PRIMEIRA CHAVE: A SOMBRA
"Obrigado por me escutar. Mais um pouco, e eu não conseguiria ficar calado sem que a loucura fizesse residência em minha mente... ou, quem sabe, em você, caso não me escutasse tão bem quanto sei que me escuta. Estou dentro do quarto contigo, sentado à beira da cama, enquanto vislumbro as paredes brancas, repletas de infiltrações produzidas pelo cheiro sufocante de mofo por toda a extensão do ambiente. Sinto meus olhos inchados de sono, minhas pálpebras pesadas, meus músculos anestesiados; e, apesar de tudo, ainda consigo te observar atentamente, percebendo cada detalhe sórdido, cada pecado cometido sem hesitação, cada sonho despedaçado; mas, talvez, com certo prazer, por estar prestes a fazer de mim o seu brinquedo quebrado, de pernas e braços torcidos, indefeso e sem direito a qualquer tipo de resposta."
"Você começou a fazer isso comigo não faz muito tempo, e este pouco já é o suficiente para que eu não saiba sequer quem sou. Só tenho a consciência de que vivo faz mais de dez anos com minha família neste lar antiquado, necessitado de reparos urgentes, dominado pelo bolor, goteiras e cheiros de embrulhar o estômago, que só tornam pior o fato de sobreviver quando se está dominado pela doença da depressão, que age como um fantasma insidioso e parasita, que consome qualquer ser humano sem que ele se dê conta. E não foi assim comigo também? Um jovem falido, jogado em uma cama de estrados quebrados, olhando o celular quase 100% do tempo enquanto uma vida de possibilidades é perdida lá fora? É complicado. É complicado, eu sei. Mas fique calmo. Eu e minha fé não somos capazes de te enfrentar. Sequer vazão há o suficiente para que meu psicológico esteja íntegro. Por isso estou conversando com o autor da morte de meus pais. A alguns metros de mim, afinal, há uma porta que dá de frente com a deles, e, mesmo que encoberto pela penumbra proveniente da noite, eu consigo enxergar o que você fez com seus corpos."
"Em uma figura distorcida, tornaram-se. Tão parecida com algum deus hindu cujo nome não sou capaz de me lembrar, tendo quatro braços e pernas retorcidas. O rosto paterno olha para mim chorando lágrimas de sangue, o materno me fita tendo o pescoço anexo ao estômago de meu pai. Embora mortos, a criatura se mantém em pé. Seria fácil deixá-la pendurada por uma corda e alguns ganchos. Porém, não é com estas ferramentas que os restos que já foram chamados de meus pais estão eretos, porque, apesar de eu estar aqui tremendo, com a garganta seca e um sorriso incerto nas extremidades dos lábios, ainda consigo te ver na forma de uma sombra segurando os corpos dos meus entes queridos com suas mãos cruéis. Por trás da imagem deles, olhando para mim com íris rubras e cintilantes. Sorrindo alegremente somente por saber que eu sou a tua próxima vítima."
"A luz do corredor contíguo aos nossos quartos treme quando percebo sua presença. A lâmpada fluorescente se quebra, estalando um estampido sonoro, e a escuridão passa a ter direito de dominar minha casa. O corpo criado com os restos dos meus amados cai no chão, e, finalmente, eu posso te ver caminhar na minha direção, deixando no piso frio pegadas de sangue, enquanto eu me preparo para o que eu sempre estive destinado. Pisquei uma, duas, três vezes."
"Você está aqui comigo. Ergo a cabeça e enfrento teus olhos ágeis. Tuas mãos seguram meus braços como se eu estivesse pronto para ser crucificado. Mais um par de braços surge pelas suas costelas, saltando como patas de uma tarântula. Uma das mãos segura meu pescoço; a outra, fechando os dedos, exceto por um, o indicador, introduz-se longa e escura pela minha garganta, paralisando minha arcada dentária antes que eu tente arrancá-lo com uma mordida. Queria tanto escapar, mas estou inerte. Sinto sua sombra entrar pelo meu esôfago, alcançando meu interior e ruindo os meus ossos. Eu já aceitei o meu destino. Sim. Pelo menos, estarei com meus pais. Só tenho pena de que em outros quartos haja outras vítimas a serem mortas por ti; ou, quem sabe, afortunados que lhe verão somente quando estiverem no estado de quase sono, pelo canto dos olhos, passando rapidamente por detrás da porta para desaparecer na escuridão que há no teto de todas as casas."
"Sou completamente rasgado, e minha alma só possui a vaga lembrança do meu sangue espalhado pelo meu quarto. Quanto a mim, o que restou foram somente pedaços. Pedaços físicos de uma mente que já há algum tempo estava despedaçada... Se leu estas últimas palavras de desolação, e mesmo assim não enviou sequer uma oração para que eu descanse em paz, saiba que aqueles que vivem nas sombras já estarão contigo, aguardando o momento propício para saírem da escuridão sob sua cama, a fim de lhe sufocarem com a paralisia do sono. "
— E foi isso que disseram na carta... — disse Marcos para seu irmão, sentado ao seu lado, fitando a tela do notebook sobre a escrivaninha. O site se chamava creepypastasbr, seu layout era preto e vermelho, e possuía um vasto acervo de histórias macabras e misteriosas com as quais os irmãos Marcos e Eduardo se divertiam às escondidas da mãe, uma ministra católica de uma das igrejas do bairro de Vila Matilde, em São Paulo.
Não demorou muito para que a voz dela os chamasse para comer.
Marcos se assustou e fechou a tela do notebook com medo de que eles fossem flagrados.
— Vamos logo, antes que a mãe nos mate — disse, segurando o irmão de sete anos pelo braço.
Cuidadoso, com apenas treze anos de idade, o garoto já apresentava sinais de bondade gerados pela educação rígida e disciplinadora da mãe, Francisca, para que se tornasse um bom homem, como ela planejara com o pai, que falecera há dois anos.
Desde aquela época, o contato dos irmãos se fortificou, mas algo além de uma mera fraternidade nasceu diante do gosto pelo sobrenatural desde o dia em que, em uma noite qualquer, entraram sem querer naquele site obscuro, ganhando conhecimento de fatos que assustariam até o mais velho dos adultos, ou nem tanto assim. Isto porque o medo era bom, trazia uma sensação de êxtase, envolvendo-os de modo a acolhê-los em um mundo diferente do pregado por sua mãe, não fosse a razão um acaso indecifrável para crianças leigas e inocentes.
Segundos se passaram. Marcos e Eduardo já estavam sentados em lados opostos da mesa, vendo Francisca servir seus pratos, além da porção destinada ao padrasto, João, que lavava as mãos para mais um jantar. A história lida no site permanecia fresca nas cabeças dos meninos, que se olhavam de vez em quando com vontade de comentar cada detalhe do que foi lido. Teriam de aguardar a união acabar.
A cada garfada, após a breve oração do Pai Nosso; ambos procuravam nos cantos da cozinha antiga traços do ser relatado na creepypasta de nome TH SHDW PPL.EXE. Nos comentários da página, havia pessoas dizendo que já haviam visto coisas parecidas, e que talvez aqueles seres fossem, realmente, a possível razão da paralisia do sono, que acomete dezenas de pessoas que acordam e se encontram com o paranormal, impotentes e apavoradas.
O balançar de pernas. Ansiedade. Francisca não deixaria de perceber a inquietude de seus filhos ao rasparem os últimos grãos de arroz dos pratos brancos. Ela limpou a boca com um guardanapo e questionou a razão de tal alvoroço. Os garotos emudeceram por pouco tempo. Marcos disse que estavam felizes por causa do último esconde-esconde que tiveram na escola em que estudavam. A mãe, desconfiada, fingiu acreditar em suas palavras, e os mandou imediatamente ao quarto, enquanto se incubiria de limpar a mesa e guardar os talheres e pratos com a ajuda do novo companheiro, também ministro da igreja.
Eduardo foi à frente escovar os dentes, seguido de Marcos. Ambos entraram no quarto e fecharam a porta, indo imediatamente na direção do notebook para ler o restante dos comentários da página. Obviamente, Edu ainda não sabia ler; ficava à mercê do irmão para entender as letras do site preto. No meio dos cem comentários da vez, leram desde pequenas baboseiras a relatos sérios de alguns usuários. O quarto se encontrava iluminado somente pelos feixes que vinham do longo corredor. Edu começou a sentir medo, quando viu o gif de um usuário mostrando a imagem de um homem saindo do canto de uma parede de tijolos.
— Irmão, isso não existe, né? Ele não vai sair da parede, né? — ele perguntou.
— Claro que não, maluco — Marcos respondeu, dando um cascudo na cabeça de Edu, que reclamou. — Essas coisas não existem. Lembra que a mãe sempre fala que Deus nos protege?
O pequeno sorriu, mas não tirou os olhos do canto ao lado do guarda-roupa marrom. Marcos sentiu que seu irmão se abalou um pouco com o gif, correu e ligou o interruptor do quarto, fazendo a luz inundar o ambiente e dispersar, em parte, o receio de seu irmão. Por fim, sentou-se novamente na frente do notebook, e, enquanto tirava a página do site de creepypastas, dizia a Edu que a luz sempre ajudava, porque a luz de Deus, ensinada pela mãe, também estava ali. De certo modo, a resposta do garoto mais velho parecia estranha para alguém da sua idade, principalmente no ano de 2018, no qual crianças e adolescentes cada vez mais perdiam a fé em Deus e em seus anjos. Contudo, por mais que fosse influenciado pelo lado externo, ainda tinha uma mãe disciplinada o bastante para não deixar que ideias oníricas e espirituais se esvaíssem de sua cultura. Isso criou nele e no mais novo híbridos de crianças moralizadas do passado, tementes à religião e a Deus; mas, ainda assim, conscientes das tecnologias dos dias atuais. O computador trazia-os para o considerado profano; sua mãe lhes puxava de volta para os braços de Deus.
Após abandonar o site, Marcos preferiu colocar a série Justiça Jovem, um desenho de super-heróis, para que pudessem cair no sono. O notebook ficou sobre um armário baixo, ao lado da TV, e os irmãos deitaram em suas respectivas camas, cobrindo-se com seus edredons. Quando Francisca adentrou o quarto, encontrou somente dois meninos dormindo, enquanto, no notebook, os últimos capítulos da série passavam. Com o cenho fechado, ela desligou o aparelho, aproximou-se dos filhos e rezou um Pai Nosso sobre cada um; beijou-os na testa, e então, ainda olhando o rosto inocente de Edu, desligou a luz, fechando a porta.
Ao ser fechado, o quarto assoviou com a ajuda de uma frente fria que se aproximava. A escuridão engoliu o ambiente, e o silêncio, enfim, fez-se presente. A respiração dos garotos estava tranquila. Seus rostos pardos se mantinham um pouco avermelhados. No canto do armário, porém, uma energia se condensava. No negrume do vazio, o vento tornava-se a voz das paredes, que não têm vida. E, nas sombras de um quarto carente de luz, uma mão segurava o canto do armário, fitando Edu com um pequeno olho avermelhado. Quando isso aconteceu, por coincidência, os dois irmãos se mexeram, balbuciando palavras distorcidas; retornando ao sono profundo mais uma vez.
Continua...
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