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8 de Setembro de 2018
8h27
Teixeira juntou as sobrancelhas, saindo da padaria.
— Isso não é o suficiente para colocar o pai como suspeito, mas é algo.
— Exatamente. O corpo vai passar pela autópsia e saberemos se a menina foi amarrada com a evidência. Já mandei um pessoal ir até a casa e recolher a fita adesiva. Vamos mandar para a análise e ver se bate com a encontrada no local do crime.
— Me mantenha informada, por favor, delegado.
— Claro e, Teixeira, vá descansar.
— Preciso recolher esse material e...
— Recolha, deixe aqui na delegacia e vá dormir um pouco. Preciso da sua cabeça limpa.
— Sim, senhor. – ela desligou e sentiu que as palavras haviam acrescentando mais dois quilos em suas pálpebras já pesadas. O chefe tinha razão, ela precisava dormir. Mas antes...
Entrou na padaria, dando a volta pelo balcão e atravessou a parte onde os pães eram preparados, recebendo olhares curiosos dos empregados. Mais além havia uma salinha, uma espécie de escritório, com um computador de mesa.
— Já estamos fazendo a cópia. – Gilson falou, apontando para a tela. Uma janela indicava que o processo estava em vinte por cento.
— Muito obrigada. Tenho certeza que isso será de muita ajuda.
— Esse aqui é meu filho, o Vagner. Ele é o mais novo.
O jovem, de uns vinte e cinco anos, ergueu a cabeça e deu um meio sorriso. Teixeira acenou com a cabeça.
— Vocês moram aqui há muito tempo?
— Ah, faz uns... Quinze anos, é. — Gilson tirou a touca para poder coçar a cabeça. — O Vagner era um molequinho.
— Como é a vizinhança? Boa?
— Esse aqui foi o melhor lugar que morei, senhora policial. Lugar calmo, sabe? Meus filhos foram criados correndo por aí, nunca me preocupei com eles. Esse caso da menininha, meu santo Deus, que coisa triste.
— É muito triste, realmente.
— Não faço ideia de quem pode ter feito isso. Conheço cada pessoa dessa rua, a maioria das outras. Sabe quando todo mundo parece ser gente boa? Mas vai saber, né.
— O senhor sabe se alguém se mudou para cá nos últimos tempos?
— Que eu saiba, não.
Teixeira apoiou as costas na parede e cruzou os braços.
— A senhora quer comer alguma coisa? Um café?
O cansaço deveria estar na sua cara. Literalmente.
— Não, mas obrigada.
— Certo.
O silêncio foi preenchido por Gilson, que falou de vários assuntos, ligando uns aos outros fazendo que Teixeira sentisse ainda mais sono, sem poder acompanhar o raciocínio dele. Levou alguns minutos até que Vagner lhe entregasse o DVD com a cópia das gravações. Ela agradeceu, pediu que não fizessem nenhuma alteração nas gravações originais e saiu. Sua passagem na agência bancária foi mais complexa, tendo que falar com várias pessoas até ter o acesso às imagens. Passou na delegacia para deixar tudo na recepção e, ao olhar para o relógio no painel do carro, viu que já eram para lá das dez.
Teixeira estava dirigindo acima do limite de velocidade, perseguindo um carro cinza. Ela quase podia sentir o vento violento do lado de fora, se chocando contra o metal da viatura, seus dedos brancos apertados no volante. A mente era uma série de comandos com o único objetivo de alcançar aquele carro.
— Você vai querer coxinha de quê?
Ela se virou, notando Pereira ao seu lado. O companheiro estava de uniforme, relaxado no banco como se estivessem indo dar um passeio.
— O quê?
— Quando a gente acabar aqui, tu vai querer coxinha de quê?
— Mas que porra, Pereira, eu sei lá.
Ela desviou de um quatro por quatro que apareceu na rua, entre eles e o carro cinza. Só então notou a sirene ligada e como o som a estava incomodando.
— Merda. — xingou, sentindo a cabeça latejar.
— Vou querer de frango. — Pereira continuou.
Teixeira o ignorou, os olhos presos no carro. Tentava ver o suspeito lá dentro, mas o máximo que havia conseguido era um vislumbre do topo de sua cabeça, o cabelo preto. O som da sirene continuava tentando estourar seus tímpanos, a cada batida de seu coração o som aumentava, até que foi demais, sentia que a cabeça iria estourar como uma bomba. Soltou o volante e apertou as palmas nas orelhas.
Abriu os olhos, confusa. Por meio segundo não sabia onde estava, nem o que estava fazendo, mas o som ainda estava ali, o mesmo do sonho.
— A mamãe já vai. — resmungou, sentando na cama. Parou mais um segundo, sentindo a alma voltar para o corpo, então levantou e deu os dois passos necessários para chegar até o berço. — Que foi, meu filho? A mamãe tá aqui.
Léo chorava a plenos pulmões, a boca aberta tomava metade do seu rosto. Ele chutava o ar como se estivesse lutando por sua vida.
— A mamãe já vai pegar você. – falou, ainda meio adormecida. Encaixou as mãos no corpinho do bebê e sentiu algo melequento em seus dedos. Seus nariz captou o cheiro no mesmo instante.
— Ah não, Léo. Sério? — ela virou o filho de lado e viu que ele estava sujo até o meio das costas.
Helena tirou o bebê do berço, tentando não se sujar ainda mais, e o levou até o banheiro. O menino ainda chorava em sua orelha.
— Eu sei, eu sei. Já passou. — o colocou em pé na tampa do vaso sanitário e tirou seu body, prendendo a respiração. Pensava que um dia iria se acostumar com o cheiro de merda, depois de tantas fraldas trocadas, mas aquele dia ainda não havia chegado.
Depois de tirar toda a roupa do menino, ela o segurou com um braço e ligou o chuveiro, lavando a mão na água fria. Achou o banquinho que deixava ali no banheiro e o puxou com o pé para mais perto, sentou Léo ali.
— Fica quietinho pra mamãe tirar a roupa, certo? Não se mexe. — Helena conseguiu tirar a roupa de dormir com uma mão, enquanto a outra estava meio esticada na direção do filho, pronta para segurar caso ele caísse.
Os dois entraram no chuveiro, a água fria conseguiu fazer milagres ao eliminar o sono de Helena, mas fez Léo voltar a chorar enquanto a mãe o lavava. Ela tentou cantar uma musiquinha, mas não fez muito efeito.
Depois do banho, Helena passou uma toalha ao redor do corpo e embrulhou o filho em outra. Deixou ele na cama enquanto dava a volta no quarto, recolhendo tudo o que ia precisar. Fralda, pomada, roupa...
— Vamos lá, cara, hora de ficar bonitão. — deitou Léo e começou a arrumá-lo, enquanto o bebê mastigava o tubo de pomada. Secou as dobrinhas uma por uma, então pegou a pomada dele. — Vou precisar disso aqui para a sua bunda.
Léo balançou os bracinhos no ar como resposta.
— Cadê a sua avó e sua irmã, aliás? Você viu elas saindo?
Léo a olhou atento, fazendo um barulhinho com os lábios.
— Sério? Um namorado? Mas a Bia não me contou nada! Espera, quem tem namorado é a vovó? Bom, eu não posso fazer muito sobre isso, além de revisar a ficha criminal do sujeito. — Helena colocou a cueca por cima da fralda, então levantou o filho, fazendo ele sentar. Léo agarrou a frente da toalha e puxou. — Ah, sinto muito, cara, mas essa fábrica aqui não produz mais leite. — o bebê resmungou, ameaçando chorar. — Eu sei, eu sei. Mas você já mamou por oito meses! Foram bons tempos, a fonte secou. Agora ajude a mamãe e deixe eu vestir sua blusa, tá? Isso, muito bem, meu amor.
Helena checou a hora no celular e viu que já passava da uma da tarde. Prendeu melhor a toalha ao redor do corpo, colocou Léo no colo e foi procurar algo para comer.
Na cozinha, fuçou as panelas e viu que a mãe havia preparado o almoço. O cheiro do arroz com feijão fez sua boca se encher de água. Roubou um pedaço de carne da panela, soprando quando seus dedos reclamaram. Com uma só mão livre, rodou pela cozinha, pegando o prato e a colher de plástico do bebê e servindo um pouco de purê com carne para ele. Depois fez seu próprio prato e sentou na mesa, revezando as colheradas entre a sua boca e a do filho.
— Mas você viu ele? Tô falando do namorado da sua avó. — ela continuou, enquanto mastigava. Léo estava com a boca cheia de purê, a olhando confuso. — Quando você vai começar a me responder, cara? A mamãe precisa de alguém pra conversar.
Helena ouviu o portão da frente bater, ao mesmo tempo que a casa se enchia com Bia, sua voz e a risada alta. Não levou nem meio minuto para ela entrar na cozinha, com uma sacola em cada mão.
— Mãe, cê não sabe da nova.
— Que nova?
— A Isadora tá namorando. A gente viu ela beijando na frente da casa dela, não foi, vó?
— Que sol é esse, meu Pai Celestial, Deus nos defenda.
Helena viu a mãe entrando, carregando várias sacolas de compras. Colocou tudo na mesa e passou a mão na testa. Dona Conceição era baixinha e roliça, a pele negra sempre brilhando de suor por todas as voltas que dava durante o dia, fazendo compras, resolvendo problemas, levando Bia para escola e Léo para passear. Ela nunca parava, mesmo quando sua perna direita, que a obrigava a mancar, reclamava.
— Eu disse pra senhora me esperar, mãe, eu ia ajudar com as compras.
Conceição fez um gesto aborrecido com a mão.
— Tu tava dormindo mais que um morto. E o Léo também tinha agarrado no sono, então deixei vocês dois aqui.
— A Isadora tá namorando, né, vó? — Bia insistiu.
— Quem já se viu, uma menina daquela, se agarrando em frente de casa. — Conceição balançou a cabeça. — Quantos anos ela tem, Bia?
— Treze. Igual eu.
— Pois você que não invente de andar com namorado, ouviu, Beatriz?
— Eu não, vó.
— Acho bom.
— E a senhora, hein, dona Conceição? — Helena falou, escondendo um sorriso.
— Eu o quê?
— Ouvi dizer que a senhora anda de namoradinho.
— Você me respeite, Maria Helena. Quem foi que te disse isso?
— O Léo.
A cara séria da mãe se desfez em uma risada, e ela se aproximou para pegar o neto.
— Me dá esse fofoquerozinho aqui, termina de comer. — Conceição pegou o bebê no colo e lhe deu um beijo antes de puxar o prato para mais perto, enchendo uma colherada generosa e colocando na boca do menino. Depois ela reparou na filha. — E você ainda tá de toalha?
— Não adianta me vestir pra dar comida pro Léo. — Helena respondeu, mostrando a prova do que dizia: todo o purê grudado no tecido.
— Vai colocar o uniforme de novo? Já?
— Estamos trabalhando em um caso... Complicado.
— Santo Deus, o que foi dessa vez?
Helena olhou para Bia, que mexia nas sacolas das compras, mas sabia bem que as orelhas da filha estavam atentas.
— A senhora assistiu o noticiário hoje?
— Assisti o da manhã, mas não saiu nada. Por quê?
— Que estranho. — Helena jurava que o caso de Ana Clara estaria no jornal local, como destaque. Ela viu a equipe de filmagem lá. — Bia, vai tomar banho pra comer.
— A vó comprou azeitonas. — ela respondeu, ainda mexendo nas sacolas.
— Eu coloco algumas no seu almoço. Agora vai.
Helena esperou que a filha saísse para poder falar.
— Uma menininha foi morta ontem. Encontramos o corpo bem próximo da casa do pai dela.
— Meu Jesus Cristo! — Conceição cobriu a boca com a mão.
— Sim, foi horrível. Estamos investigando pra saber o que aconteceu.
— Quantos anos ela tinha?
— Sete.
— Oh meu Deus.
Helena balançou a cabeça e afastou o prato, seu apetite desaparecendo.
— A senhora cuida deles pra mim? Eu preciso voltar.
— Claro, eu fico. Não se preocupe. Talvez seja melhor não levar a Bia pra aula de karatê.
— Não, mãe, tudo bem. Foi um caso isolado, não é como se o assassino estivesse por aí, procurando outras vítimas.
— E como você sabe?
Ela não sabia, ainda não.
— Se for deixar a senhora mais calma. — deu de ombros e levantou. — Vou me vestir.
No quarto, tirou a toalha e se olhou no espelho por um minuto, observando seu corpo. Ela ainda era jovem, 35 anos, mas dois filhos deixavam suas marcas. Os seios um tanto caídos, algumas estrias na barriga e a cicatriz da cesárea de Léo. Foi inevitável não pensar no ex-marido e em como ele costumava dizer o quanto ela era bonita todos os dias. Na época do namoro, se encontravam na garagem dos pais de Tiago e faziam amor no banco de trás do fiat dele. Ele a olhava como se fosse algo novo e fascinante, mesmo os dois se conhecendo desde criança.
Helena passou as mãos pelo corpo. Deslizou por sua barriga, sentindo um pouco de flacidez, a pele daquela região um tom mais clara que o resto. Continuou distraída até os dedos roçarem os pelos em seu monte de vênus. Subiu, o próprio toque lhe causando uma sensação boa. Tiago havia saído de casa há sete meses e antes disso dividiam a cama mas não se tocavam há muito tempo. Quando o casamento havia começado a desmoronar? Quando ele havia perdido o interesse nela e passou a procurar outras mulheres? Foi ao vê-la inchada e imensa na primeira gravidez? Foi ao procurar por sua antiga namorada e encontrar uma mãe exausta com uma criança agarrada na perna e outra sugando seu seio? Ela não sabia, mas tinha certeza que o caso do marido que havia descoberto não tinha sido o primeiro.
Acabou abraçando os próprios ombros e se encarou, se sentindo feia e acabada. Estudou o cabelo cacheado e só enxergou algo quebradiço e mal cuidado. Mas ela realmente não tinha tempo de cuidar daquilo. Seria capaz de se entregar a um outro relacionamento? A outro homem? A ideia lhe parecia distante, como se ponderasse se iria conhecer a Europa um dia. Era cedo demais para se impor aquilo, não queria saber.
Foi para o banheiro, decidindo tomar outro banho, se sentia grudenta por causa do purê de batatas. Antes de ligar o chuveiro sentiu as primeiras lágrimas. Há muito havia desistido de encontrar o motivo para cada crise de choro. Cansaço, medo, angustia, o trabalho, saudade... Não importava, às vezes achava que chorava por tudo ao mesmo tempo. Como sempre, a mãe e as crianças estavam em casa, então não pode fazer todo o barulho que seu peito apertado exigia. Queria soltar um grito ou dois e xingar Tiago de todo nome que conseguisse lembrar.
Ela o odiava. Odiava por tê-la traído com sabe-se lá quantas mulheres, odiava seu tom hesitante quando ligou para falar com os filhos no primeiro mês, odiava o dinheiro que ele mandava e que era tão necessário e odiava acima de tudo sentir falta dele. Ao lembrar do homem que havia pegado uma mala com suas coisas e a deixado com duas crianças, não conseguia enxergar o rapaz pelo qual havia se apaixonado. Tentou unir os dois em um só, para odiá-lo por inteiro, mas não conseguiu. O Tiago de antes ainda apertava seu peito a ponto de tirar seu ar.
Deus, como era difícil. Ela nunca poderia imaginar o quão difícil seria sem ele, principalmente com as crianças. Quando Tiago resolveu se mudar para Florianópolis, ela precisou pedir ajuda para a mãe, não tinha com quem deixar os filhos quando estava trabalhando, e Helena estava sempre trabalhando. Antes conseguia se livrar da culpa sabendo que os filhos estavam com o pai, agora não tinha mais esse consolo. Sentia culpa por não vê-los crescer e mais culpa por sobrecarregar a mãe.
Quando as lágrimas cederam, ela levantou e ligou o chuveiro, olhando apática para a água que caía. Entrou ali embaixo, apoiou a cabeça na parede e fechou os olhos. Queria esquecer de tudo por um momento, ter a mente em branco. Queria esquecer os problemas, Tiago e o trabalho. Queria esquecer os filhos. Imaginou uma plateia a olhando com desaprovação. Uma mãe que deseja esquecer dos filhos por um momento e relaxar no chuveiro! Que absurdo! Helena sorriu, ainda de olhos fechados, e mostrou o dedo do meio para a parede de azulejos do seu banheiro.
Começou a cantarolar uma música qualquer, se concentrando na letra, a água ao seu redor era tudo o que vinha desejando há tempos. A música acabou e ela começou outra, agora mal movia os lábios, os pensamentos cada vez mais desconexos.
Desligou o chuveiro e se enrolou outra vez na toalha. O quarto de casal a deprimia, ele a fazia lembrar de do ex-marido em cada centímetro. O piso que ele mesmo havia colocado quando ela estava grávida de Léo, a cama deles, a cortina pesada que havia instalado duas semanas antes de ir embora, afirmando que não conseguia dormir com a luz da rua entrando. A verdade era que ele não conseguia mais dormir com ela. Sabia que precisava mudar as coisas de lugar, jogar fora todas aquelas lembranças, mas não tinha tempo nem energia para fazer isso. Na maioria dos dias só se jogava no colchão e apagava completamente quando acabava o expediente e tinha uma folga da maternidade.
Vestiu o uniforme e passou a escova pelo cabelo espesso, vendo a nuvem marrom no reflexo do espelho. Decidiu passar um pouco de maquiagem, para esconder que havia dormido apenas algumas horas. Fez um rabo de cavalo, reorganizou a expressão e deu mais uma olhada em si mesma, para ter certeza que voltara a vestir seu traje de investigadora.
Ela tinha um assassino para encontrar.
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