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11 de Setembro de 2018
21h46
Domingos deixou a delegacia a cargo de Santos e foi direto para o funeral da menina Ana Clara. Assistiu toda a cerimônia do último banco, não queria chamar a atenção, estava ali em um ato solidário, não como delegado, mas ainda assim atraiu muitos olhares. Mesmo trabalhando há anos na delegacia do Porto, Domingos não se considerava uma pessoa conhecida. Aquilo havia mudado nos últimos dias. Não havia um único dia em que seu rosto não era reprisado na TV, com a única entrevista que deu sobre o caso, ou as filmagens de relance que a equipe de jornalistas acampada na calçada conseguiam dele entrando ou saindo da delegacia.
Domingos tentou focar em suas orações, mas foi impossível se sentir confortável com todos aqueles olhares sobre si. Ainda assim permaneceu até o final, rezou pela menina e decidiu não ir até o pai da criança, já havia dado seus pêsames antes. Foi um dos primeiros a sair da igreja.
— Alguma novidade, delegado?
Domingos parou a poucos passos de seu carro estacionado e se virou. Não conhecia o homem que havia falado, então estendeu a mão e o cumprimentou.
— Estamos analisando algumas evidências.
— Que evidências? Tem DNA do assassino?
— Desculpe, mas eu não posso dar esse tipo de informação para preservar o caso.
Ele entendia a curiosidade das pessoas, era normal, mas revelar informações sobre um caso em andamento era burrice.
— Não pode falar para preservar o caso ou por que não tem o que falar? — o tom do homem mudou levemente, se tornando irônico. — Vocês não fazem a menor ideia de quem matou a menina, admita.
— Estamos fazendo o nosso trabalho, senhor, acontece que essas coisas levam tempo...
— Tempo! — ele balançou a cabeça. — Aquela família está arruinada, perderam uma filha! Eles não têm tempo. Precisam de justiça! É isso que eles precisam!
Um grupo de curiosos já havia se reunido em frente a igreja. Domingos percebeu a acusação em cada um daqueles rostos.
— Escute, senhor...
— Meu nome é André.
— Senhor André, eu também sou um membro dessa comunidade, eu também estou sentindo dor por aquela pobre criança. Como delegado quero mais do que qualquer um que o responsável seja punido, mas há casos onde se encontra o culpado facilmente e outros que requer um pouco mais de investigação.
O homem se virou para sua plateia e soltou um sorriso de escárnio.
— É claro, delegado. Vamos todos sentar e esperar, temos a vida toda não é, gente? Do jeito que a justiça do Brasil é uma merda, vamos descobrir quem foi quando o caso fizer dez anos.
Domingos hesitou por um segundo, mas percebeu que não havia mais nada para ser dito. Entrou em seu carro, ouvindo que agora todo o grupo de pessoas gritava reclamações e injúrias.
Chegou em casa pouco antes das 22:00. Fechou a porta atrás de si e começou a rotina que mantinha há mais de vinte anos. Tirou os sapatos, sentindo o alívio dos dedos livres. Pegou chaves, distintivo e carteira e deixou tudo na mesinha logo ao lado. Enquanto caminhava para dentro da casa, abriu a cinta que salvava sua coluna das dores insuportáveis, gemendo e se esticando. Pegou sua arma lembrando de quando tinha filhos pequenos e ele sempre descarregava ao passar pela porta. Tinha medo que as crianças atirassem em si mesmas por acidente. Agora seus filhos já tinham suas próprias casas onde cuidavam de suas próprias crianças. Domingo deixou o sentimento de gratidão lhe dominar por um instante, se sentia tão abençoado por ter visto os filhos crescerem, por todos estarem bem.
— Amor? — a voz de Rosália chamou.
— Cheguei, meu bem. — Domingos caminhou até o quarto, encontrando a mulher sentada na cama. — Já tava dormindo?
— Eu tava esperando você. Como foi lá na igreja? Muito triste, né. Oh, meu bom Deus.
Domingos foi até a cômoda e guardou a arma dentro da gaveta, então sentou em seu lado da cama. Sentiu as mãos de Rosália lhe fazerem um carinho nas costas.
— Vá tomar banho, eu esquento a janta.
— Não, eu não vou comer.
— Não vai jantar de novo? Domingos...
Ele se virou e beijou a bochecha da esposa.
— Meu bem, enquanto eu não der justiça praquela criança, eu não vou conseguir viver em paz.
— Como você vai fazer justiça se ficar doente? Domingos, você já não é um mocinho não! Se ficar doente, Deus que não permita, vai dar trabalho pra curar! Vai jantar sim, senhor. — Rosália empurrou a coberta pro lado e levantou, calçando a sandália. — Vai tomar banho e depois venha comer.
Sem esperar que o marido respondesse, ela saiu apressada para a cozinha. Domingos suspirou, sabia que Rosália tinha razão. Ele precisava se alimentar melhor e, principalmente, dormir. Sentia aquela dormência em sua cabeça que conhecia tão bem. Fadiga.
Foi para o banheiro e tomou um bom banho. Ultimamente era a única chuveirada que tomava no dia. Ia para a delegacia às pressas e não voltava a tarde para almoçar. Agradecia que sua sala tinha ar condicionado, se não já teria ganhado o apelido de fedorento na delegacia. Na cozinha, puxou uma das quatro cadeiras e sentou, o prato de sopa de legumes já o esperava ali. Tomou algumas colheradas antes de falar com a esposa, que o esperava sentada do outro lado da mesa.
— Falou com as meninas hoje? Com o Júlio?
— Falei com a Laura e com a Edna, o Júlio não me atendeu. Eu ainda não entendo esse negócio de fuso horário.
Júlio era o filho do meio do casal e estava em um intercâmbio na França, que conseguiu pela faculdade.
— Ele falou que é melhor a gente mandar recado naquele negócio de mensagem que eles usam.
Rosália fez pouco caso.
— A Tatá já tentou me ensinar mil vezes como faz pra mexer nesse negócio, mas me confundo toda. Ah, ela me ligou pra pedir a benção e já veio me xavecar, me chamando de vozinha isso e vozinha aquilo.
Domingos riu.
— E o que ela queria?
— A Edna não deixou ela falar, tomou o celular.
Edna era a filha mais velha deles.
— Depois eu ligo pra ela pra saber.
— Você olhe lá no que ela vai pedir. A Edna tava reclamando esses dias mesmo que a gente mima a Tatá e é verdade.
— Mas o aniversário dela é esse mês.
— É, mas tem o do Arthur mês que vem também, a gente não pode gastar horrores com um e esquecer do outro.
Domingos estava descobrindo que era difícil ser avô de dois netos. Quando tinha apenas a Talita, era mais fácil. Tudo era pra ela, agora ele precisava prestar atenção para não ser injusto.
Terminou sua sopa e agradeceu a esposa por ter obrigado ele a comer, se sentia satisfeito e bem melhor. Rosália foi lavar o prato enquanto ele escovava os dentes. Quando já estavam os dois na cama, abraçados, Domingos perguntou:
— Acho que já estou começando a pensar na aposentadoria.
— Ai, meu velho, ainda faltam uns anos...
— Eu sei.
— Mas por que isso agora? Você ama aquela delegacia mais que ama eu.
— Não é verdade. Mas esse caso da menina me fez ver que o mundo mudou e que essa mudança está chegando no Porto. Não sei se consigo lidar com algo parecido a isso de novo.
Rosália afagou o braço do marido.
— Aguenta sim. Essa é sua vocação. Mas se Deus quiser não vamos passar por algo assim nunca mais.
— Amém, meu amor.
Amém.
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