A Boneca de Vidro
Conto escrito por; Nicky97araujo
Clara nunca acreditou em lendas urbanas ou histórias de terror. Como jornalista investigativa, ela sempre procurou explicações racionais para tudo, até mesmo para o inexplicável. Quando a oportunidade de cobrir a descoberta de uma boneca rara em um leilão na pequena cidade de São Francisco do Sul surgiu, ela não hesitou. Era um objeto peculiar, dizem que de vidro, com olhos azuis e um sorriso inquietante. O tipo de coisa que atrai olhares curiosos, mas também provoca calafrios. Clara, contudo, estava mais interessada na história por trás da boneca do que no próprio item em si. Ela sabia que, muitas vezes, o mistério estava nos detalhes escondidos e nas lendas urbanas que brotavam das sombras.
Ao chegar à cidade, em uma manhã cinzenta e enevoada, Clara sentiu que algo estava fora de lugar. A vila era isolada, com ruas estreitas e casas antigas que pareciam sussurrar segredos esquecidos. O casarão onde a boneca foi encontrada ficava afastado do centro, em uma área tomada pela vegetação densa. Ao avistá-lo pela primeira vez, um aperto tomou seu peito. O edifício parecia um cadáver esquecido, com janelas quebradas e portas corroídas pela passagem do tempo. Mas, de alguma forma, ele exalava um magnetismo estranho, como se aguardasse uma visita.
A porta da frente estava entreaberta. Clara empurrou-a com cautela, e o rangido da madeira ecoou pelos corredores escuros, como se o próprio casarão estivesse se queixando de sua presença. O cheiro de mofo e madeira apodrecida invadiu suas narinas, e um silêncio opressor tomou conta do lugar. Ela deu um passo à frente e, ao atravessar o corredor, sentiu o piso de madeira ceder levemente sob seus pés. O som de cada passo parecia amplificado, como se a casa estivesse escutando.
A sala onde a boneca estava localizada era grande e vazia, com uma mesa de madeira escura no centro. Ela se aproximou, os olhos fixos no objeto. A boneca estava ali, em cima da mesa, com seus olhos de vidro azuis mirando-a de forma intensa, penetrante. Seu cabelo dourado estava trançado com perfeição, e o vestido de seda que usava parecia intacto, apesar do tempo que havia se passado desde a criação. Mas Clara não podia negar o desconforto que sentia. Algo estava errado com aquele olhar.
Ela estendeu a mão lentamente, tocando a superfície fria do vidro. Imediatamente, um choque percorreu seu corpo, um arrepio gelado que a fez recuar. Antes que pudesse se recompor, uma risada baixa, quase imperceptível, ecoou pelos corredores da casa. Clara congelou. Não era uma risada humana. Era algo mais, como se a própria casa estivesse zombando dela.
O ambiente, até então silencioso, agora parecia pulsar com uma energia inquietante. O ar ficava mais denso, como se a casa estivesse viva, observando-a. Clara, tentando ignorar o pânico crescente, se afastou da boneca e olhou ao redor, mas não havia nada fora do normal. A risada cessou, e o silêncio voltou a tomar conta do casarão.
Na manhã seguinte, Clara foi até a biblioteca local. O clima pesado e a neblina que ainda pairava sobre a cidade não ajudavam em sua sensação de desconforto. O lugar, silencioso e empoeirado, parecia ter sido esquecido por gerações. Foi lá que encontrou a resposta para suas inquietações. Folheando um antigo livro sobre a história da cidade, ela se deparou com um relato sobre a boneca. Não era apenas uma curiosidade de mercado ou uma peça de valor histórico. A boneca tinha uma história sombria.
Criada por Augustin Haumann, um renomado artesão do século XIX, a boneca fora esculpida como uma réplica de sua esposa, que morrera tragicamente em um acidente. Haumann, obcecado pela dor da perda, tentara, de algum modo, trazê-la de volta. Ele havia criado a boneca com uma precisão assustadora, utilizando técnicas que iam além da arte. Os rumores diziam que Haumann usara métodos ocultos para infundir algo "vivo" na boneca, um tipo de energia que transcendeu o vidro e o barro. O que se seguiu, de acordo com as lendas, foi uma série de mortes e tragédias envolvendo aqueles que entraram em contato com a boneca. Ela parecia ser mais do que um simples objeto inanimado; parecia ter um poder, ou uma vontade própria.
A cada página virada, o desconforto de Clara aumentava. Havia algo de maligno na boneca, algo que ela não podia mais ignorar. A história estava muito mais viva do que ela imaginava. Ela precisava voltar à casa, sentir a presença dessa força, e talvez, descobrir o que realmente acontecia quando alguém tocava aquela boneca.
De volta ao casarão, Clara entrou com um misto de medo e determinação. O ar estava mais pesado, e o silêncio parecia gritar em seus ouvidos. Ela subiu as escadas lentamente, quase como se tivesse sido atraída por uma força invisível. O quarto onde a boneca estava parecia mais gelado do que antes. Ela estava ali, exatamente onde Clara a deixara, mas algo parecia diferente. Seus olhos de vidro estavam mais vivos, mais intensos, como se estivessem aguardando.
Quando Clara se aproximou, um som baixo, quase imperceptível, cortou o ar. Era uma voz, sussurrando seu nome. Ela se virou, mas não havia ninguém. A casa estava deserta. O medo começou a tomar conta de sua mente. A risada, agora mais alta, mais distorcida, preencheu o ambiente. Clara tentou afastar-se, mas, antes que pudesse dar mais de um passo, ouviu um som inconfundível: passos. Lentamente, como se alguém arrastasse os pés pelo corredor.
Ela congelou. Não havia ninguém ali. Mas a sensação de que estava sendo observada era avassaladora. A risada, que agora parecia vir de dentro de sua própria mente, se intensificava. Clara não sabia mais se estava sonhando ou se aquilo era real. Sua mão se estendeu involuntariamente para a boneca, e quando tocou a superfície de vidro novamente, o choque foi ainda mais forte. O sorriso da boneca, antes suave, se alargou grotescamente. Seus olhos se fixaram nela com uma intensidade quase humana.
"Deixe-me ir…" a voz sussurrou, agora nítida, mas não vinda de nenhum ser humano. A boneca, ou aquilo que ela representava, falava diretamente em sua mente. Clara sentiu uma presença crescente, uma força se erguendo da casa. Algo estava sendo despertado. E, ao olhar para a boneca, ela viu algo que a fez quase desmaiar de terror. A boneca se moveu.
Os pés de vidro deslizaram pela mesa, e a boneca se ergueu lentamente, como se fosse um ser vivo, controlado por alguma força invisível. Seu sorriso se ampliava, e seus olhos pareciam brilhar com uma luz sobrenatural.
Clara, com o corpo gelado pelo pânico, virou-se e correu pelo corredor. A casa parecia pulsar ao seu redor, suas paredes estremecendo como se estivessem vivas. Ela não ousou olhar para trás, mas sabia, sem sombra de dúvida, que a boneca a estava seguindo. Seus passos, rápidos e pesados, ecoavam pelos corredores escuros. Quando finalmente alcançou a porta, a luz da lua iluminou o exterior, mas algo mais a observava. A boneca estava lá, parada, na soleira da porta.
Clara não parou para perguntar como ou por que. Ela correu para a floresta, sentindo que não deveria olhar atrás. O vento frio cortava seu rosto, mas o som da risada distorcida ainda ecoava em seus ouvidos. Ela sabia que, de alguma forma, a casa não a deixaria ir. Mas ela nunca mais voltaria.
Nos dias seguintes, o casarão foi consumido por um incêndio misterioso. Ninguém soubera dizer a causa, e a cidade rapidamente esqueceu o incidente, como se fosse um pesadelo coletivo. Mas Clara sabia a verdade. A boneca não estava destruída. Ela jamais seria.
Algumas semanas depois, Clara soubera de um novo leilão, em outra cidade distante. Uma boneca rara havia sido vendida. A descrição dizia: "Boneca de vidro, com olhos azuis penetrantes e um sorriso enigmático."
Mas o que ninguém sabia é que a boneca não era apenas uma peça de antiquário. Ela era um objeto com vontade própria. E agora, quem olhasse para ela, poderia nunca mais ser o mesmo.
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