||_Spannos: Medo e solidão_||
|Pelo lado de fora um Mercedes entrava portão adentro, parecia apagado com a forte chuva, seu modelo transparecia o design do ano. Dentro dele estavam Alfredo Spanno e seu motorista. Várias pastas e papéis decoravam o interior do automóvel. O velho Spanno parecia cansado e ávido por uma cama. Seus cabelos grisalhos e fortes olhos azuis pediam socorro. Ele se olhou no espelho e mais uma vez pensou na possibilidade de parar. Eram mais de trinta anos resolvendo problemas financeiros e de direito dos maiores empresários do Estado. Seu grande papel era renegociar dívidas junto ao Poder público e absolver grandes fraudadores do sistema financeiro. Pensar na aposentadoria era pensar no fim de seu escritório. O velho advogado sabia que existia uma solução: sua única filha, bacharel em direito, poderia substituí-lo, lograr respeito e manter sua valiosa lista de clientes, assim o famoso escritório jamais morreria e seu nome ficaria estampado como de costume nos relatórios burocráticos daquela elite fraudadora presente nas colunas sociais.
O Mercedes parou.
— Doutor Alfredo, chegamos. — Disse o motorista fazendo o velho advogado ressurgir de um sonho acordado. — Fique onde está. Vou pegar um guarda-chuva. A chuva ainda não deu trégua.
— O mês de março sempre nos traz isso! — O motorista sorriu. Alfredo aguardou seu motorista e seu guarda-chuva, correu os olhos pela fachada de sua grande casa e respirou fundo. Sabia que a conversa que teria com a filha não seria nada fácil. Entre as águas e a noite, alguém permanecia imóvel do outro lado da rua, a tempestade tropical parecia calma em seu corpo, o frio pouco comum não incomodava. — Louco. — pensou Alfredo.
O motorista logo trouxe o guarda-chuva, Alfredo saiu do veículo com dificuldade, a idade sempre o pegava de surpresa. Os dois subiram as escadas até a porta principal. O motorista recebeu das mãos tremulas do advogado as chaves.
— Agora é hora de descansar um pouco. O dia foi corrido. — Comentou o motorista, se referindo as inúmeras viagens que os dois fizeram durante o dia.
— Ainda não, tenho sérios problemas para resolver. — Alfredo mantinha a cabeça ereta. — Acredito que é o problema mais difícil do dia. — A porta foi aberta.
— Eu vou indo, Doutor. Tenha uma boa noite. — O motorista entregou as chaves ao patrão.
— Boa noite! — Antes de entrar Alfredo analisou o outro lado da rua mais uma vez. — Jarbas?
O motorista girou o pescoço para atender ao chamado do patrão.
— Posso ajudar em mais alguma coisa?
— Você viu um homem do outro lado da rua quando desceu para abrir minha porta? — O olhar do velho Spanno estava por trás dos ombros de Jarbas.
O motorista acompanhou a vista de Alfredo, deixando alguns pingos rebeldes atingi-lo e sentiu o peso do ambiente.
— Não, senhor. Não vi ninguém ao nosso redor. — Jarbas foi direto e pensou em voltar para o lado do patrão. — O senhor precisa que eu fique?
— Eu poderia jurar que tinha visto um homem alto encostado naquele muro de espelhos do outro lado da rua... Podia jurar... — Alfredo havia sido atingido pela tempestade daquela noite.
— O senhor quer que eu faça alguma coisa? — Sugeriu o motorista. — Posso entrar em contato rapidamente com os seguranças do condomínio.
— Não... Não precisa. — Alfredo deu as costas a Jarbas. — Acho que a idade está me tirando o juízo. Vá pra casa, Jarbas, vá para casa...
Alfredo abriu a grande porta do seu ambiente de descanso respirando fundo.
Ruanna permanecia no andar de baixo, sem compreender os últimos acontecimentos quando Alfredo entrou. O velho carregava um cansaço nas costas, Ruanna analisou cada detalhe da entrada do pai.
— Boa noite, Doutor. — Começou Ruanna.
— Desculpe o atraso Ruanna, tive que terminar uma petição em favor de um importante cliente. — Justificou o velho.
— Estou informada. Problemas com exportação, não era celulose que aqueles containers levavam para a Europa. — replicou a jovem com ironia. — Celulose teria vários benefícios fiscais.
— Bem informada, minha filha... — Alfredo sentou em frente à filha. — Há quantos dias não nos vemos? — A força e o tom de voz de ambos eram idênticos e facilmente poderia se encontrar vários detalhes da personalidade forte que os dois carregavam.
— Uma semana e meia, exatamente. No sinal de trânsito, acho que no centro da cidade. — Ruanna o fitava, analisava cada nova ruga naquele homem tão severo.
— A expansão urbana e seus benefícios. — Ele se ajeitou sobre a poltrona. Ela deixou escapar um sorriso lateral e sentou. — Estamos bem entrosados para uma semana e meia.
— Sem adversidades não existe evolução. Qual o motivo de nossa reunião familiar? — A jornalista se arrumou na cadeira procurando um novo ângulo.
O velho riu.
— Palavra bonita: Familiar!
— Concordo. — Emendou Ruanna deixando escapar outro leve sorriso.
— Cada dia que passa o tempo ganha mais força sobre seu velho pai. Possuo três advogados me auxiliando, mas nenhum tão talentoso quanto minha bela filha. Possuo problemas cardíacos, e como se não bastasse, descobri que fui presenteado com um tumor. — Os olhos dele penetravam os da filha. Ela parecia interessada na conversa. — A biópsia que fiz pela manhã me dará daqui a quinze dias a resposta sobre se o que é ruim pode se tornar ainda pior.
— Câncer? — Ruanna estava incomodada. — Alfredo Spanno? Com câncer?
— Exato. O mal da atualidade. — A voz dele parecia firme em falar sobre algo tão sério.
— Isso é grave... — Ela se importava, ele notou isso.
— Penso há dias que a aposentadoria é a melhor solução, mas penso também no escritório e na fonte que nos alimentou e que nos oferece todo esse luxo.
— Uma cobrança? — Soltou Ruanna.
— Não, apenas reiterando argumentos conhecidos.
— Prossiga. — Pediu a moça.
— Pois não... Trabalhei muito para me formar, consegui e ganhei prestígio, montei aquele que sempre foi meu maior sonho: o escritório mais famoso do Estado. — Alfredo parou um pouco e tentou buscar forças. — Preciso de você para comandar aquilo tudo. Preciso muito. — O tom do velho mudara.
— Concordo sobre a aposentadoria meu pai, mas não posso assumir o escritório. Tenho certeza que não dependemos dele para sobreviver após sua aposentadoria. Temos duas dúzias de imóveis, um belo plano de previdência de mais de seis dígitos, sem falar nos valores de sua aposentadoria que o governo vai pagar. Acho que não precisamos mais dele. – O velho apenas ouvia.
— Mas e o nome que ele carrega? Nosso nome! — Tentava. — Será que o meu legado possui um valor que possa ser expresso em números?
— Você já fez o possível e o impossível, meu pai, seu nome está cravado no direito tributário desta cidade. — Quem possuía o olhar dominante agora era ela. — Chega de vaidade e conheça a Suíça, Budapeste... Buenos Aires talvez.
— Quer dizer que não posso contar com você? —Agora ele parecia frágil e doente.
— Pode. Como filha, parceira... Vou trabalhar mais e manter minhas custas, mas não conte comigo no escritório. — A jovem Spanno tentava pensar como o pai, mas ao se aproximar dessa ideia se afastava de seus sonhos. — Estou gostando muito desse meu novo emprego no canal local e quero seguir assim, pai.
— Então não me aposentarei. Morrerei naquela cadeira em meio aos meus papéis. Espero que isso não acelere meu fim. — Ele não se moveu, e ela pôde sentir toda sua fragilidade.
— Nunca pensei vê-lo tão frágil e dramático. E mais, tão pouco inteligente. — Ruanna sentia muito a situação, sua forma firme era apenas atuação.
— Desculpe, mas pouco inteligente é você, querida. –— A tensão dominou o ar. O tom era outro. — Que troca o nome da família e clientes valiosos por causa desse "empreguinho" na TV e algumas audiências sendo assistente de instituições sociais para defender jovens delinquentes. A sociedade não gasta tempo com isso, muito menos dinheiro.
— E onde meu desejo e minha realização profissional entram nessa história? — O tom da jovem também mudou. — O que adianta ganhar seus milhões e ter sua fama se viverei depressiva, e não realizada? Quero ser feliz, doutor, trabalhar com o que gosto de fazer. Quem pode dizer se posso ou não me tornar famosa seguindo minhas ideias e as coisas que gosto de fazer? — Alfredo permanecia imobilizado. — Vou provar para você doutor...
— Não terá minha ajuda. Quando seu bolso doer, talvez você tenha tempo para pensar na minha proposta. Essas matérias pequenas e pobres não lhe darão retorno, muito menos prestígio. Isso importa sim, você vai ver.
Ruanna levantou.
— Tenho meu emprego e ele pode custear meus desejos. — Alfredo ouvia a filha de baixo para cima agora. — Posso viver sem você. — Ruanna se retirou da sala.
O velho Spanno ficou sozinho.
Ruanna bateu com força a porta do quarto, se jogou na cama. Alguns soluços saíram pelas cobertas. Sentia raiva e pena. A força concedida por seu sangue e suas atitudes a fariam sofrer pelo pai, mas jamais entrar no escritório. Ela sabia que aquilo mudaria radicalmente sua vida e seu convívio com o velho advogado. Ruanna Spanno estava decidida a não entrar nos planos unilaterais de Alfredo.
Lá fora a chuva e os ventos faziam os galhos mais atrevidos baterem com força na janela já danificada. Ruanna teria que distrair-se, parar de pensar naquele assunto, pois caso continuasse daquela forma, não dormiria. A madrugada estendeu-se vagarosa, a chuva não deu espaço para as estrelas que permaneciam melancólicas e doentes, escondidas sobre nuvens escuras e pesadas. Alfredo Spanno deitou e não pregou os olhos um minuto, estava tenso e aborrecido.
Ruanna, em meio à escuridão de seu quarto, sentia o peso do dia e da discussão com o pai, rezou pelo amanhecer e a possibilidade de sair daqueles muros.
Pai e filha compartilhavam duas coisas naquela noite: Solidão e medo. A solidão provava que faltavam mais pessoas naqueles corredores luxuosos, o medo encontrava morada quando os dois lembravam que uma terceira pessoa circulava aquela mansão. A chuva não afastou a solidão, apenas aumentou o medo.
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