• Sobre as memórias da Rua dos Sonhos: Noites de Sangue.
|A noite estava calma e serena a Rua dos Sonhos estava vazia mais uma vez. A Igreja estava fechada e um novo temporal de março parecia se aproximar. As casas enfileiradas dos dois lados abraçavam a praça no centro e poucas luzes ao redor sinalizavam vida dentro daquelas casas antigas e silenciosas. Os ventos sopraram de maneira feroz e levaram muito mais que as flores que se desprenderam e as folhas que enfraqueceram nos últimos dias. As abóbadas e suas silhuetas observavam mais uma noite triste para aquele corredor de morte que mais levava do que trazia sonhos, que parecia transformar pesadelos em realidade. Seria a Rua dos Sonhos a culpada? Ou seria esse conjunto louco de pessoas que estavam por aí procurando desculpas para se desfazer dessa cidade velha cheia de morte?
A janela da fuga bateu forte com os ventos do leste, e sobre o velho piano vertical Steinway modelo 1098 estava uma folha, uma caneta e um revólver Taurus 88 calibre 38 que esbanjava seu alto brilho em Inox. Salvador estava sentado num pequeno banco encostando sua cabeça sobre a peça de madeira à frente. As teclas eram tocadas sem ritmo ou técnica apurada, apenas para fazer algum ruído que transferisse a pressão daquele ambiente ou causasse uma lembrança um pouco menos dolorosa. Algumas notas e alguns rascunhos sobre o papel, o professor de biologia respirava, escrevia, arriscava uma nota qualquer e segurava o revólver. Uma foto de Iris segurando uma flor mais conhecida como ave-do-paraíso, ou Ouro de Mandela estava em uma das mãos do homem que chorava e molhava o retrato.
— Está é uma Strelitzia Reginae. — Dizia Salvador ao notar o interesse de Iris por aquela linda flor de folhas duras com aproximadamente 15 cm e de cor laranja e azul. Iris sorria e Salvador pôde lembrar bem daquele dia de sol em que apresentou aquela beleza tropical à menina que o encantara e a Eron de Menezes 11 anos atrás.
A voz dele ecoava na sala de música da mansão número sete e o professor podia ouvir sua própria voz ser arremessada pelo passado naquelas paredes frias e sujas. As lembranças chegavam, e pouco a pouco Salvador explicava em linhas sua dor e remorso. Entre toques mais pesados, lágrimas e lembranças inesquecíveis, o professor de Iris voltou 11 anos atrás e novamente lembrou o que aconteceu naqueles últimos dias para tentar explicar em poucas palavras como tirou a vida daquela que foi sua paixão mais fugaz.
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2007
|Iris arrumou o cabelo, colocou seu vestido mais bonito e ficou tempo suficiente na praça central à espera de Guilherme. A menina dos cabelos dourados havia se afastado nos últimos meses, se envolvido com outra pessoa e conquistado uma vaga na mais importante universidade de direito da cidade, mas em seu peito faltava a presença daquele que sempre a acompanhou, daquele que tocava violão nas noites tristes e sempre tinha um abraço com gosto de para sempre. A decisão de Íris Almeida em tentar reconstruir sua historia com Guilherme era difícil, pois ela o afastara, e mais tarde, após pensar bastante, Guilherme não aceitou sua proposta de reaproximação e agora ela estava ali, em mais um domingo esperando pela oportunidade de revê-lo e conversar, como nos primeiros encontros, como nos primeiros beijos e como quando fizeram amor pela primeira vez.
Primeiro os minutos pareceram horas e a ansiedade na menina aumentava, logo depois as horas pareceram dias. Guilherme não apareceu. A missa acabou, as pessoas se apressaram para sair com medo dos trovões que rasgavam os céus. Iris de Almeida sentou várias vezes e se levantou do pequeno banco central e seu grande amor não apareceu. Não importava a gravidez recém-descoberta, ou o fato dela mesmo não saber quem seria o pai de seu bebê, Iris seguiria com Guilherme Guilhar e venceria todas essas batalhas.
Uma mensagem de texto chegou no celular Nokia que carregava.
"Precisamos conversar, não vou viver minha vida inteira em dúvidas quanto à nossa história". — O numero de Salvador não estava salvo no celular, mas Íris o tinha decorado.
Iris leu com cuidado e apenas ignorou mais uma vez. Aquela era uma das mais de uma dúzia de mensagens que o professor de biologia a enviou no decorrer do dia. A última conversa dos dois havia sido perturbadora, Salvador não aceitava o fim, e quando ouviu dos lábios da menina que o motivo era a possível reaproximação com Guilherme, o professor de biologia enlouqueceu.
A chuva começou a cair em linhas finas, Iris queria dormir com Guilherme, queria poder falar do bebê e tentar reconstruir alguns planos. A menina sentia remorsos pela traição e buscava o perdão, mas ela sabia da dor que causaria e que naquele jogo onde várias pessoas estavam envolvidas, alguém teria que sofrer e pagar pelos seus erros. Iris fez muita gente chorar, e sabia que ainda faria muitas outras perderem a noite. A luz da casa de Guilherme foi apagada e ela não teve coragem de ir até lá, teria que dormir sozinha já que seus avós haviam viajado para o interior. A última tentativa foi enviar uma mensagem a Guilherme, sua última mensagem.
"Essa rua tá tão fria hoje e a janela da fuga não seria necessária, pois meus avós viajaram. Eu vou te esperar e, se eu dormir, vou te encontrar nos meus sonhos. Tenho tanta coisa pra dizer". — Iris.
A menina dos cabelos dourados ficou ali por mais algum tempo, perdendo a vista do outro lado da Rua dos Sonhos e, em poucos minutos, ela se sentia mais sozinha do que nunca. Iris deixou escapar um suspiro e decidiu que queria pelo menos a oportunidade de dizer toda a verdade e se afastar daquele peso que trazia consigo nos últimos dias.
Entre as árvores no centro da praça, um ruído ecoou em meio aos ventos, a chuva fina não tirou Iris do seu posto de espera, mas ela sentiu que não estava sozinha. Os pelos dos braços levantaram e ela tentou acertar de onde aqueles passos vinham. A garota levantou olhando ao redor e não conseguiu ver ninguém, uma sombra se escondeu atrás de uma das arvores que balançava.
— Quem está aí? — Perguntou a menina sentindo seu coração bater em seu pescoço. — Outro passo foi dado e Eron de Menezes apareceu sem olhar nos olhos de Iris. — Só podia ser você.
Eron se manteve em silêncio. Os cabelos negros do jovem estavam molhados e cobriam seu rosto.
— Só podia ser você... — Disse Iris levantando. — Sei que me segue por esses dias e sei que você me viu com nosso professor. Sabe, Eron, eu antes tinha pena de você, agora tenho medo. Passei minha juventude vendo você bisbilhotar minha vida e a de Guilherme.
— Você espera um bebê... — Disse Eron finalmente. — Eu a vi enjoando no ônibus duas vezes e sei que você foi até uma farmácia comprar um teste.
— É um pervertido mesmo. — Ela estava perplexa. — Saiba que nunca serei sua. Fomos vizinhos esse tempo todo e talvez se você agisse normalmente, nós fossemos amigos, afinal Guilherme gasta o tempo dele com você.
— Você enganou todo mundo.
— E me seguir como um louco era a solução? — Perguntou ela enquanto olhava o tempo fechar mais uma vez.
— Não era, mas eu precisava. Você feriu muita gente.
— Eu sei disso. — Ela se aproximou do rapaz e tocou seu rosto. — Estou disposta a consertar os erros cometidos e acho que tenho esse direito. Guilherme vai saber de tudo e vai me perdoar. Ele me ama e eu o amo.
— Mesmo que isso me mate todo dia um pouco, mesmo que a felicidade de vocês me leve a deixar de viver, vou torcer por vocês.
— Queria acreditar. — Disse ela.
— Mas... — Continuou ele. — eu nunca vou deixar de acreditar que essa felicidade poderia ser minha e que um dia eu posso viver tudo isso que é preparado para vocês. No momento certo eu tentarei quantas vezes for possível. — Eron de Menezes parou por um instante e continuou. — Eu a segui por achar que vocês não mereciam mais sofrer. Nem você, nem Guilherme mereciam mais sofrer. Acho que Deus vai perdoar os dois.
— Os dois? — Ela se afastou.
— É... Os dois. — Vocês dois fizeram muita gente chorar esse tempo todo. — Eron levantou os cabelos molhados que cobriam o rosto e Iris pôde ver as lágrimas que escorriam do rosto do rapaz e se misturavam aos primeiros pingos daquela chuva fina.
Iris saiu de perto do rapaz ao sentir algo ruim. Atravessou a Rua dos Sonhos carregando o peso daquele olhar. Eron permaneceu ali parado acompanhando os últimos passos da menina. Quando a chuva aumentou, Eron encontrou o celular de Iris sobre o banco da praça, ele o recolheu e viu uma mensagem de Guilherme perguntando se ela ainda estava acordada.
Eron guardou o celular no bolso e retornou para sua casa em prantos.
Guilherme e Iris nunca iriam se encontrar, o último adeus nunca existiria.
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|Salvador morava em um pequeno apartamento a 30 minutos da Rua dos Sonhos. O domingo durou uma eternidade, ele precisava ver a jovem de qualquer jeito, pois dentro dele existia um vazio que nada conseguiria preencher. O cheiro dela ainda o acompanhava, a voz parecia sussurrar quando ele estava em meio ao barulho e os planos não poderiam ser desfeitos. O desejo consumia o corpo do professor que se masturbava entre lembranças daquele corpo nu que possuíra por tantas vezes. Ele tentou ligar, mandou mensagens e não obteve resposta ou qualquer desculpa para aquele afastamento repentino. Naquela altura não importava mais o que os outros iriam dizer, nem muito menos o que aquela situação poderia interferir em seu trabalho como professor.
Salvador tomou alguns calmantes, queria dormir, esquecer aqueles dias e tentar tirar a menina da Rua dos Sonhos da cabeça. — Impossível. — e quando a noite despontou, nem a chuva poderia impedir um encontro dos dois. Salvador colocou uma capa amarela e se enrolou com um blusão de linho, colocou um jeans surrado e correu para buscar respostas de Iris Almeida.
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|Iris tocou alguma coisa dos Guns no velho Steinway e mais uma vez chorou em despedida. O tempo passou e ela esperava por Guilherme, por uma chegada sem avisos, foi quando se deu conta que não estava mais com seu celular, então conseguiu lembrar que a última vez que o viu ainda estava na praça central.
— Eron... — Pensou ela ao bater com as duas mãos nas teclas.
A menina dos cabelos dourados usava um vestido azul com um pequeno laço no ombro esquerdo, os cabelos estavam soltos e ajustavam seus ombros largos com covas perfeitas. Iris de Almeida estava descalça e a maquiagem leve estava borrando graças às lágrimas daquela noite chuvosa e os primeiros pingos que recebeu enquanto conversava com Eron de Menezes. A mansão número sete estava vazia e solitária, os móveis antigos deixavam o ambiente ainda mais morno apesar do frio. Os minutos passaram e Iris começou a desistir com a chegada de Guilherme. talvez fosse melhor assim e quem sabe o tempo apagasse cada detalhe daqueles dias. A menina subiu as escadas sabendo que era responsável por todos os atos, que antes de tentar procurar respostas em Deus, deveria assumir para si mesmo que tudo foi obra dos seus desejos. Um dia talvez a menina se perdoasse. Íris entrou em seu quarto, abriu a janela e seu rosto sentiu a água que o vento frio trazia, ela olhou para praça e passou a observar cada detalhe daquela rua, cada lembrança, e quando a esperança em ter pelo menos mais uma vez o amor da sua vida entrando pela janela da fuga perdeu força, a menina deitou e preferiu apenas chorar.
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|A janela da fuga foi aberta com força, as suas duas partes bateram na parede causando um forte barulho que fez Iris acordar no andar de cima. — É ele... — Pensou ela esfregando os olhos e arrumando o vestido. — Ela sorriu, tocou sua barriga e pensou que poderia ter sua redenção. Naquela noite pelo menos a verdade seria dita, e pelo menos a paz na consciência ela teria. A menina levantou o mais rápido que pôde em direção a sua visita noturna.
Os pés descalços entraram pela sala de música, o corpo molhado deixou rastos por onde andou e agora tudo seria mais fácil, pois os dois teriam mais tempo para discutir. Aquela noite seria deles e de mais ninguém, Iris deveria ceder, aquela era a última chance para os dois e aquela entrada por aquela janela naquela noite definiria o destino de várias pessoas. A visita noturna avançou pelo corredor e subiu as escadas, Iris saía de seu quarto quando deu de frente com a pessoa que levaria a sua vida e do seu bebê.
— Salvador? — Iris deixou escapar toda a surpresa e insatisfação com a visita.
— Meu amor... — Falou o homem tentando abraçá-la. Iris se afastou. — O que houve? Diga algo. Estou há dois dias sem dormir, minha princesa.
— Foi um erro, professor, nosso caso foi um erro. — Iris falava com calma sentindo todo o peso da situação e a feição transtornada do homem a sua frente. — Estou tentando rever tudo que vivemos nesses meses, e não vou negar que sempre penso que cometemos um erro.
— Erro? — Salvador tentou rir. — Erro ter amado como nunca amei?
— Mas o amor precisa de duas pessoas. — Ao ouvir essas palavras Salvador fechou o punho e socou com toda força uma foto da família de Íris que estava na parede. O quadro se partiu e caiu no chão. — Calma. Tudo vai ficar bem.
Salvador agarrou Iris e a abraçou com força. Ela tentou sair dentre os braços fortes do professor, mas não conseguiu.
— Quero seu beijo, seu corpo. — Disse ele enquanto beijava o pescoço da menina e tirava uma das alças do seu vestido.
— Me largue, por favor! — Gritou ela. Salvador a empurrou com força no chão. Iris caiu com as mãos sobre o vidro do porta-retratos de sua família.
— Seu grosso! Seu louco! — Gritava ela ao ver o sangue escorrer de sua mão. Salvador tentou levantá-la, mas ela foi mais rápida e correu pelas escadas aos berros pedindo socorro. A chuva abafava cada grito.
Salvador sentiu a pressão do momento; o homem estava perdido, suas ações foram desproporcionais e a razão o levou a crer que tudo estava perdido. O professor correu atrás da garota e a encontrou com medo, chorando e encostada a uma grande mesa de madeira que ficava na cozinha da grande casa.
— Me perdoe. — Dizia ele em lágrimas.
— Se afaste de mim, por favor, se afaste de mim. — Pedia ela fechando os olhos com força, deixando as lágrimas escorrerem. — Você me machucou! — A moça mostrou as mãos que sangravam muito.
— Eu te amo! Só quero ajustar as coisas. — Salvador deu dois passos largos e mais uma vez segurou a menina em seus braços. — Me perdoa e só lembre dos momentos bons.
O professor soluçava aos ouvidos da menina.
— Eu não o amo. Tudo que vivemos foi um erro. — Disse ela com calma. — Eu amo Guilherme.
O homem em desespero desmoronou com aquelas palavras.
— Mas você o traiu comigo, você não pode amá-lo...
— Ter você e ainda assim amar Guilherme é a grande prova que eu precisava para nunca mais querer perdê-lo. Eu não amo você. O amor é par, professor.
Essas foram as últimas palavras de Iris Almeida. Salvador, sem largar o corpo juvenil do seu grande amor, avançou com umas das mãos e pegou uma faca que estava sobre um suporte de madeira junto a tantas outras. Sem pensar, levado pela emoção e pelas palavras da jovem, ele a esfaqueou três vezes antes de ver o corpo da menina ao chão.
Ele a observou agonizar.
— Como ela é linda. — Pensou ele enquanto seus pés eram banhados de sangue.
Tudo estava perdido e consumado, corpo e vida. Salvador sabia que poderia ter paz e não dividiria Íris com mais ninguém.
O professor sentou vendo os últimos segundos da menina, pensou com calma e sabia que tinha tempo e conhecimento para apagar toda aquela história.
A casa número sete deveria, mas não estava vazia. Suas luzes em diversos cômodos estavam acessas e lá dentro um rio de sangue escorria, as velhas paredes estavam manchadas de sangue numa faixa de mais de dez metros, pequenas mãos torturadas riscavam com aquele líquido vermelho o primeiro andar do imóvel. No trajeto obscuro e cruel daqueles sinais, tudo estava revirado, levando à ideia de uma luta corporal e uma fuga sem sucesso. O cheiro forte de sangue se misturava ao das primeiras chuvas de verão e ao tempo de morte. Entre dor e agonia a vítima desaparecera entre gritos que de alguma forma permaneceriam por ali. Aos poucos, as luzes foram sendo desligadas, uma a uma; as portas rangiam calmamente de cima para baixo e em poucos minutos a casa voltou a dormir. Ninguém viu nada, muito menos ouviu. O ato criminoso correu daquela casa e caiu nos noticiários, levando a "Rua dos Sonhos" às manchetes nacionais.
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2018
|Salvador escrevia com a mão trêmula e cada nova linha era acompanhada de um rio de lágrimas, pois o grande amor de sua vida o levava em memórias que traziam dor e, ao mesmo tempo, encantavam aquela vida que já não tinha mais sentido. A noite correu na Rua dos Sonhos, Salvador parava em suas viagens dentro daquela casa e visitava aqueles corredores e cômodos, observando os sorrisos constantes e gemidos de prazer quando penetrava sua aluna, mas a escuridão logo surgia de novo quando ele se deparava com a aquela bagunça e o cheiro de morte da casa sem vida e revirada.
— Três facadas no abdômen. — pensava ele ao voltar correndo pela segunda vez para terminar sua carta de desespero.
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|O Audi de Ruanna deixou Guilherme na Rua dos Sonhos, o professor precisava dormir, pois Beatriz precisaria dele no outro dia. As últimas noites foram pesadas para o jovem Guilhar, que sabia o quanto deveria ser forte dessa vez, pelo menos mais essa vez. As noites costumeiras levaram Ruanna e Clarice a subirem o declive principal, um mandato de prisão provisória foi expedido contra Salvador, as polícias civil e militar corriam pela cidade atrás do professor de biologia, principal suspeito pelo desaparecimento e morte de Iris Almeida. Os jornais locais já trabalhavam com algumas entrevistas, Guilherme recebera nas últimas horas mais de meia dúzia de ligações e as recusava. Ruanna tinha uma reunião com a cúpula nacional do canal que atuava e assim a Rua dos Sonhos estaria outra vez nas manchetes dos jornais e telejornais, mas dessa vez o capítulo final mostraria a cassada pelo professor e esconderia o massacre contra a imagem de Eron de Menezes anos atrás.
O silêncio reinava naquela noite calma de gritos ausentes. Os ventos estavam escassos quando Guilherme ouviu uma nota no piano. O jovem ficou parado e correu a vista de onde estava até as abóbadas das janelas da mansão número sete. — Nenhum outro ruído. — O jovem Guilhar girou o corpo e observou a casa de Eron. Ninguém mais estava disposto a encontrar aquela noite e mais uma vez Guilherme parecia ser o único habitante daquele lugar.
— Outra nota no piano. — A atenção de Guilherme foi chamada outra vez e enquanto corpo e mente se preparavam para entrar na mansão, uma imagem ao longe, na escadaria da igreja de Nossa Senhora da Conceição, chamou a atenção do rapaz.
Eron estava sentado nos últimos degraus com os braços cruzados sobre o joelho, estava atento aos movimentos do amigo de outrora e parecia prever o que aconteceria. Guilherme, pela primeira vez sentiu-se bem ao rever o amigo, queria desculpar-se por todas as conclusões precipitadas, mas sabia que não poderia mais. O resto das lembranças trouxeram Eron de volta para tentar ajustar os erros cometidos no passado. O pervertido da Rua dos Sonhos não foi nada mais que uma pessoa que passou por ali e tinha mais amor do que os que se propuseram e expeliam palavras sobre o amar.
Guilherme ficou feliz em ver o amigo que carregava consigo uma "Ave-do-Paraíso" na mão direita. O jovem Guilhar sabia que nada poderia explicar o tamanho do amor de Eron por aquela rua e o que o trouxe de volta depois de tanta dor, então agradecer era a única coisa a se fazer.
Guilherme levantou a mão acenando em direção à imagem de Eron, que retribuiu levantando a flor que carregava. Quando Guilherme piscou os olhos, seu antigo amigo já não estava mais nos degraus da igreja.
— mais dois toques no piano. — sem pensar duas vezes, o jovem Guilhar retirou as correntes enferrujadas e entrou na velha casa outra vez. A janela da fuga era o meio de entrada convencional.
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|Quando Guilherme pulou a janela e apoiou o corpo sobre os pés, o brilho do Taurus 88 que Salvador carregava já era refletido mesmo com a baixa luz da sala de música.
Os dois homens ficaram calados por um bom tempo, tempo suficiente para cada um viajar sobre os danos que um causou ao outro durante longos anos. Guilherme não moveu um dedo sequer enquanto Salvador segurava firme a arma, deixando sobre o piano a caneta com a qual escrevia sua carta.
Salvador começou a chorar.
— O que você fez com nossas vidas? — Começou Guilherme.
— Ela queria aprender Biologia e química e eu a tocar It's All Right no piano. Acho que tínhamos o que o outro queria. — Salvador enxugou às lagrimas com o punho que segurava a arma calibre 38. — Eu juro que era essa a intenção.
—Você destruiu a vida de todos que moravam nessa rua e corriam por aqueles corredores.
— Tudo vai ficar bem, tudo vai ficar bem... — Repetia Salvador olhando para as paredes. — Eu morri naquele dia também. Todos nós morremos.
— Mas você ficou aqui para ter outra chance. — Guilherme tentou um passo a frente e encostou-se ao piano. — Acabou, Salvador. Agora chegamos ao pagamento.
— Eu a amei. Amei de verdade. — Continuou Salvador.
— Você a matou, não foi?
— Acho que cometi o suicídio quando vi o corpo dela sem vida naquela cozinha e a coloquei num saco escuro. Eu a beijei dezenas de vezes, ela estava sem vida. — Salvador deu um passo para trás e olhou calmamente a carta sobre o piano. — Tive que viver com isso esse tempo todo, mas sempre sabendo que vocês dois nunca tinham se despedido... Então ela foi minha carne até o último instante.
— Ela não o amava... Creio que ela se arrependeu. — O jovem Guilhar podia sentir o corpo do outro lado do piano que tremia. — As investigações e alguns desenhos de Eron levam a crer que ela estava grávida.
Salvador ficou perplexo.
— Precisamos acabar com isso... Precisamos saber onde está o corpo, pois talvez uma perícia nos diga se ela realmente estava grávida. A família de Iris merece velar o corpo dela de forma digna.
— Quem seria o pai? — Salvador arranhava os dentes enquanto apontava a arma para Guilherme.
— Talvez só o corpo desaparecido dela possa nos dar essa infor... — Antes que pudesse terminar a frase, Guilherme ouviu a arma ser disparada em sua direção. O cheiro de pólvora se misturou ao cheiro de mofo do lugar.
Salvador estava desequilibrado, chorava como nunca e desejou sair dali o mais depressa possível.
— Eu... eu poderia matá-lo... — Guilherme estava paralisado ao lado do piano, o tiro dado por Salvador passou a centímetros do seu ombro esquerdo. — Mas não quero ter essa dúvida tirada. Ela foi minha e esteve em minha mente esse tempo todo. Às vezes é melhor a dúvida, acho que dói menos.
— Dúvida não traz paz.
Outro tiro.
Dessa vez, certeiro, abaixo do queixo. O corpo caiu sobre o piano acionando as teclas que gritaram e deixaram escapar um som inesquecível. Pedaços do crânio de Salvador estavam por toda a parte. Guilherme apenas respirou fundo e se aproximou daquele homem que levou tudo que ele tinha, inclusive esperança.
Salvador preferiu desistir e se matou.
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|As vans dos canais de TV estavam por toda a parte, os moradores que não abandonaram suas casas e os moradores das ruas vizinhas se espremiam em frente à mansão número sete, alguns deles estavam ali pela segunda vez e relatavam aos outros os acontecimentos de anos atrás. A polícia havia trazido vários investigadores e uma psicóloga para acompanhar o caso, os trabalhos durariam a noite toda e Guilherme estava sendo ouvido por César e seus auxiliares, Clarice e Ruanna estavam ao lado do rapaz que se mantinha calmo.
— Você já leu a carta, não leu? — Perguntou César.
— Sim, sim. Foi a primeira coisa que fiz logo após ligar para a emergência. — Enquanto explicava, Guilherme olhava para as fotos que eram tiradas do corpo de Salvador. — Acho que é uma confissão detalhada do romance que eles tiveram.
— Isso mesmo. — Completou César pegando a carta da mão de um de seus auxiliares. — Continuamos sem um corpo.
— Mas dessa vez temos um criminoso assumido. — Se meteu Ruanna.
— Um criminoso que se matou. A sociedade quer um culpado não como informação, mas para vê-lo pagar de alguma forma. — César sentou sobre o banco do piano. — Nosso caso é incompleto. É frustrante. Não temos um criminoso para prender, não temos um acusado injustamente para pedir desculpas e não temos um corpo para enterrar.
— E o que temos, César? — Perguntou Clarice.
— Temos um amante que não aceitou ser rejeitado que se matou. Temos um jovem que, por amar demais, se envolveu nessa história e foi acusado, massacrado pela imprensa e pelos companheiros de cela. Resolveu se matar também. — Clarice olhou atentamente para as conclusões de César. — Essa Íris de Almeida enlouqueceu esses homens?
— Você inclui Eron de Menezes? — Perguntou Clarice.
— Sim... Ele também.
— Eron nunca amou Iris de Almeida. — Clarice se aproximou de Ruanna e segurou em seu ombro.
— Como não? — Disse Guilherme torcendo o pescoço.
— Eron era apaixonado por você, Guilherme. — Clarice deixou escapar uma lágrima. Todos ficaram sem reação. — Digo isso por que quando não pude ter o amor dele, fui sua amiga e confidente. Todo o suporte que dei aqui foi porque prometi pra mim mesma que um dia provaria a inocência do "Pervertido da Rua dos Sonhos", o grande amor da minha vida... Acho que cumpri minha missão.
— Que história... — Ruanna falou baixinho, mas todos ao redor puderam ouvir.
— Minha parte foi feita, Eron não tem culpa e o Estado deve desculpas a ele. — Clarice pegou sua bolsa e a colocou no ombro. — Quanto ao corpo de Iris ou um julgamento sobre o monstro que Salvador foi, eu não posso fazer nada. Eu estou leve e realizada. Acho que Eron agora pode descansar em paz. A admiração de Eron em relação a Iris estava em tudo que ela tinha e ele não podia ter do afeto de Guilherme, então ele a idealizou e a desenhou em mais de 100 trabalhos feitos à mão.
Clarice saiu sem se despedir, apenas olhou profundamente para Guilherme como se o culpasse de algo que o destino causou. Dentro dos olhos da mulher que saiu às pressas, Guilherme pode ver uma dor nunca reconhecida e, mais uma vez, refletiu sobre as dores que todos possuímos e guardamos bem trancadas no coração. — Vivemos sufocados. Eron me amava. — Pensou o jovem Guilhar ao olhar pela janela da fuga de dentro da sala de música e ver o primeiro andar da casa de Eron do outro lado da Rua dos Sonhos.
Quando o silencio dominava tudo e todos, César levantou.
— Então é isso... Acho que você merece incluir em seus trabalhos essa carta e essa foto. — César estendeu as provas à Ruanna Spanno, a jovem as pegou e olhou para Guilherme que teve sua atenção chamada.
— Foto? — Guilherme se aproximou de Ruanna.
— Sim... Essa foto estava aqui no chão. — Falou César ao dar as costas.
Guilherme segurou firme a foto de Íris, observou a beleza da menina em cada detalhe e lembrou-se daquele dia.
— É uma linda flor. — Ruanna se aproximou dos ombros largos de Guilherme.
— É uma ave-do-paraíso. — Na foto Íris segurava uma delas e estampava um sorriso encantador. Atrás da menina, encostado sobre as pedras estava Eron de Menezes na entrada da gruta. — Todos que viveram aqui nessa rua e nos corredores daquela escola têm um laço muito forte com essa flor.
— Explique isso... — Disse César ao retirar a foto das mãos de Guilherme.
— Fomos apresentados a ela em uma excursão no fim do nosso curso. — Ruanna trocou olhares com César.
— Esse caso, sem dúvida, foi o mais interessante que peguei na vida. — Começou César. — Não pelo crime passional, ou pelas tragédias que se sucederam, mas pela participação de uma força maior que nenhum de nós vai conseguir explicar em inquéritos ou documentários. Acho que morreremos sem entender o conjunto de atos desse rapaz. — César levantou a foto para todos da sala e com o seu indicador apontou para figura de Eron de Menezes e seu olhar perdido para dentro das grutas.
César girou a foto aos olhos das pessoas e peritos que ali estavam. As pessoas não entenderam.
— Quero o máximo de equipes possíveis às sete horas da manhã. Quero um geólogo à disposição. Vamos à gruta encontrar um corpo desaparecido ha 11 anos. — Ruanna deixou escapar um sorriso. — E você, doutora Ruanna, e você, professor, estão convidados.
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