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Estimado senhor Campos,
Me impressiona o quão longe sua crença na inocência de um homem chegou, mesmo com todas as pedras que me atiraram, permaneceu defendendo meu nome. Sua fé é louvável e nunca poderei mostrar o quanto sou agradecido. Fui envolvido no crime que me levou a alma, fui considerado suspeito, mas desde o primeiro dia consegui ver que já me tinham por culpado.
Fui usado como degrau para que alguns egomaníacos conseguissem seu momento de fama e, não bastasse a imagem de monstro assassino que me pintaram, acrescentaram à isso a figura de um pedófilo. Mancharam minha imagem como ser humano e, mil vezes pior, como pai. Tenho fotos de meus filhos em meu computador, como qualquer um, mas tais fotos foram avaliadas por olhos pecaminosos e enxergaram maldade em uma simples criança brincando. Se outro tipo de material foi encontrado em meio as fotos de minha filha, bom, não serei eu a apontar a manipulação aqui. Queriam um morto, precisaram implantar o veneno.
Em nossos últimos encontros venho demonstrando a ira e o desespero que me têm como companhia constante nesses últimos meses. Tais sentimentos, e muitos outros, vêm me destroçando e devorando por dentro a cada dia que abro meus olhos. Sinto as acusações do povo atravessarem essas paredes cinzas, como uma mão de espinhos que me aperta o coração e aparta o sono. Sei que parte desse ódio também vem de meus antigos queridos, amigos e familiares. Mas não os culpo, juro que não, toda essa gente está contaminada pelo veneno que a mídia destila contra mim. Agora, o que corre em minhas veias sempre que penso na justiça, é ódio puro. A polícia, o instrutor, o fiscal, os advogados e toda essa gente que apenas lhe interessa jogar alguém no buraco, mesmo essa pessoa sendo inocente. Essas eu ansiaria por vê-las queimar, pois o poder divino não falhará em castigá-los por sua conduta mentirosa e manipuladora. Mas sei que esses pensamentos me levarão ao abismo da loucura e da autodestruição e isso é algo que não posso tolerar, pois seria mudar minha essência pacífica.
Após muito pensar e meditar aqui recluso, descobri que o perdão é o caminho que devo tomar. Não pelo bem deles, mas pelo meu. Talvez o senhor e nem ninguém entenda, mas esse é o rumo que preciso tomar, pois além de ser o correto, é o definitivo. Não há volta. Sei que permaneceria aqui pelo resto de meus dias, e não quero voltar a cair em episódios de cólera onde me desconheço por completo. Esses momentos me assustam por demasiado, cheguei a sentir que nunca mais voltaria a ser eu. Quero encontrar meu ponto final com minha própria essência.
Sendo condenado, dentro de muitos anos eu estaria de novo em liberdade, e o senhor ou qualquer outro poderia me imaginar em um bom restaurante, em uma praia ou cercado de minha família, recuperando o tempo perdido. Alguns imaginariam que eu tentaria processar ou até mesmo matar cada um dos participantes desse circo, mas não. Aqui lhe digo o que eu faria ao alcançar a minha liberdade: convidaria todos os envolvidos no processo para um jantar, onde falaríamos sobre esse ano tão conturbado de minha vida. Eu gostaria de ouvir suas explicações mais sinceras, poderia aguentar suas acusações remanescentes, mas algo que eu nunca exigiria seria um pedido de perdão. Pelo contrário, eu ofereceria minhas condolências pelos pensamentos que rondaram a cabeça de todos, imagens absurdas e doentias que não desejo a ninguém. Se estivesse ao meu alcance recolheria cada um desses pensamentos, mas são as próprias pessoas que estão a imaginar um pai fazendo mal a sua filha. O que posso fazer contra isso?
Tudo são fantasias que não se concretarão, não haverá homem algum a ser condenado, nem pena, nem futura liberdade. Meu último caminho me levará até minha menina. Já pensei no como e no onde, só me falta o quando, mas sei que será em breve e, quando essa carta chegar até o senhor, já terá acontecido e eu estarei em júbilo ao lado de minha princesa.
Senhor Campos, a única condenação que mereço é por não ter estado ao lado dela quando mais precisou de mim. Por isso eu queimaria por mil anos, pois mereço o castigo. Isso eu nunca poderei me perdoar até voltar a ver aqueles olhos que me enlouquecem a alma, e que de sua própria boca saia o perdão.
Por isso, senhor Campos, agradeço toda a luta que o senhor travou por mim e, quando souber da minha morte, peço que abra uma garrafa da melhor bebida que dispor, e brinde à mim. Brinde a minha felicidade, pois estarei junto ao meu pequeno anjo, terei recebido a única liberdade a qual anseio. Minha menina precisa de mim onde quer que esteja, e eu preciso dela. Vou encontrá-la.
Ricardo Bosco estava morto.
Teixeira havia terminado de ler a carta que foi direcionada ao advogado com um vazio. Não lamentou minimamente o suicídio do homem, mas aquele final ela não previra.
Ricardo usou a tira de seu roupão para se enforcar no banheiro do presídio. Não estava sob vigilância, não havia tentado suicídio antes, foi fácil. Mesmo que alguém o tivesse visto, o teriam impedido? A maioria concordaria que a saída de tal homem do mundo era uma benção.
Cecília Almeida foi levada a julgamento e inocentada. Os advogados de defesa conseguiram provar que ela não tinha conhecimento do que o marido fazia com a filha, e as provas que Teixeira conseguira comprovaram que ela tampouco participou dos episódios de sedação da menina. Saber que colaborou para a libertação de uma inocente a fez se sentir um pouco melhor, mesmo após ver Guilherme Feliciano ser desassociado do crime.
João Miguel foi internado em uma sede da Fundação Casa. Ele havia admitido e contado com detalhes como e por quê abusava da irmã. Os advogados da família de Cecília ainda lutavam na justiça, tentando enquadrá-lo à Síndrome de João e Maria, mas o fato do menino não ter sido abusado pelo pai e a diferença de cinco anos na idade dos irmãos derrubava a defesa até então. Os Costa Bosco saíram do país sem data de retorno.
Helena tampouco conseguia chegar a uma conclusão, mesmo com o passar dos meses. João Miguel era também uma vítima? Havia descoberto o comportamento sexual do pai com a irmã e repetiu? Ou era um predador sexual em formação? As pesquisas não mostravam que a maioria dos abusadores eram vítimas de abusos na infância ou adolescência? Até onde ia a culpa de um molestador, sendo que ele próprio fazia parte do círculo vicioso? Helena não sabia e estava agradecida que aquelas respostas não dependiam dela.
A última vez que teve notícias de Cecília Almeida soube que ela havia se mudado também. Helena tentava ao máximo não pensar na mulher, e com o passar do tempo, quando o caso foi caindo no esquecimento, se tornou mais fácil. Ainda assim, enquanto sua própria vida corria bem, às vezes se pegava pensando em como estaria aquela mulher que perdera não só um, mas dois filhos.
A lembrança de Ana Clara ainda perturbava sua mente em momentos recorrentes. O caso havia sido finalizado, os culpados receberam seu destino, mas Helena não poderia deixar de pensar que nada daquilo iria devolver a vida àquela menina.
Ana Clara Almeida Bosco acabou se resumindo a apenas mais um nome na lista de vítimas. Haviam milhares de nomes antes do dela e viriam muitos mais depois.
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