01. As ''princesas''
Eu sou a sua dançarina particular, eu danço por grana
Farei o que você quiser que eu faça
Tina Turner, Private dancer
A vida é feita de ciclos. Tudo passa: as coisas boas, ruins e até as corriqueiras, incluindo as que parecem nunca ter um término, mas que na realidade têm.
Uma virada de página se deu comigo a partir de um evento específico. Começarei pelo que chamo de início do fim. Fim de muita coisa que eu conhecia. Fim do que já tinha me acostumado. Fim de algo que, ao longo do tempo, havia sido duramente construído e consolidado.
Um belo dia, chamaram-me com certa urgência para comparecer a um lugar específico. Tratava-se do Hospital São Paulo, situado na Vila Clementino — bairro da capital paulista — e correlacionado à Universidade Federal de São Paulo. O local tinha o seu quê de majestoso, apesar de ser um hospital público, mas que não ficava tão atrás dos luxuosos serviços particulares. Era um prédio alto, com mais de quinze andares e cujo interior era bem dividido quanto às alas das especialidades médicas.
Meu dever estava no oitavo andar, onde ficava a sessão correspondente à Ginecologia e Obstetrícia, especificamente em um quarto de internação. Ao entrar, notei o ambiente — que contava com um total de três leitos, algumas poltronas e o que julguei ser um banheiro anexo — praticamente vazio, a não ser por uma moça que ocupava uma das camas.
Analisando-a, era perceptível a sua beleza e jovialidade na forma de imponentes cabelos loiros, olhos azuis e pele clara, mesmo que estivesse vestindo uma daquelas camisolas típicas de pacientes hospitalizados. Também era notável, assim que ali adentrei, a sua feição atenta, desconfiada e até ansiosa.
E não era para menos tal comportamento.
— Estela Gonçalves? — comecei com uma indagação aparentemente boba e inofensiva, mas que, na verdade, seria o gancho necessário para o que estava por vir.
— É até estranho, desde que voltei, se referirem a mim desse jeito... — Ela deu uma risadinha nervosa.
Sem mais delongas, tratei de me apresentar, deixando claro estar a par, ao menos de maneira superficial, a respeito do que havia lhe ocorrido. Também enfatizei que estava ali para ouvi-la e, com isso, ajudá-la da melhor forma possível.
Estela bufou, denotando uma mescla de fadiga e da já manjada ansiedade, e deu início às suas palavras:
— Até agora, não consigo acreditar em como tive sorte. Quer dizer... Passei por tantas coisas, ruins, é claro, mas que resultaram na situação na qual estou. Nem sei por onde começar...
— Do início, se é que me entende.
Tentei não transmitir rispidez. Diante do que aquela mulher tinha vivenciado, não seria de bom-tom, tampouco ético, agir com brutalidade. Quem sabe, conversando com jeitinho, aquele diálogo não poderia ser revelador.
Um novo suspiro escapou dos lábios de Estela, que tornou a se manifestar:
— Então que seja do início, só que esse início engloba acontecimentos que eu mesma não tinha presenciado. O que irei falar também terá, de certa maneira, a participação... delas. Devo isso a elas.
Assenti, compreendendo as entrelinhas de seus dizeres. Em outros termos, Estela, assim como algumas outras garotas, foram vítimas de uma perigosa quadrilha que mexia com nada mais nada menos que... tráfico sexual de pessoas, sobretudo mulheres. Por um milagre do destino, a moça diante de mim havia conseguido fugir, porém, o mesmo não poderia ser afirmado em relação às demais vítimas — naquele momento, ainda sob o jugo dos bandidos.
— Eles são doentes! — Estela disparou. — São obcecados pela Disney e já ouvi rumores de que há alguém entre eles com formação em Literatura, com ênfase nas obras dos autores que inspiraram os contos de fadas mais famosos.
— Eles quem? — perguntei.
— Está aí algo que não sei dizer — ela suspirou. — Havia sim aqueles que ficavam nos vigiando, nos impedindo de fugir e até nos punindo, mas também tinha uma tal de chefia. — Fez uma pausa. — "A chefia está vindo", "A chefia não vai gostar nada disso", eram coisas que ouvíamos referentes a quem julgávamos como o mandachuva de tudo aquilo. Enfim... Saber exatamente quem é essa pessoa, isso se é uma única pessoa mesmo, é uma informação que ficarei devendo. Mas ouvíamos uns rumores que, por mais que não passassem de rumores, faziam sentido.
— Que tipo de rumores?
— Diziam que a chefia tinha um antepassado, um bisavô, eu acho, que foi próximo do Walt Disney em pessoa, o que parece motivo de orgulho. Foi daí que houve essa ideia ardilosa de abrir um bordel em plena cidade de Orlando. O lema dali era "Diversão para as crianças nos parques durante o dia. Diversão para os adultos durante a noite." Nojentos!
Uau! O assunto mal tinha iniciado e informações preciosas — e pesadas, frise-se — já foram dadas. Li em algum lugar que tudo tinha uma séria tendência a virar prostituição ou pornografia, mas constar tal fato em torno de algo que deveria ser lúdico extraía os meus mais sinceros sentimentos de repugnância.
— Fiquei sabendo — pronunciei-me após alguns segundos de torpor —, por conta dos médicos que te atenderam, sobre a sua situação e das outras mulheres. Pode me falar delas?
Estela, em um primeiro momento, somente me encarou. Não sabia o que seu olhar transmitia, pois a expressão fechada em seu semblante não me permitia lê-la de forma acurada. Contudo, ela não se fez de rogada. Sob mais um suspiro, respondeu:
— Ali era um bordel tal qual tantos por aí, com a diferença de que nós, as "princesas", éramos a "atração principal". Até onde sei, esse negócio de trazer mulheres para representar as personagens da Disney começou há mais ou menos uns quatro anos. A cada seis meses, uma garota era atraída para lá e aí começava o inferno.
Mais uma vez, Estela parou. A partir desse instante, seu ar atento deu lugar a outro, mais distante, parecendo que ela não estivesse exatamente ali comigo; talvez, não estivesse mesmo.
— Tiana, da história A Princesa e o Sapo, foi a primeira de nós — ela ia falando. — Antes que me pergunte, não é esse o nome dela. Havia, por incrível que pareça, uma certa, digamos, "liberdade" concedida a nós no prostíbulo. Podíamos falar de qualquer assunto, inclusive sobre os asquerosos que acabaram com as nossas vidas, tanto é que estou passando essas informações todas por causa disso, mas éramos proibidas de nos referirmos umas às outras pelos nossos nomes verdadeiros...
— E por que isso? — indaguei, cortando-a sem querer.
— Pelo lema deles, deu para entender que o bordel é uma Disney de Chernobyl. Quem trabalha no parque em questão tem que manter a magia por lá, o mesmo se aplica àquele lugar nefasto...
Quase emiti um suspiro de indignação, mas recompus-me a tempo, a fim de manter a postura profissional exigida. Estela prosseguia:
— Mas conforme eu ia dizendo, Tiana foi a primeira. Eles, por meio desses aplicativos de encontro casual, a atraíram para um certo local e... a raptaram. Importante também dizer que ela e as próximas meninas, e aqui me incluo, são todas brasileiras. — Um princípio de riso irônico, quase ácido, saiu dos lábios dela, que completou: — Pelo visto, os gringos gostam de mulheres latinas...
Revirei os olhos, não de impaciência, mas de revolta. Estava cada vez mais dificultoso manter a pose. Entretanto, eu era alguém experiente e teria que algo muito além daquilo me abalar de vez.
A partir daí, coisas tenebrosas me foram contadas. Além da semelhança física que as vítimas possuíam com as ditas princesas, o modo que a quadrilha as emboscava também remetia às histórias dessas personagens.
Sendo assim, Tiana, que era uma mulher negra, foi enganada por meio do aplicativo e acabou vendo que o "príncipe", na verdade, era um "sapo".
Mulan, uma moça de traços orientais, teve a vida monitorada, ou melhor, stalkeada, o que fez os marginais descobrirem que ela vivia com um pai velho e doente. Uma promessa falsa de emprego culminou nela indo parar no bordel.
Ariel — ou A Pequena Sereia —, uma ruiva que morava em uma cidade litorânea, tinha o sonho de viajar pelo mundo afora, tornando-se então uma presa fácil.
Branca de Neve, morena e de pele clara, foi literalmente capturada ao passar por um beco vazio e sem ninguém por perto. Os raptores eram sete homens baixinhos e de porte musculoso — uma releitura bem distorcida dos sete anões...
Bela, de A Bela e a Fera, uma mulher de cabelos e olhos castanhos, com faculdade e pós-graduação feitas, além de ser fluente em algumas línguas estrangeiras, recebeu uma proposta — obviamente falsa — de intercâmbio.
Após proferir tudo isso, Estela fez uma nova e súbita pausa, ficando cabisbaixa e aparentando ter imergido em um estado letárgico. Compreendi o porquê dessa não reação dela. Assim, aproximei-me e toquei-a nos ombros. Declarei:
— E aí teve você, não?
Ela ergueu o rosto e foi possível detectar tímidas lágrimas se formando em seus olhos. Sua primeira resposta foi um assentir à minha pergunta, mas logo veio o complemento:
— Jamais iria me esquecer daquela noite. Uma hora, estava numa balada e, na outra..., já naquele inferno na Terra. Puseram algo na minha bebida, o que me fez perder os sentidos. Preciso dizer qual princesa simbolizei?
— A Bela Adormecida — proferi, tentando não transparecer meu atordoamento.
— Também me chamavam de Aurora de vez em quando. Que legal! Eu tinha dois apelidos... — ironizou com uma mistura de melancolia e desdém.
Um minuto de silêncio se fez. Entendia as dores e os traumas ali expostos, porém, não tinha muito tempo. Tornei a questionar:
— E como você escapou de lá?
Estela fez uma dança hesitante com os olhos. Pressenti que viria mais bomba e, por um segundo, queria ter me enganado.
— Ser garota de programa é estar suscetível a muitos riscos — ela respondeu. — Um dia..., acabei engravidando. Tentei esconder, mas nada passava batido naquele lugar, havia escutas nos quartos e era assim que eles nos monitoravam. Ao descobrir a minha gravidez, a chefia ordenou que eu... a interrompesse... Sem muita escolha, tive que aceitar essa imposição deles.
De repente, ela travou, tornando a permanecer naquele silêncio com ares de sepulcro. Insisti:
— E então...?
Estela respirou fundo e prosseguiu:
— Lembra que eu disse que passei por coisas ruins, mas que, ao mesmo tempo, tive sorte? — Anuí em resposta e ela completou: — No dia em que fui fazer aquilo, houve um vazamento de alguma coisa naquela clínica clandestina e um incêndio acabou com o lugar. Foi realmente horrível tentar sair dali e ver todas aquelas pessoas sendo consumidas pelo fogo, inclusive o açougueiro que me atendeu e fez tudo parecendo que estava em um abate de animais... Consegui sair com vida e, percebendo que era a minha grande chance, fugi.
"Meu desespero era tanto que não pensei muito e consegui voltar para o Brasil, me escondendo nas bagagens de um avião. Estava tão afoita que ignorei uma dor aguda que, vira e mexe, me acometia durante aquele voo clandestino. Já estando aqui no país, não demorou para eu passar mal em plena rua e ter sido levada para cá. Recentemente, descobri que o procedimento naquele matadouro foi tão mal feito que ainda havia... pedaços do feto no meu ventre... Foi necessária uma cirurgia de extrema urgência para o meu caso. E estou eu agora te falando tudo isso."
Arregalei levemente os olhos, um tanto em choque com todo o relato. Em tantos anos de carreira, jamais lidei com algo similar. Era um belo jeito de...
— Quando souberam da minha história aqui no hospital, logo começaram a me chamar de forte, que eu era uma muralha, uma força da natureza, mas não me enxergo dessa forma. Sou tão fraca...
— Você é humana — retruquei. — Você é uma sobrevivente, Estela — fiz questão de dar ênfase em seu nome verdadeiro.
— Estela... — ela repetiu com um perceptível brilho no olhar e um discreto meio-sorriso.
— Estela — frisei novamente. — Nunca se esqueça de quem é e do que passou.
— E do que posso fazer para que outras não passem pelo que passei.
Fitei-a com intriga. O que queria dizer com aquilo? Sua réplica respondeu à minha pergunta não verbalizada:
— Está para fazer seis meses que fui levada para lá, o que significa que eles irão voltar a atacar em breve. Aliás, também me sinto insegura, paranoica, achando que eles podem vir atrás de mim...
As palavras dela me envolveram de um modo inesperado. Em um tom de incentivo, afirmei:
— Você sabe de algo então.
— Não posso dizer com toda a certeza, mas ouvia, pelos cantos do prostíbulo, murmúrios de que eles viriam para cá atrás da sua... Cinderela. Para isso, seria organizado um evento, um baile para ser mais exata, com o objetivo de selecionar a mulher que mais chamasse a atenção.
— Estela! — não pude disfarçar a minha exasperação. Aquela garota pode ter sim um envolvimento com um dos casos mais difíceis da minha vida, mas também estava se revelando como uma das melhores testemunhas com quem tive contato. — Sabe me dizer onde eles podem agir? Pelo que entendi do seu depoimento, a chefia atua em muitas partes do Brasil.
Mais um meio-sorriso se fez na face da moça, que não tardou em rebater:
— Muitos daqueles que nos monitoravam falavam essas coisas, contando que nenhuma de nós escaparia daquele inferno. Eu disse que um pouco de sorte estava a meu favor e acho que o mesmo se aplica a você.
Ela estava tão extasiada, embora isso ficasse um tanto escondido dado o ar taciturno que carregava, que nem sequer se reportou a mim de maneira formal. Não liguei: estava lá para exercer o meu trabalho, não para dar carteiradas desnecessárias em quem claramente necessitava da minha ajuda.
— Portanto, tenho uma ideia de onde eles provavelmente irão atacar — ela continuou e, olhando-me fixamente, complementou: — Será aqui, na capital.
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