||_Beatriz decide desistir_||
|Bia não dormiu, lembrou-se de cada rosto e cada palavra suja que aquela escola jogou contra ela. Os pôsteres das bandas estavam rasgados no canto da parede, ela tremia e sentia em sua vagina uma dor que corria de dentro do coração. A menina daquela escola pública tinha suas imagens circulando por toda a cidade, seu corpo nu semiacordado tinha uma boca sem força e os olhos revirados. Pelo menos três pênis diferentes apareciam nas imagens, sua vagina depilada estava tão sonolenta quanto ela em sussurros.
Eles riram da noite no motel.
A escola estava em gargalhada.
A cidade toda conhecia a tragédia de Bia, alguns se espantaram, outros se excitavam e compartilhar nas redes sociais era quase que uma unanimidade. Na escuridão daquele quarto, ela lembrou que quis o abraço do seu amor. Guilherme a ignorou quando todos a insultavam, ela não tinha mais razões para seguir. O plano falhou, a vida falhou. Ser veterinária na universidade pública seria impossível, fazer um intercâmbio e conhecer o Canadá não era mais tangível. Tudo estava perdido.
O vazio aumentava com o choro enlouquecido enquanto Bia escrevia uma pequena carta. Uma carta simples e objetiva a Guilherme, seu grande amor. As mãos tremiam, e uma voz abatida tentava acompanhar algumas palavras, sem sucesso. Bia levantou com o papel na mão e o enrolou sobre a camisa que seu professor a deu quando foi o visitar e pedir ajuda, junto deixou uma chave. Aquele amor e aquelas lembranças ficariam com Guilherme para sempre, além de um pedido de desculpas. Uma pequena gaveta foi aberta, alguns comprimidos retirados, como se aquele ato estivesse sido planejado há muito tempo, Beatriz não teve pena e nem pensou na dor posterior, a menina só queria acabar com o que sentia naquele momento. Uma injeção endovenosa foi o início da busca pela paz.
Logo em seguida uma, duas, três porções de comprimidos... Água para não vomitar.
Bia se deitou com as mãos sobre o peito e esperou ir embora.
Antes de partir, Bia pôde ver a imagem de um homem encostado em sua porta, repleto de escuridão ao seu redor; era Eron de Menezes em prantos. Ela o sentiu pela última vez e talvez tenha sido esse o motivo do não-sofrimento quando teve a primeira parada cardiorrespiratória. Ela se virou lentamente para o lado, olhou para o pervertido da Rua dos Sonhos chorando, e conseguiu sorrir antes de partir.
Bia desistiu.
No bilhete sobre a penteadeira, deixou a camisa emprestada, um texto simples, o número do professor e uma chave como prêmio.
||...||
|O telefone de Guilherme tocou, ele ainda estava acordado pensando em todos os fantasmas que retornaram e os acontecimentos com Beatriz naquele dia. O número era desconhecido e ele atendeu.
— Alô?
Do outro lado uma voz em prantos tentava explicar algo. Guilherme morreu pela segunda vez. Estava em choque.
— Qual hospital? — Ao receber a localização, Guilherme pulou da cama, se vestiu às pressas e saiu como um louco pela Rua dos Sonhos.
Enquanto caminhava, Guilherme tentava pedir um UBER, mas não conseguia raciocinar e fazer tudo junto. O professor parou, sentou em um dos bancos na Rua dos Sonhos e pôs as mãos na cabeça.
Um Voyage prata parou ao lado da rua, baixou os vidros e surgiu como ajuda.
— Vamos, sei para onde vai... — Disse o padre Hernandez com a cara de quem caiu da cama.
— Sereno?
— Vamos, Guilherme, tem alguém que vai precisar muito de você. — Disse o Monsenhor ao destravar a porta do carro. Guilherme levantou num salto e correu para o encontro com Beatriz.
— Obrigado, padre, obrigado. — Guilherme desabou em lágrimas e o Voyage cortou a Rua dos Sonhos subindo o aclive principal.
As ruas estavam desertas naquela noite, os sinais de trânsito não eram respeitados por Hernandez. O padre dirigiu como nunca, e a calma habitual desaparecera.
— Você está bem? — Perguntou o Monsenhor sem olhar para o lado.
— Não acredito nisso...
— Deus está trabalhando, meu filho. Ela teve várias paradas cardiorrespiratórias, o estado de Beatriz é crítico. — Resumiu Hernandez. — Deus, de alguma forma a virou de lado naquela cama e ela ainda vomitou enquanto convulsionava.
— Esse é o melhor caminho até o hospital? — Perguntou Guilherme ao tentar se localizar na madrugada.
— Quem disse que vamos ao hospital? — Disse o amigo Sereno.
— Como assim? Bia está morrendo, eu preciso vê-la! — Guilherme aumentou o tom de voz.
— Deus está trabalhando... tenha calma. A melhor equipe do hospital das Madres está com ela. Eu tenho um bom acesso nesse hospital.
— Meu Deus! E como o senhor conhece Beatriz? Como me encontrou na praça naquela angústia sem saber o que fazer? — Guilherme vivia o pesadelo, e as dúvidas junto ao caos o enlouquecia. O professor tremia.
— Beatriz deixou uma carta direcionada a você. — O Monsenhor parou em um sinal para não bater em uma caminhonete que atravessava o outro quarteirão. — Assim que você tiver o acesso a essa carta, vou contar algumas coisas e talvez tudo faça sentido. O que posso adiantar é que conheço aquela menina muito bem.
Depois de alguns minutos atravessando a cidade, o Voyage entrou em uma rua larga sem movimento e parou em frente a uma casa pequena.
— Chegamos. — Hernandez desceu do carro e Guilherme o acompanhou. — pode me seguir.
O Monsenhor abriu o pequeno portão de madeira e Guilherme o seguiu subindo alguns degraus. O corredor de lajotas vermelhas levou a dupla para dentro da pequena casa. Hernandez acendeu a luz da sala e Guilherme, apesar da dúvida, começou a entender a situação. Guilherme se aproximou dos portas retratos na sala e viu uma foto sua, viu várias fotos de Beatriz e algumas poucas de Eron de Menezes.
— Eles eram irmãos, Guilherme. Eron de Menezes é o irmão mais velho de Beatriz de Menezes. — Guilherme desabou outra vez. — Ela aplicou em si o mesmo propofol, o "leite da amnésia", e depois tomou uma grande quantidade de Midazolam. O mesmo coquetel que o irmão utilizou quando desistiu desse mundo.
Guilherme sentou-se no chão e chorou como uma criança, não compreendia tudo aquilo.
— E onde o senhor entra nessa história?
— A família Menezes ajudou e se dedicou à paróquia por vários anos, o pai de Eron e Bia trabalhou conosco. — O padre sentou. — Em 2001, cometeu o suicídio por acreditar que Beatriz era fruto de uma traição de sua mulher com outro colaborador da igreja. Beatriz é o terceiro membro da família Menezes que tenta desistir. Ramon desistiu e não pôde ver que Beatriz é a sua cara, Eron partiu e não pôde se defender das acusações. Você pode ajudar Eron e pode ser suporte na recuperação de Bia... Está tudo em suas mãos. A igreja ajuda essa família destruída há muitos anos.
— Quero a carta... — Disse Guilherme. — O padre entrou em um dos cômodos e trouxe o que Beatriz deixou ao professor. Guilherme perdeu o fôlego ao ver a sua camisa, abriu com cuidado o bilhete e viu uma chave cair.
•••
"Seria tão bom se morrêssemos no auge do amor. Sem dor. Sem choro, sem lamentações."
Vê se não esquece: "Pessoas podem até ser substituíveis, mas o que se viveu, jamais". Sabe, não é sobre desistir, é sobre recomeçar em outro lugar.
Vá até o fundo da casa. Essa chave é sua redenção. Não tenha medo se de alguma forma o meu irmão estiver com você.
Bia
•••
|— Para aonde vamos? — Perguntou Guilherme ao padre ao pegar a chave que caíra. O rosto do professor estava destruído em lágrimas.
— Vamos para a porta dos fundos. — Disse Sereno caminhando na frente.
O padre parou mais a frente.
— Creio que essa chave abra aquele velho depósito. Beatriz às vezes passava horas ali dentro. — Os dois caminharam pelo quintal e pararam no canto do muro. Guilherme colocou a chave na fechadura de uma porta bem desgastada e a girou.
Não havia luz, a madeira ao redor estava se desfazendo, e o cheiro de mofo predominava. O padre colocou a mão no bolso e ligou o celular para clarear o lugar.
— O que aquela menina guardava aqui? — Deixou escapar o padre.
No chão estavam algumas gavetas e uma penteadeira quebrada, vários jornais estavam jogados no chão e as fotos que cada periódico trazia fizeram os dois se arrepiarem.
— Bia tinha tudo sobre o caso... — Disse Guilherme ao segurar um jornal de 2006. Guilherme olhou tudo que pôde.
— Ela queria solucionar o caso. — Falou Hernandez ao pegar algumas fotos ao seu lado. — Agora faz sentido ela querer estudar naquela escola tão próxima a Rua dos Sonhos.
— Talvez quisesse se vingar...
— De quem? — Achou curioso o sacerdote.
— Não sei... Talvez de mim? — Guilherme pegou o celular de Hernandez e girou em 180 graus pelo lugar. Sobre uma mesa vermelha estava um Nokia antigo enrolado em um saco plástico. — O celular de Iris. O celular que levou Eron à cadeia e que depois desapareceu.
— Como assim?
— Eron estava com o celular de Iris quando foi abordado pela polícia e, por isso, se tornou um dos principais suspeitos. — Guilherme pegou o celular e observou que apesar do tempo ele ainda estava em perfeito estado. — Mas de alguma forma esse celular desapareceu logo após a prisão de Eron.
— Talvez a pequena Bia tenha o pegado. — Completou Hernandez.
— Exato.
— E em que ele pode ser útil? — O Monsenhor colocou a luz de seu celular mais próxima das mãos de Guilherme.
— A memória interna pode conter os números das pessoas ou mensagens de textos que Iris trocava na época. A posse do celular levou Eron à prisão, mas depois desapareceu.
— Então por isso a prisão dele foi revogada?
— Isso!
— Acho que temos uma boa pista assim que uma perícia detalhada for feita nesse celular. — Concluiu o padre.
— Aqui tem coisas valiosas. Só não entendo por que Beatriz o guardou por tanto tempo.
— Talvez esperando a hora certa, pois sabia que apenas esse celular não solucionaria todo o caso que envolvia seu irmão. — Enquanto ouvia Hernandez, Guilherme se lembrou de Ruanna Spanno.
— Vamos. Quero chegar ao hospital o mais depressa possível. — Finalizou Guilherme saindo do depósito.
— Então vamos... Temos duas pessoas pra salvar.
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