poucas horas que ficaram ali sozinhos. Reparou nas marcas de pés no sofá e suspirou, estava cansada demais até para descobrir quem foi. Haviam brinquedos por toda parte, achou apenas um par do tênis de Miguel jogado e novos rabiscos de Clara na parede. Olhou para o nada por um momento, como se fosse para recuperar cinco por cento das forças, então foi apressar as crianças para o desfile.

— Miguel, fez o dever de casa? — gritou, indo para a cozinha.

— Ahn, fiz! — o menino usava uma faca para abrir a caixa do brinquedo.

— Deixa eu ver. Cuidado com isso.

 Ele apontou para a mesa, onde estava o seu caderno e o da irmã. Cecília conferiu os cálculos na folha e pareciam estar ok, mas também achou uma mancha do que parecia ser chocolate. Talvez a professora não notasse. Estava de saco cheio de receber aquele tipo de observação nas agendas dos filhos. Estava sempre cansada de correr para cá e para lá, não tinha tempo nem energia para procurar manchas em cadernos ou conferir se Clara andava contrabandeando brinquedos na mochila.

— Cadê a sua fantasia de soldado? A professora disse que você pode reaproveitar, já que ainda servia.

— Não quero colocar uma roupa idiota.

— Mas você adorou a fantasia.

Ano passado, mãe. Não sou mais criancinha.

 Cecília olhou para o relógio ao mesmo tempo que imaginava qual a grande diferença de onze e doze anos.

— Você que sabe, vá vestir o uniforme, então.

— Que horas o pai vem?

— Depois do desfile.

— Mas que horas?

— Não sei, Miguel, ele tá na casa da sua vó, você sabe que é longe. Vai se trocar.

 O menino bateu a caixa na mesa com força e saiu. A mãe trincou os dentes para não gritar. Não tinha tempo. Se virou para a pia e lavou a louça que as crianças sujaram no lanche da tarde. Quando acabou, parou na entrada do corredor e viu Miguel espiando o quarto da irmã

— Miguel?

 Ele se virou e cobriu a boca, estava rindo. Fez um sinal para que a mãe se aproximasse. Cecília chegou perto e lançou um olhar pela porta. Clara estava lutando para colocar o vestido, mas estava preso em seus ombros, cobrindo o rosto e prendendo os braços.

— Meu Deus, Clara, por que não me chamou? Vem aqui. — Cecília puxou a roupa por cima, libertando a filha. — Tem um zíper aqui. — explicou.

— Eu não vi.

 Cecília reparou que Clara havia escolhido a pior calcinha que tinha, apostava que era por causa do desenho desbotado que ela adorava. Olhou para a cômoda da filha, mas naquele mesmo instante ouviu a buzina da perua.

— Vem, estique os braços. — enfiou o vestido na menina, a virou sem muita delicadeza de costas e subiu o zíper. Notou que Miguel ainda estava parado na porta, olhando para as duas distraidamente. — Miguel! O uniforme!

 O menino pareceu voltar do mundo da lua e correu para seu quarto. Cecília foi até a janela da sala e gritou, avisando que já estavam indo. Voltou apressada para dentro do quarto e passou uma escova nos cabelos de Clara rapidamente.

— Ai, mãe. — ela reclamou, quando sua cabeça foi puxada para trás.

— Seu cabelo não ia ter tanto nó se você não pulasse tanto. Pede pra tia fazer a maquiagem, ok?

— Certo.

 Outra buzina.

— Miguel!

— Tô aqui.

— Vamos, vamos, vamos.

 Os três se apressaram para a sala.

— Cuide da sua irmã.

— Certo.

— Fique de olho nela.

— Uhum.

— Está me ouvindo?

— Sim, mãe.

— Boa noite, seu Roberto! — ouviu a menina gritar para o motorista lá embaixo.

— Jesus, Clara, quantas vezes eu disse para não se inclinar na janela?

 Colocar a rede de proteção, eu sempre esqueço de mandar colocar a merda da rede de proteção.

 Cecília ouviu o homem responder com outra buzina.

— Certo, se juntem pra eu tirar uma foto.

— Mãe...

 Miguel reclamou, mas ela o ignorou, pegando o celular. Clarinha parou ao lado do irmão, sorrindo, o cabelo escorrido na frente do rosto, um lado atrás da orelha. Cecília tirou a foto.

— Certo, vão. — falou, indo para a janela, de onde os veria entrar na perua. Olhou distraidamente as notificações no celular enquanto eles desciam.

— Tchau, mãe! — Clara gritou lá de baixo, acenando.

— Tchau, princesa. Tchau, príncipe!

 Miguel se virou para lançar um olhar furioso e Cecília conseguiu imaginar ele resmungando que os amigos estavam ouvindo. A mãe os observou subir na perua e irem embora. Se afastou da janela enquanto enviava a foto dos filhos para o Facebook.

 Vocês são o meu mundo inteiro. Mamãe ama vocês.

 Postou.

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