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5 de Novembro de 2018
12h48
A chuva despencou sobre o carro assim que entrou no Vale do Porto. Helena ligou o limpador de para-brisas no máximo, mesmo assim precisou se inclinar no volante para tentar enxergar.
Pela segunda vez em um espaço de tempo bem pequeno, sentiu seu coração vacilar ao entrar na rua de casa. Daquela vez não era o carro do ex-marido o culpado, mesmo assim tinha a ver com ele. Bia estava sentada na calçada, levando a chuva forte na cabeça, abraçando as pernas e a cabeça encolhida.
Helena mal parou o carro, enfiou o celular na bota, cobrindo com a barra da calça e pulou para fora, correndo até a filha. Olhou rapidamente para a casa e viu a mãe aflita na janela.
— Bia, por quê você não entrou?! — precisou gritar para ser ouvida por cima do barulho de água.
A menina continuou parada, olhando para a frente. Não respondeu.
— Vem, vamos entrar e trocar de roupa! — esperou, as roupas já estavam pesadas em seu corpo, encharcadas. — Bia?
Nada.
Helena lançou um olhar para a rua, xingando mentalmente o ex-marido, então sentou na calçada, os braços cruzados tentando ignorar o corpo que começava a tremer. Levou alguns minutos, até a filha falar, ainda sem olhar para ela.
— Você não vai trabalhar?
— Não até você entrar.
— Eu não vou entrar.
— Tá certo.
Bia passou a manga da blusa no rosto, tentando interromper o fluxo de água que escorria.
— O delegado vai ficar com raiva de você.
— Eu sei.
Por um instante, nenhuma das duas falou. Helena afastou o cabelo grudado da bochecha da filha.
— Bia, eu acho que ele não vem.
Beatriz virou o rosto para a mãe, se contorcendo em uma careta de angústia e, mesmo com a chuva, Helena soube que ela estava chorando.
— Ele prometeu, mãe. — falou, os ombros tremendo quando largou o choro.
Helena a abraçou, escondendo a cabeça da filha sob seu queixo.
— Eu sei, meu amor.
— Por que ele prometeu que vinha? Por que ele mentiu pra mim?
Helena afastou a filha e a olhou por um momento, avaliando seu rosto. Percebeu que ainda era sua menina, mas que estava crescendo.
— Escuta, eu odeio falar mal do seu pai pra você, mas ele...
— É um filho da puta.
Helena olhou para a filha com os olhos arregalados, mas depois de um segundo começou a rir.
— Bia!
— Mas mãe, ele é! Antes eu era criança, mas agora eu sei.
— Sabe o quê?
— O que ele fez com a gente. — a menina baixou a cabeça, a água escorrendo por seu rosto acabando no lábio para a frente — Ele foi embora e deixou a gente. Ele nem ligou no meu aniversário. Ele esqueceu.
Helena sentia o corpo inteiro gelado, queria mais que tudo entrar, mas se obrigou a não quebrar aquele momento. A chuva estava diminuindo, estava mais fácil conversar. Esfregou as costas da filha. Bia a olhou.
— Quando eu vi o meu pai, eu pensei que ele tinha voltado por minha causa, ele disse que ia me levar com ele. Mas ele só queria brigar com você por causa do seu namorado.
Parte dela queria tirar a tristeza e a decepção de Bia, dizendo que o pai se importava com ela e a amava, mas aquilo seria fazer exatamente o mesmo que Tiago: mentir. A verdade era que nem mesmo quando moravam juntos Tiago era amoroso com os filhos. Helena não sabia o que dizer, mas a própria Bia decidiu o próximo passo.
— Desculpa, mãe.
— Desculpa também.
— Pelo o quê?
— Por ser uma mãe tão... – balançou a cabeça.
— Você disse que ia mudar, que ia falar com o delegado.
— E eu prometo, assim que terminar esse caso.
Bia pegou a mão dela e sorriu um pouco. Helena levantou e ajudou a filha. A menina estava sem jeito por ter ficado tanto tempo sentada e encolhida.
— Vamos entrar?
Bia concordou.
— Graças a Deus, Helena, eu tava vendo a hora dessa menina pegar uma pneumonia! — dona Conceição falou, correndo com duas toalhas em uma mão e Léo no outro braço.
Helena pegou uma das toalhas e secou primeiro o rosto, depois passou pelos ombros e ajudou a filha a se secar um pouco.
— Vai pro banheiro, eu vou depois de você.
Bia não contestou e entrou, deixando um rastro de água no chão.
— Eu vou pegar uns pano. Olha o Léo. — a mãe colocou o bebê no chão, deixando ele de pé, se apoiando no sofá, e se apressou para dentro.
Léo apontou para Helena.
— Mama! — gritou e se soltou, batendo palminhas.
— Oi, meu amorzinho, mamãe pega já você, tá?
Léo deu alguns tapinhas no sofá, enquanto ria. Perdeu o equilíbrio e caiu sentado. Helena deu um pulo para a frente, tentando apará-lo, mas viu que estava bem. Dona Conceição voltou com um rodo e panos.
— E aí, como que tu acalmou a fera? — ela perguntou, secando o piso.
— Eu acho que a ferinha percebeu sozinha que o pai não presta.
— Sério?
— Aham. Ela tá decepcionada, mas — Helena deu de ombros.
— Ela vai ficar bem. Você se criou muito bem sem pai.
Helena fez uma careta. O pai era um alcóolatra que ficava bem violento quando bebia. Morreu em uma briga de bar quando ela tinha sete anos. Lembrava da mãe a mandando dormir mais cedo quando ele chegava bêbado em casa. Também lembrava dos estalos dos tapas que sua mãe levava.
— Espero que ele esteja queimando no...
— Helena. — a mãe a cortou, com um olhar de reprovação. Dona Conceição era religiosa demais para desejar que alguém fosse para o inferno, mesmo o monstro que fez de sua vida algo pior que isso.
O celular tocando a salvou de responder. Helena o tirou da bota, estava um pouco frio, mas não havia molhado. Era o delegado. Não atendeu.
— Cuida, tu vai ficar doente. — a mãe falou, querendo secar a poça debaixo dela.
Helena foi para o quarto tremendo de frio. O celular voltou a tocar, o jogou na cama e tirou a roupa molhada, se enrolando na toalha.
— Mãe, pode ir. — Bia saiu do banheiro, também em uma toalha. — É o delegado, né?
— Sim, ele... — estava fodida. Levaria o esporro de sua vida.
— Pois vai, se veste e corre!
Helena olhou para a filha, procurando algo de acusação ou mágoa, mas Bia parecia apenas preocupada. Correu para o banheiro, ficou dois minutos debaixo da água quente e voltou para o quarto. Estava vazio, mas Bia havia deixado um uniforme limpo e seco na cama para ela. Se vestiu com um sorriso nos lábios.
Teixeira soube o quanto o delegado estava puto quando atravessou a delegacia e viu o olhar de cada companheiro a seguir, como quem vê uma mulher a caminho da forca. Santos deu a volta no balcão da recepção e a acompanhou pelos corredores.
— Onde merda você tava? O delegado já te xingou de tudo e um pouco mais.
— Eu tive um problema com a Bia.
— Ela tá bem?
— Tá, depois eu te conto. O pessoal do laboratório já chegou?
— Tem uns vinte minutos.
— Merda!
— Pelo menos o delegado só vai gritar com você quando eles forem embora.
Santos a deixou em frente a porta do superior. Teixeira bateu e entrou.
— Mil desculpas por fazer vocês esperarem, eu tive um problema pessoal. — falou, apertando a mão dos dois homens sentados. O olhar do delegado poderia abrir um buraco em sua testa. — Perdão. — falou de novo, olhando para ele.
— Como não tínhamos o dia todo, começamos sem você. — o delegado Domingos a encarou por mais um segundo, depois se virou para os homens. — O dr. Nascimento e seu estagiário, Glendes, estavam falando dos recortes que fizeram na roupa da menina.
O homem mais velho, de roupas sociais e óculos quadrados, limpou a garganta para falar.
— Ahn, sim, sim. Fizemos um total de 20 recortes da vestimenta.
— Mas só havia suspeita de sêmen na região do ombro. — Teixeira falou, já em seu papel de investigadora.
— É, sim, mas é sempre bom checar.
— E?
— Deu positivo para a presença de sêmen nos recortes doze e catorze.
— Qual a zona? — Domingos perguntou, olhando para um tablet sobre a mesa.
Teixeira se aproximou e viu uma foto do vestido que Ana Clara usava na noite do crime. A foto estava cheia de setas com numerações. O dr. Nascimento apontou.
— A mancha maior bem aqui, no ombro, número doze. Havia apenas uma gota na gola, número catorze. Isso é... — o homem ergueu as sobrancelhas.
— Isso é relevante? — Teixeira questionou, se apoiando na mesa.
— É estranho que o sêmen tenha sido encontrado de uma forma tão... Limitada.
— O que quer dizer?
Quem respondeu a pergunta da investigadora foi o outro homem, ainda quase um rapaz.
— Entenda que a liberação de fluidos durante um momento de excitação, ainda mais tão intenso a ponto de liberar sêmen, é bastante descontrolada. Não havia presença do material no chão, no corpo da menina ou em outros locais de suas roupas. Encontramos uma pequena quantidade, no ombro dela. Nada mais.
Domingos trocou um olhar com Teixeira, ambos concordando nitidamente com a desconfiança dos profissionais.
— O senhor acha que uma implantação seria mais fácil de resultar nesse quadro? — perguntou Teixeira, sua mente reajustando o cenário de acordo com as novas informações.
— Absolutamente. Se colocaram o sêmen lá, isso explicaria.
— Ou houve contaminação no laboratório de vocês. — Domingos apontou.
Ambos os homens negaram com a cabeça. O mais velho falou:
— Isso é pouco provável, delegado. Tomamos todo o cuidado possível...
— Vocês analisaram os dois casos, na mesma sala, na mesma mesa e com os mesmos materiais? A mesma tesoura?
— Sim, os dois casos foram entregues a mim, portanto analisados no meu laboratório, com meu equipamento.
— Se tivesse havido contaminação, todos os recortes estariam prejudicados, não apenas dois, ainda menos em uma não sequência. Se o DNA do acusado estivesse na tesoura, teria contaminado desde o primeiro recorte. — Glendes comentou.
— Tomamos todo o cuidado possível, delegado. Veja, primeiro limpamos a mesa e os materiais de trabalho com cloro e deixamos agir por um tempo. Usamos papel toalha para secar e depois cobrimos toda a superfície também com papel, onde as evidências vão ser colocadas. Entre cada recorte da evidência, a tesoura é passada no álcool e pelo fogo. Jogamos o papel da mesa fora e voltamos a fazer a limpeza de tudo. A tesoura utilizada é passada pelo fogo novamente. — o homem empurra o óculos que escorregou pelo nariz e fita o delegado. — São vinte amostras, apenas duas apresentaram sêmen, nem mesmo são sequência. Naturalmente é impossível, não há nenhuma forma de fluir sêmen entre duas amostradas separadas.
A sala ficou quieta por um instante. Teixeira via a lógica na questão, e tinha certeza que o delegado também.
— Então, tínhamos duas hipóteses aqui. A primeira falava sobre contaminação no laboratório de vocês, aparentemente essa foi derrubada. — Dr. Nascimento concordou, o delegado continuou. — Nos resta a hipótese dois: alguém colocou o sêmen lá.
Se a primeira hipótese tratava de um acidente, a segunda falava sobre um crime, implantação de provas que acusariam outra pessoa, obviamente para livrar o verdadeiro culpado. Estariam os Costa Bosco por trás disso?
— Se o sêmen foi colocado na roupa da menina para incriminar o Bento, quem fez isso e onde? — se questionou o delegado, claramente estava pensando alto, mesmo assim o dr. Nascimento falou:
— Isso já não podemos dizer. — deu de ombros. — Se não precisar mais da gente...
— Era só isso, obrigado por terem vindo.
Os homens se levantaram e apertaram as mãos. Assim que ficaram sozinhos, Teixeira viu o rosto do delegado mudar de cor.
— Onde diabos você estava, Teixeira?! — gritou, a pele flácida de seu rosto tremendo.
— Delegado, eu sei, peço mil desculpas...
— Você sabe muito bem o quanto esse caso é importante! A mídia já está tirando nossa pele, quer dar mais motivos pra eles?!
— Desde quando o senhor liga para a mídia?
— Desde que ela está tão disposta a colocar a população contra a gente. Teixeira, você é esperta, sabe que nossos empregos podem entrar em risco. Não dediquei vinte anos da minha vida pra ser chutado desse cargo tão perto de me aposentar.
Teixeira pensou em dez coisas para falar, mas achou melhor ficar calada. Deu espaço para o superior se acalmar ou gritar mais com ela, se precisasse. O delegado colocou as mãos na cintura e balançou a cabeça.
— Eu nem sei como dar esporro em você, nunca precisei fazer isso. Vamos só continuar a trabalhar e, se alguém perguntar, diga que eu acabei com você, está bem?
A oficial precisou se esforçar muito para não rir.
— Sim, senhor.
— Vamos, sente aí e me diga o que achou disso tudo.
— O que eles falaram faz sentido, sobre a contaminação.
— Acha que o sêmen foi implantado?
— Acho. Eu posso ir até o laboratório e dar um olhada nas gravações. Se a evidência foi alterada lá dentro...
— Eu já mandei o Pereira cuidar disso, antes mesmo de falar com o dr. Nascimento. Não queria que eles soubessem que íamos dar uma olhada por lá.
— Se alguém lá dentro modificou a evidência, poderia tentar eliminar as gravações. — Teixeira concordou.
— É, mas não eliminaram. Está tudo lá, ninguém mexeu na roupa da menina, não lá dentro do laboratório. Só o dr. Nascimento e o assistente, e eles também não fizeram nada.
— Então onde? — Teixeira puxou uma folha de papel em branco da pilha e escreveu “Casa na árvore”. — A roupa da menina foi com ela para a autopsia — acrescentou “Transporte – Autópsia” — e depois enviada para o laboratório. — continuou com “Transporte – Laboratório” – Se o sêmen foi colocado na própria cena do crime, estamos tão perto de saber quem foi quanto de encontrar o próprio assassino. Não havia DNA na casinha além do de Ana Clara e seu irmão, já que eles iam até lá para brincar. Eliminamos o laboratório, então resta os transportes e o local da autópsia.
— Não acredito que agora vamos desconfiar dos nossos próprios homens. — Domingos resmungou, mas pegou o telefone. — Pereira? Consiga as gravações do sistema interno do IML do dia em que o corpo de Ana Clara Bosco deu entrada lá... Sim, o mesmo serviço que você fez com as imagens do laboratório. Certo, obrigada. — ele desligou. — Nossa última esperança, se o sêmen foi implantado em um dos transportes, impossível descobrir.
Teixeira bateu a ponta da caneta no papel, odiava becos sem saída, e aquele caso estava cheio deles.
— Estamos trabalhando sobre uma hipótese, correndo atrás de imagens que provavelmente não pegaram nada. É tudo tão... — ela largou a caneta, irritada.
— Eu sei. Mas se essa hipótese estiver certa... Quem estaria por trás disso tudo precisa ter dinheiro e colhões para subornar alguém da polícia.
Teixeira não falou, mas o nome Costa Bosco veio imediatamente à sua cabeça, e tinha certeza que o delegado pensou o mesmo. Mas resolveu tocar em outro ponto.
— O sêmen era uma das fortes evidências que determinavam que houve abuso sexual.
— Sim, era a mais forte, aliás. — concordou o delegado.
— Então? Onde ficamos agora?
— Não foi declarado que a vítima havia sofrido abuso sexual, não havia nada conclusivo. Acredito que a situação continua igual.
Em outro caso, Teixeira sabia que Domingos pressionaria a equipe do Dr. Mendes por algo sólido. Ele faria o possível e o impossível para entregar as respostas para os pais da vítima, já que não poderia entregar-lhes a filha, mas tomando em conta que os próprios pais estavam detidos por possível participação no crime...
Os dois viraram a cabeça para a porta quando algumas batidas rápidas surgiram, um segundo depois viram Igor Sousa, o Perito Digital, entrar com o notebook de Ricardo Bosco nas mãos.
— Delegado, consegui.
Domingos ficou de pé.
— Recuperou o que foi apagado?
— Sim, não foi feito exatamente por um profissional e parece ter sido às pressas. Não tiveram todo o cuidado.
— E o que tem aí?
Sousa hesitou por um instante e aquele breve momento foi suficiente para mostrar que mesmo aquele computador trazendo algo importante para a investigação, seria algo que ninguém gostaria de ver.
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