Escatologia
Título: Escatologia;
Autor: Eduardo Torres Prado;
User Wattpad: @EduardoPradoSeven.
Sabe, porém, isto: que nos últimos dias sobrevirão tempos trabalhosos. Porque haverá homens amantes de si mesmos, avarentos, presunçosos, soberbos, blasfemos, desobedientes a pais e mães, ingratos, profanos, sem afeto natural, irreconciliáveis, caluniadores, incontinentes, cruéis, sem amor para com os bons, traidores, obstinados, orgulhosos, mais amigos dos deleites do que amigos de Deus, tendo a aparência de piedade, mas negando a eficácia dela. Destes afasta-te.
- 2 Timóteo 3:1-5
I
O sol banhava uma pequena cidade do interior do Ceará, transformando o frescor da madrugada em uma manhã calorosa. Um feixe de luz invadia o quarto de uma casa espaçosa, aquecendo o colchão arrumado. Um vento quente cortava o ambiente enquanto Saulo, um rapaz de figura impecável, finalizava o penteado. O aroma do café recém-coado misturava-se ao ar, anunciando o início do dia.
Uma voz feminina ecoou pela casa, chamando para o desjejum. Saulo avisou que desceria em breve e ouviu o pai responder “já vai” do banheiro. Antes de sair, colocou uma pulseira de aço no pulso e um anel de prata no dedo. Verificou-se no espelho, ajustou a camisa e desceu as escadas.
Na sala, as fragrâncias de café e pão quente dominavam o ar úmido. A mãe, sentada à mesa, sorriu ao vê-lo.
- Bom dia, Saulo. Dormiu bem?
A pálpebra direita dela tremeu levemente por tempo suficiente para os olhos de Saulo captarem.
- Sim, mãe. E a senhora?
Ela acordara cedo para pentear o cabelo castanho claro em um estilo vintage, maquiar-se com leveza e utilizar um vestido verde de gola estilo camisa. Quase esquecera de sua aliança.
- Maravilhosamente bem – respondeu, bebendo o café. – Não se esqueça de passear com a Matilde depois.
Saulo virou-se para a irmã.
- E você, Talita?
- Queria dormir mais – respondeu a menina, brincando com uma boneca. – Não gosto de acordar cedo.
- O dia sempre começará cedo, minha querida, e uma princesa deve estar sempre pronta – interveio a mãe, suavemente. – Além de sermos filhos de Deus, sempre dispostos a viver o máximo de nossas capacidades, somos, assim, cabeça e não cauda. Somos como uma família real: seu pai é o rei, eu sou a rainha, você é a princesa. Comporte-se como tal.
Talita franziu o cenho.
- Eu não sou uma princesa, é chato – suspirou. - Eu queria ser como um menino pra poder correr, andar de bicicleta e brincar.
- Meninos são mais indisciplinados, mas nós somos flores – continuou a mãe, sorrindo. – Os homens são nossos guardiões, como o Pequeno Príncipe e nós, a sua Rosa. Nosso dever sagrado é sustentar emocionalmente a família.
A pálpebra da mãe tremeu novamente. Uma gota de suor escorreu por sua face, e ela a enxugou com um lenço.
- Saulo, por gentileza, ligue o ventilador. Ainda não me acostumei com este calor.
Ele obedeceu, enquanto Talita resmungava:
- Queria ser menino pra correr e usar bermuda. Eu tenho que acordar cedo até nas férias pra passar as minhas roupa e pentear o cabelo.
- Pronuncie as palavras corretamente – corrigiu a mãe. – Nada de “pra”. É “para”.
A pálpebra dela tremeu mais uma vez. Saulo observou, intrigado.
- O que fará hoje, mãe?
- Compras, depois um _vlog_ – respondeu ela, sorrindo. – Meus seguidores aguardam. Também terei uma reunião com a minha equipe de Relações Públicas para conter... _rumores_.
O silêncio pairou sobre a mesa. O pai desceu as escadas, desejando bom dia a todos. Talita correu para abraçá-lo.
- Dormiu bem, meu amor? – perguntou ele, agachado.
- Sim, mas queria dormir mais. Mamãe me acordou cedo.
- É importante criar hábitos – justificou a mãe. – Futuramente, você agradecerá.
- Vou conversar com a mamãe sobre isso – cochichou ao ouvido da menina e beijou-a na bochecha.
André beijou o topo da cabeça da esposa.
- Bom dia, Marta. - Ela sorriu, mas as pálpebras tremeram de novo.
- Bom dia, benzinho. Como dormiu?
- Bem – respondeu ele, sentando-se.
Com todos à mesa, Marta pigarreou.
- Oremos.
II
Com o fim do desjejum, Saulo decidiu passear com Matilde. No quintal, uma brisa quente brincava com seu cabelo enquanto ele se acostumava à claridade. Matilde, uma forte fêmea de buldogue francês, trotou em sua direção, com a língua para fora e olhos brilhantes.
- Olá, senhorita Matilde – disse ele, ajoelhando-se e acariciando-a atrás da orelha. – Também está pensando que o calor é excessivo?
O cão apenas o lambeu.
- Penso o mesmo – concordou Saulo com a própria imaginação, colocando a guia na coleira. – Mas comporte-se como uma dama, ou mamãe a transformará em princesa.
Ao voltar para dentro, chamou Talita.
- Talita, está pronta? Matilde e eu estamos.
A irmã desceu as escadas com o cabelo em um coque justo, vestindo um vestido azul escuro e sapatilhas claras.
- Se eu trocar de roupa, mamãe fará tempestade – reclamou. – Por que temos que usar isso no calor? Queria bermuda e camiseta.
- Entendo, mas é melhor evitar problemas – respondeu Saulo.
Saíram de casa e viraram à esquerda.
- Pelo menos mamãe não nos levou às compras – suspirou Talita.
- Às vezes, sinto que sou um apêndice dela – concordou Saulo.
- Nós somos – corrigiu Talita. – Ela controla a gente o tempo todo. É um saco.
- Eu entendo os sentimentos de frustração e insatisfação, Talita. Eu passei pela mesma experiência em minha infância até o fim da adolescência – compadeceu o mais velho. – Entretanto, moramos e somos dependentes deles. Essa influência será minimizada com o tempo e vertiginosamente cairá quando formos independentes.
- Ah, é o que eu quero. Quero ter minha casa e fazer o que quiser.
- Não é tão simples – riu Saulo. – Talvez a profissão que escolher impeça a sua dependência imediata e os trabalhos alcançáveis aos jovens de dezoito anos de idade, com ensino médio, são, em sua maioria, insuficientes financeiramente. Bom, eu ainda moro com os nossos pais, não é?
Matilde parou de repente, farejando algo na rua.
- O que foi, senhorita Matilde? – perguntou Saulo.
Talita agachou-se e retirou da boca do cão uma boneca de pano encharcada.
- Ela estava engolindo isso? – perguntou Saulo, examinando o brinquedo. – Espero que não esteja envenenada.
- O que vai fazer com ela?
- Lavar e dar à Matilde. Será sua companheira.
Saulo limpou a boneca, mas estremeceu ao tocá-la, como se uma corrente elétrica percorresse seu corpo.
- O que acha que acontecerá com nossos pais? – perguntou Talita.
- Nada... – murmurou ele, distraído.
- O quê?
- Acho que se divorciarão – respondeu, caminhando. – Ou ficarão juntos, infelizes. Mamãe nunca aceitará o divórcio.
Um carro passou, levantando poeira.
- Foi por isso que nos mudamos? – perguntou Talita, chutando uma pedra.
- Pelos rumores – respondeu Saulo.
- Que rumores?
- Você não ouviu?
- Se for o que meus colegas disseram, não acredito. Nós somos a prova do contrário.
Saulo hesitou, evitando aprofundar o assunto.
III
Saulo lavou a boneca de pano no tanque do quintal, suando sob o calor. Ao terminar, jogou-a no chão.
- Não a coma, senhorita Matilde. Não fará bem.
Matilde abocanhou a boneca, rasgando-a com violência. Saulo observou, surpreso.
- Dramática, não? – brincou, buscando a vassoura. Ao voltar, viu que o cão enterrara os restos do brinquedo.
- Bem feito – disse ele, trancando o quintal e indo banhar-se.
Enquanto isso, Talita ouviu os pais discutirem na garagem. A voz de Marta ecoava:
- ...nunca aceitarei isso! É uma falha humana, não divina!
- Eu quero o divórcio, Marta – respondeu André, firme.
- Mudamos para fugir daqueles rumores! Conversei com minha equipe. O vídeo foi uma farsa, uma inteligência artificial!
- Não foi. Já falei isso várias vezes. Você não me ouve.
- Foi só curiosidade, André. Você pediu perdão a Deus. Eu não o julgo.
Talita, imóvel na cama, sentiu um frio nas entranhas. Desligou a música e aproximou-se da porta, ouvindo mais:
- Você espera que eu aceite que você é gay?
- Eu avisei há tempos. Você nunca quis ouvir.
- Se quer sexo anal, podemos fazer. É pecado, mas não é como um divórcio.
- Não é sobre sexo, Marta. Nos casamos por interesse, não por amor.
- Isso é perigoso! Eu sempre te amei. Nossos filhos são a prova!
- Tive filhos por pressão. O vídeo é real. Eu te traí com um homem.
- Você precisa de um tratamento. Um homem é naturalmente atraído por uma mulher.
- Você está cega, Marta. A igreja te corrompeu.
Talita desceu as escadas, chorando silenciosamente. Ouviu Matilde engasgar-se e correu para o quintal. O cão estava sentado, encarando-a.
- Matilde, foi você? – perguntou, estendendo a mão trêmula.
De repente, uma ventania empurrou-a, e a porta do quintal fechou-se com um estrondo. Ao virar-se, sentiu os pelos de Matilde roçarem sua pele. Enquanto coçava a barriga de Matilde, ouviu o som do portão ao ser aberto e o som da ignição do carro. A escuridão sobreveio sobre seus olhos grandes e o calor úmido tomou a proporção de sua face dócil.
Pequenos pontos em sua pele facial foram perfurados, com a pressão aumentando gradativamente. Seus joelhos estremeceram-se, oportunizando a sua queda. Suas mãos atingiram uma pelagem curta e macia, mas a força aplicada para desvencilhar-se era insuficiente. Os seus gritos foram abafados pela bocarra. Sua respiração estava ofegante. Empurrava o ser que lhe atacava, sem qualquer efeito.
O seu nariz gracioso foi arrancado violentamente. A claridade atingiu seus olhos sem rodeios. Sua mão sentiu o líquido viscoso em sua face outrora angelical. Matilde mastigava rapidamente seu pequeno nariz. Ao aproveitar a circunstância, o cão atacou novamente a criança, diretamente em seu pescoço. Gritar não adiantaria o seu salvamento.
Matilde chacoalhou o pescoço com os seus dentes cravados. O coque já não estava alinhado, porque algumas mechas caiam em sua face. O sangue escuro pingava de seus lábios rosados e encontrava a grama. Não havia quaisquer movimentos. Suas pupilas estavam dilatadas e seus olhos entreabertos. O cão a soltou, finalmente. Farejou o corpo da garota e lambeu os seus ferimentos. O vestido azul estava amarrotado, maculado e sujo.
Sob o corpo de Talita, a boneca de pano estava enterrada.
IV
Marta entrou em casa, cabisbaixa, após a discussão com André. Subiu as escadas, pesada e lenta, e encontrou o quarto de Talita vazio. Dirigiu-se ao quarto de Saulo, batendo na porta.
- Talita, você está aí? – perguntou, com voz fraca.
- Não, mãe – respondeu Saulo, envolto em uma toalha. – Talvez esteja no quintal.
Marta seguiu para o quintal. Ao abrir a porta, uma ventania forte atingiu seu rosto. Chamou por Talita e Matilde, mas só o silêncio respondeu. Caminhou com cuidado, evitando tropeços, até avistar uma pequena escavação no chão. Panos e espuma estavam espalhados.
- Matilde? – chamou novamente, tensionando a garganta.
Sua descendente mais jovem adotara uma posição ereta sobre as pernas dobradas, sentando-se em seus tornozelos. Matilde jazia deitada em sua frente, uma incisão em seu tórax expunha seus órgãos vitais dispostos sobre a grama, uma vez verde, tingida de sangue; a mão pequena, nívea e delicada de Talita, agora escura e maculada, puxava o fígado e o mordia. O cabelo da garotinha estava desalinhado, o coque afrouxado.
- Mamãe, agora estou com a postura certa – disse Talita, sorrindo. – Não vou ficar corcunda. Sou uma boa filha, não sou?
Marta gritou, agarrando a filha.
- O que você está fazendo? O que aconteceu com seu nariz?
Talita riu, limpando um pedaço de grama da fossa nasal.
- Estava fazendo cosquinha.
Marta insistiu em levá-la ao hospital, mas Talita recusou.
- Não estou doente, mamãe.
Antes que Marta pudesse chamar Saulo, Talita abriu a boca de sua mãe ao puxar o queixo dela, introduziu o seu pulso, percorreu a extensão bucal e alcançou a faringe. A musculatura interna de sua mãe envolvia o seu pequeno pulso, em um movimento de abrir e fechar. O refluxo era insuficiente para retirar o objeto estranho do qual impedia o ar de passar.
- Nossa, mamãe, cê é quente por dentro – riu.
Marta conseguiu libertar-se e o líquido de sua última refeição ainda no processo de digestão foi exposto na grama de seu quintal, acompanhado das risadas de Talita.
- Vamos brincar de cobra-cega!
A menininha apertou as bochechas de sua progenitora e subiu até cobrir os olhos dela com os seus próprios polegares. Apertou. Apertou. Apertou. Marta gritou por causa do incômodo, segurou um dos braços de Talita, mas foi ineficiente. Então, soltou-a, porém a garota segurou-se com as suas pernas ao redor de sua cintura, sem interromper o seu ato. A mãe empurrava o torso da filha, contudo a sua força era insuficiente. Sentiu escorrer de suas órbitas um líquido viscoso e quente. Os globos oculares esmagados foram retirados com violência. Os gritos de Marta foram abafados outra vez pelo braço de sua filha.
A mão que estava interior do pescoço de sua genitora soltou os olhos macerados. Ao ignorar o espaço quase completamente ocupado da porção inicial do sistema digestor, a criança impôs forçosamente o outro braço. A pressão aplicada deslocou as articulações temporomandibular da mais velha. Os joelhos da adulta dobraram-se. A trilha de respiração estava obstruída e as dores intensas produziam lágrimas misturadas com sangue.
Com o sufocamento de sua mãe concluído, Talita retirou os seus braços e permitiu o corpo maior esticar-se no gramado.
- Mamãe, conte até dez e me procure! – Talita riu, correndo pelo quintal.
V
Saulo terminou o banho, enxugou-se e ouviu os pais discutindo. Encostou o ouvido na porta, sorrindo ao escutar a mãe afundar-se em suas convicções religiosas, enquanto o pai distanciava-se. Apoiou-se na janela, refletindo.
Há seis meses, ele descobrira o vídeo do pai com o marido da melhor amiga de sua mãe e um Fédon de Élis. Na época, copiou o arquivo e o divulgou anonimamente nas redes sociais, censurando os detalhes explícitos. O escândalo foi imediato: André perdeu o cargo pastoral, Marta ganhou seguidores curiosos, e Talita virou alvo de piadas na escola.
A família mudara-se para uma cidade pequena, longe dos olhares julgadores. Agora, André queria o divórcio, mas Marta resistia.
- Não aceito isso – disse ela, com os olhos arregalados. – Crises no casamento são normais. Meus pais sempre resolveram seus problemas sozinhos.
- Não somos perfeitos, Marta – respondeu André, exausto. – Eu não sou o homem que você idealizou.
- Você não é gay, apenas se desviou. Preciso ajudá-lo a enxergar o erro.
- Você é inacreditável.
André saiu, deixando Marta em prantos. Saulo observou tudo da janela. Pouco depois, batidas fracas na porta o surpreenderam. Era a mãe, procurando por Talita.
- Talvez esteja no quintal – sugeriu ele e vestiu-se rapidamente.
Ao ouvir o portão da garagem abrir novamente, Saulo viu o pai retornar. Decidiu ficar no quarto, evitando mais conflitos.
VI
André entrou em casa, exausto após a discussão com Marta. Na cozinha, encontrou-a de costas, realizando movimentos bruscos, como se cortasse algo. O cheiro de sangue encheu o ar.
- Marta, posso ajudar? – perguntou, aproximando-se.
Ao chegar mais perto, viu Talita deitada na pia, sem nariz, o crânio aberto e o cérebro parcialmente retirado. Marta mastigava um pedaço, virando-se para ele com um sorriso ensanguentado.
- Não se preocupe, querido – disse ela, baixinho. – Estou preparando o almoço. Talita está dormindo.
André caiu de joelhos, nauseado.
- O que você fez?
- Já disse: estou preparando o almoço – respondeu Marta, tirando outro pedaço do cérebro. – Quer experimentar? Fiz com amor.
Ao tentar levantar-se, André escorregou no próprio vômito. Marta pegou um cutelo e golpeou seu rosto repetidamente, deixando-o inconsciente.
Enquanto isso, minutos mais tarde, Saulo descia as escadas, ouvindo baques molhados. Na cozinha, encontrou o pai agachado, batendo a cabeça de Marta no chão. O crânio de sua mãe estava disforme na parte anterior, com os cabelos molhados e um desenho onde a sua cabeça colidia se formou, vermelho.
- Mãe! – gritou Saulo, afastando o pai. – O que você fez?
André riu, sentando-se ao lado do filho.
- Eu não as matei. Foi o pecado delas. Agora estão em paz.
Saulo chorou, e André enxugou sua face.
- Não chore. Você também será livre.
Com um movimento rápido, André ergueu o cutelo e golpeou o rosto de Saulo repetidamente, desfigurando-o, até que ele desmaiou. Largou a arma branca e caminhou ao quintal. A boneca de pano estava reconstruída parcialmente, como se fosse mágica, como se recuperasse com a morte da família.
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