12 - Crianças peculiares
"Ela ameaça as pessoas no Salgueiro" ouvi um órfão cochichar, pouco tempo depois de eu ter descido. Ele era mais velho, parecia entender as coisas.
"Me disseram que ela fez uma menina vomitar e engolir o próprio vômito" Isso saiu da boca de uma criança pequena, sete anos, no máximo.
Caramba, quando eu morrer serei como uma dessas lendas urbanas que os pais contam para os filhos não serem desobedientes. Tenho certeza.
— Eu estava me perguntando quando iria vê-la novamente. — Sr. Morris começa a falar com o gravador de voz em mãos, enquanto estamos na varanda do casarão, sentados num banco feito de pallet, sendo fotografados pela sua equipe.
— A ultima vez que nos vimos foi na coletiva de imprensa na semana passada. — Eu não me lembro de ter visto ele. — Muita coisa tem sido especulada desde então, mas a princípio, gostaria de saber como a senhorita está se sentindo em relação ao baile do herdeiro?
Desvio o meu olhar para a barra da saia do meu vestido, apoio uma das mãos nos meus joelhos, fazendo círculos imaginários com o dedo indicador.
Quero afundar a madeira decrepita do chão com o salto da bota e enfiar a minha cabeça no buraco. Não acho que vou precisar de muito esforço conseguir isso.
Pode ser bom, com um pouco de sorte a próxima matéria vai ser "Isla Grant vandaliza orfanato em situações precárias".
A Rosana está do outro lado da entrada, olhando para mim com desespero. Ela sabe que preciso de algumas palavras para fazer um estrago.
— Lady Isla? — Ele me chama. Ele aguarda uma resposta.
E, tenho que mentir. De novo e de novo. Se não para o meu bem, para o meu mal, eu não paro nunca.
Contei mentiras a vida toda, uma a mais não irá fazer diferença. Não seja fraca e idiota, merda. Mas, mentir sobre o quê? Dizer que está ansiosa para reencontrar seu noivo, ou que está louca para ficar bêbada com os vinhos da adega real?
Na primeira mentira, escapo de um sermão da Rosana, mas aumento as chances do povo se acostumar com a ideia de me ter como princesa deles. Já na segunda, eu me torno o que eles costumam chamar de "causa perdida", afinal, "Isla Grant enlouqueceu".
Qual mentira? Mentir sobre o quê?
— Milady, está se sentindo bem? — Ele torna a perguntar. — Está doente? — De mim mesma.
Sr. Morris não é um homem mau, ele só está fazendo o trabalho dele — mesmo que esteja sendo censurado para não fazer perguntas que me façam parecer um monstrinho em ascensão.
— Sim. Eu... — Molho os lábios. Minha garganta está seca para um cacete. — Eu só estou com um pouco de dor de cabeça. — Mentira. — Podemos falar sobre o orfanato? — Desvio de assunto. — É por isso que estamos aqui. — Mentira de novo.
— Muito bem, como desejar. — Ele apruma a sua postura e torna a sorrir. — Qual foi a primeira impressão que teve das crianças?
Engulo em seco.
— São crianças intrigantes, cheias de personalidade. — Consigo dizer e é mais fácil. O sorriso é falso, mas o que estou dizendo não.
Eu dou conta.
O Willow é tão estranho quanto o orfanato da Srta. Peregrine.
Louisa é mais esperta que o meu irmão, por mais difícil que seja para ele admitir. Acho que por isso ele a evitou nos primeiros momentos, depois da entrevista e da porcaria da sessão de fotos.
Achei pouco. Fred não devia andar por aí como um Lordezinho metido a besta de doze anos, só porque é rico, herdeiro da fortuna do nosso pai. Bobo, dinheiro queima.
Me dê algumas gotas de gasolina e um isqueiro para ver o estrago que isso pode fazer a tudo o que nós temos. Cabum.
Louisa me perguntou muito sobre o castelo, como ele era por dentro e me pediu para ser o mais detalhista possível, para que ela pudesse desenha-lo outrora.
Tinha um outro órfão, Ashton, fios laranjas e encaracolados. Ele tentou me mostrar alguns truques de mágica com um baralho de cartas, e deu errado as cinco primeiras vezes, é um garoto persistente.
Conversei com outra garota, de uma personalidade tão assombrosa quanto a da Louisa, se chama Lola. Pelo que eu entendi, elas dividem aquele quarto. Lola tem dez anos e um arsenal cheio de histórias de terror; aparentemente gosta de contar cada uma sem se arrepiar ou ter pesadelos. Crianças muito peculiares.
— Cuidado aí embaixo! — Um homem, pendurado por equipamentos de segurança grita da torre do sino, a alguns metros de distância do orfanato.
Ele joga uma corda para um outro servente, quem está em terra firme.
— Essa torre está mesmo precisando de uma reforma. — Louisa comenta depois de dar uma lambida no seu sorvete de flocos.
— Tem alguma coisa por aqui que não está? — Resmoneio parando sob a sombra de uma arvore enorme.
A propriedade é gigante, se resolvessem expandir esse lugar, daria para abrigar outros pirralhos sem teto.
— O chão faz crec crec, mas eu gosto daqui.
— Até da Sra. Misty? — Junto as sobrancelhas.
— Eu sei, ela parece ser malvada. — Lambe o sorvete mais algumas vezes. — Mas é só isso mesmo, é o que ela parece.
Queria poder aplicar a Rosana, mas eu a conheço bem demais para isso.
— Você misturou menta e maracujá? — Harry indaga se aproximando, olhando para o sorvete em minhas mãos.
— Você não pode dar pitaco. — Aponto para o dele. — Chiclete e amendoim?
— O outro segurança não quis sorvete? — Louisa aponta para o Simon ao meu lado.
— Acho que não.
— Ele é bobo? Não é sempre que um caminhão de sorvete e algodão doce vem por aqui.
A propósito algo me diz que isso foi ideia da Rosana também.
— Simon? — Chamo o guarda que por algum motivo faz uma desnecessária reverência.
— Senhorita?
— Por que não vai se servir? Não tem nenhum perigo a vista.
E, eu quero respirar.
— Agradeço, milady, mas estou seguindo ordens.
Rolo o olhar e tomo um pouco do meu sorvete. Talvez o tio Albert crie robôs, vai saber.
— Ele te segue o tempo todo? — Louisa questiona baixinho.
— O tempo todo.
— Até no banheiro?
Assinto em resposta.
— Número um e número dois? — Ela torce o nariz para a própria pergunta.
Eu apenas faço que sim com a cabeça outra vez
— Minha nossa senhora da bicicletinha sem freio.
— Coitado do Simon, tem que ficar do lado de fora, ouvindo a Isla cagar. — Fred surge de repente digitando alguma coisa no celular.
Harry ri e Louisa solta o ar meio assustada, não sei se é por causa do Fred ou por causa do que ele disse.
— Como você é nojento. — Reclamo.
Meu irmão ergue os cantos dos lábios e coloca o aparelho dentro do bolso da calça.
— Vamos? — Pergunta. — O Sr. Morris já foi embora e a mamãe está chamando você.
— Você vem para o baile beneficente, né? — Louisa questiona, colocando a mão por cima da minha por uns dois segundos.
E, eu torno a assentir.
Vou ter que comparecer de qualquer forma, mas acho que posso encontrar alguns mecanismos para isso não entrar para a lista das coisas que me obrigam a fazer.
No dia seguinte depois do colégio, tive aula de boas maneiras. Acho que Rosana andou procurando "métodos de tortura" no google e encontrou a Sra. Kinsley.
Não preciso decorar quais talheres devo usar ou como devo me portar diante de pessoas importantes, e a ruiva sabe disso, ela só está testando maneiras de me controlar enquanto eu estiver fora do seu campo de visão.
A Sra. Kinsley deve ter uns sessenta anos e gosta muito de enfeitar o pescoço com cachecóis de animais mortos. Tem uns cincos anos que o marido dela morreu, dizem que ele ficou maluco depois de voltar da guerra de inverno. É o que dizem por aí, não dá para ter certeza.
Ela e a vovó Ophélia têm algo em comum, a viuvez.
Deve ser por isso que conversaram bastante depois que a aula acabou, bebendo chá de erva-doce e papeando sobre compostagem.
Praticamente gritei "Aleluia" quando a Sra. Kinsley foi embora, porque a Rosana, para variar, não está em casa, ou seja, é a brecha perfeita para conversar com a mãe dela e ver se eu consigo descobrir alguma coisa.
Espero paciente a vovó ligar uma vitrola antiga que nós temos na sala, quase nunca é ligada, serve para fazer parte da decoração.
Ao som de Chico Buarque, vovó dança até o sofá, onde eu finjo ler uma revista.
Por cima dos catálogos de moda eu a assisto se servir com mais chá.
O momento é perfeito.
— Vó? — Coço a garganta. — A Rosana vai demorar?
— Não sei dizer, querida. — Diz finalmente se sentando. — Por que a pergunta?
— Ela anda mais mandona e impaciente que o normal. — Reclamo. — Ela sempre foi assim...? Sabe? — A minha mão imita garras e para a minha surpresa, vovó ri disso.
— Nem sempre. — Conta.
Isso não basta.
— Como ela e o meu pai se conheceram?
Ophelia junta as sobrancelhas e ajeita o blazer rosa claro que está usando.
— Por que deseja saber disso agora?
— Curiosidade. — Dou de ombros, deixando a revista de lado. — Eu não sei muito e você sabe, não lembro muito. — Aponto para minha cabeça e ela assente.
— Eles se conheceram no Salgueiro. — Suspira.
— Ela estudou no Salgueiro com os meus pais, com o Albert e a Amelie?
A boca da vovó Ophelia abre e articula como se ela pensasse muito antes de falar. Mas, muito mesmo.
— É. — Ela diz, desviando o olhar para a xícara de porcelana em suas mãos. Por que ela está desviando o olhar?
— Eu não sabia disso. — Não posso encerrar o assunto. — Eles eram amigos? Os cinco?
— Eu não sei dizer. — Torna a olhar para mim.
— É que... Não é estranho? A Rosana ter sido amiga da minha mãe e anos depois ter se casado com o meu pai?
— Querida, não foi bem assim. — Vovó parte direto em defesa da filha. Acho que cutuquei alguma ferida. — Pelo que eu sei, seus pais se casaram poucos anos depois de se formarem no Salgueiro. Rosana nem ficou no reino.
Mas, não deixa de ser megaestranho vovó.
— Como assim?
Fecha os olhos e respira fundo antes de abri-los.
— Ela ficou alguns anos em Analea, foi estudar lá.
— Não sabia que Rosana tinha tentado uma faculdade.
— Ela tentou sim. — Bebeu um gole do seu chá. — Direito.
Consigo imaginar a Rosana sendo advogada, apesar de isso não fazer o menor sentindo para o meu cérebro. Não me parece alguém que luta pela justiça.
— Foi lá que ela conheceu o pai das meninas?
Estou tentando ligar os pontos, até porque Rosana nunca falou dele, nem para as gêmeas, por algum motivo desconhecido. Talvez pela mesma razão da vovó demorar a reagir após a minha pergunta.
— Foi. — Vovó está ficando séria, parece extremamente incomodada.
— Por que ela não fala muito dele?
— Isla, às vezes o passado deve permanecer no passado. — Ela diz colocando a xicara sobre a mesinha de centro.
— As gêmeas não sabem muito dele, sabem?
— Não.
— Ele abandonou a Rosana... Ele...?
— Querida, esse assunto é particular da minha filha. — Ela interrompe tranquila. — E, ela prefere não falar sobre, tampouco que outras pessoas falem.
Por quê? O que aconteceu de tão ruim assim?
— Tudo bem. — Concordo, se eu insistir demais vou espantar a minha avó e não é o que eu quero. — Mas, por que Analea? O Albert não tem uma briga com o rei de lá?
— Ela foi antes de tudo isso se agravar. Conflitos políticos podem ser...Instáveis.
Posso ver em seus olhos que sabe muito mais do que está contando, e posso ver também que não dirá nada sobre isso.
— Srta. Isla. — Lenna pede licença, adentrando a sala. — A suas amigas acabaram de chegar.
Harper se aproxima com a Emma, quem está deslumbrada com cada detalhe da casa, olhando cada ornamento do chão ao teto.
— Já que você não pode sair, viemos até você. — Harp diz sorridente.
— É, eu virei uma prisioneira. — Resmoneio e no mesmo segundo vejo a mão da vovó tocar a minha, repousada sobre o meu colo.
— Rosana se preocupa com você, acredite em mim. — Diz com os olhos cravados nos meus, antes de vê-la levantar.
Ela cumprimenta as meninas com um sorriso gentil e se distancia com a Lenna para a cozinha. Parece que estão tentando umas receitas antigas.
— Que clima estranho. — Harp cochicha. — Tá tudo bem?
— Eu já vou explicar. — Me levanto, olhando para a Emma quem me encara com as sobrancelhas franzidas. — Melhor a gente ir para o meu quarto.
Contar para as meninas o que a minha avó me falou sobre a Rosana foi rápido, fácil, até porque Ophelia não me disse muita coisa e tudo o que disse levantou mais dúvidas do que sanou.
— Você realmente acredita que a sua madrasta pode estar planejando alguma coisa? — Harper questiona, sentando na minha cama.
Estou andando de um lado para o outro. Esquerda, direita. Esquerda direita.
— Ela é obcecada em fazer com que eu me torne a princesa e depois do que e escutei ela dizer... Eu não sei de mais nada.
— Então, não quer se casar? — Emma pergunta baixo e eu nego com a cabeça.
Ela está ao lado da Harper no meu tapete felpudo, com canetas com pompons e revistas de vestidos de baile espalhados para todos os lados.
— Eu não quero passar o resto da minha vida com um desconhecido e... Ser obrigada a fazer coisas que eu não quero. Tenho vivido assim há muito tempo.
— A maioria das pessoas diriam que você enlouqueceu. — Emma ri por um segundo. — Muitas delas dariam tudo para estar no seu lugar.
— E eu de tudo para não estar nele. Ninguém é perfeito.
— Pelo visto a Rosana estudou no Salgueiro... — Harper parece pensar em voz alta. — Por que ela nunca comentou sobre isso com vocês?
Balanço a cabeça respirando fundo.
A porta do meu quarto abriu na troca de um segundo para o outro, por onde a Rosana passou, me fazendo paralisar.
Será que ela ouviu alguma coisa? Eu preciso tomar cuidado.
— Você precisa aprender a bater na porta, sabia?— Cruzo meus braços enquanto ela se aproxima.
— Amanhã teremos um jantar na casa do Lorde Chester. — Comunica sem nem cumprimentar as meninas.
— O Apicultor? — Franzo as sobrancelhas. — Outro jantar?
— Outro jantar! — Finge um tom animado. — Dessa vez não me apronte nada. Nada de comentários inconvenientes! E... — Olha para as garotas na minha cama. — Quem é você? — Pergunta para a Emma.
— Emma, senhora, Emma Mirelo.
— Já viu ela antes. — Acrescento. — Ela também estava comigo quando aconteceu toda aquela confusão no Caprise.
Rosana pisca múltiplas vezes.
— Sim, claro. — É tudo o que antes de olhar para mim outra vez. — Por que estão vendo vestidos de baile? Eu já disse que...
— Não é são para mim, Rosana. — Explico num suspiro. — São para a Harper e para a Emma.
E então a observo contrair suas feições.
— É, ela vai ao baile com a gente. — Harp explica apontando para a garota.
— Vai, é?
— Como minha convidada. — Escoro na minha cômoda.
— A elite pode não gostar muito.
— E eu não me importo de incomodar a corte. — Meu comentário faz Rosana me fuzilar com os olhos. — Emma é agradável, estou até cogitando convidar os órfãos. São bem agradáveis também. Não acha? — Forço um sorriso.
E, então, o semblante da minha madrasta se transforma. Da água para o vinho.
— Isla, que ótima ideia! — Sorri.
O que foi que eu fiz?
— Como é que é?
— Convidar os órfãos... — Se aproxima de mim. — Uma ótima jogada! — Apertou as minhas bochechas com força. — Perfeito. O Sr. Morris precisa saber disso!
Ela se vira e caminha em direção a porta.
— O quê? — Inquiro a seguindo. — Rosana, não... — Fiz ela parar de andar e olhar para mim. — Eu não dei ideia nenhuma, é você que...
— Ninguém vai saber. — Me interrompe, dando dois tapinhas leves na minha cabeça. Essa mulher é completamente maluca.
Por fim, ela sai do meu quarto para anunciar à Deus e ao mundo, mais uma mentira.
As coisas estão tranquilas demais por aqui, eu tenho medo.
Volto ligo. Beijo beijo beijo beijo. Beijinho beijão.
Todo dia tem um beijo....
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro