34. Ele Sabe
Tomas Steve não foi trabalhar naquela manhã, o que, por algum motivo, deixou Samira Sabino ainda mais nervosa do que se ele tivesse ido.
Se Tom estivesse sentado ao seu lado, esboçando a falsa cordialidade e o olhar dissimulado, ela conseguiria monitorá-lo. Se ele estivesse ali, significaria que não estaria investigando sua vida ou indo à polícia ou contando a todo mundo que tinha algo de muito errado com Amanda Castro, a nova secretária pessoal do prefeito, e que todos tinham que desconfiar dela.
Não quero saber, Amanda, ele diria, com uma venenosa insinuação de parceria no tom de voz. Se precisar me contar porque seu rosto está cheio de cicatrizes, pode me contar, eu vou ouvir, não precisa mais mentir. Depois, eu te jogo na fogueira pelas suas mentiras.
Mas Tomas Steve não deu as caras.
– Laura? – Sam chamou a senhora que passou em sua mesa naquela manhã a fim de deixar os relatórios financeiros para Leonardo Rossi.
– Sim?
– Sabe de Tom?
Laura esbanjava uma falsidade que Sam não sabia se era apenas pelo excesso de maquiagem no rosto da mulher com pelo menos sessenta anos, ou pelo jeito como ela falava. Uma mistura de ambos, talvez. E ela o fez de novo assim que Sam mencionou Tom. Laura esboçou uma cara triste e olhou para baixo.
– Ah, o coitadinho... Nem deveria estar aqui, se quiser saber minha opinião.
Sam não queria.
– Ah, sim – ela concordou. – As pessoas superam suas dificuldades de formas diferentes, eu acho.
– Enfurnar-se no trabalho e deixar a pobrezinha da esposa em casa?
E aí estava o veneno, Sam pensou.
– Bom...
– Não sei do homem, Amanda, querida, mas se quiser saber minha opinião – de novo, Sam não queria –, espero que ele esteja em casa cuidando da pobrezinha.
Pobrezinha, que adjetivo infeliz.
– É, com certeza.
Samira sorriu, e Laura a deixou ali. A conversa não levou a lugar nenhum, e o dia foi rodeado pela mais desesperadora ansiedade, e todos os cenários possíveis passaram-se pela sua cabeça, cujos desfechos nenhum era bom.
Debaixo da mesa, Sam calçou os tênis e jogou os saltos de lado. Que invenção horrível, aqueles sapatos.
Ela livrou o caminho para as escadas de emergência e guardou o estilete no tênis. Só assim conseguiu fazer o dia passar, e a notícia de que estavam investigando o desaparecimento de três Corvos que ela sabia muito bem onde desovaram os corpos não deixou nada mais fácil.
Parecia que seria um dia normal – ou o mais normal que aqueles dias pudessem ser.
Ela faria o trabalho do prefeito, fingiria que era a secretária perfeita que sabia esconder bem as merdas da gerência, e tudo caminharia bem. Leonardo Rossi amava Amanda Castro e Samira sabia ser Amanda Castro.
Parecia que seria um dia normal, pena que não foi.
Samira adiara seu horário de almoço, em uma tentativa de esperar a fome bater para comer. A fome não veio e o dia passou.
Talvez ela só estivesse paranoica. Seu lado cismado dizia para ela não sair dali, do lado do prefeito. Tomas deve estar escondido no corredor ao lado esperando você sair para contar a todo mundo os seus segredos. Ele sabe ele sabe ele sabe.
Era três e quarenta e cinco da tarde, então, quando ela decidiu que precisava comer, mesmo que o estômago não aceitasse nada. Sair para a rua, que seja. Um sol na pele seria bem-vindo.
Do lado de fora do prédio da prefeitura, o centro da cidade tinha de tudo para ser considerado normal, mas o padrão de normal para Samira era ver ao menos alguns pares de olhos como os seus. Aquele padrão de olhos negros impostos como um mar de cópias e cópias uns dos outros parecia tão fora do normal que aquela era uma das últimas palavras que lhe vinha à mente quando olhava para o cotidiano que a cercava.
Tudo o que fez foi sentar em um dos extensos degraus da escadaria do prédio onde trabalhava.
Fechou os olhos.
Respirou fundo.
Sentiu como se as paredes estivessem se fechando ao seu redor. De um lado, Tomas. Do outro, as investigações que não tardariam a chegar neles.
O sol quente estava mais a sufocando dentro daquele blazer do que a ajudando a espairecer.
Ela se levantou e rumou sem pensar demais em direção à primeira cafeteria de esquina que sabia que lhe prepararia um pão com ovo e um café para forrar o estômago.
Foi quando o dia, que tinha tudo para ser normal, virou de cabeça para baixo.
Primeiro, Samira ouviu o grito.
Era um grito de mulher, esganiçado, desesperado, e vinha de trás dela.
Samira se virou. Vinha do mercado do bairro onde ela acabara de passar em frente.
Era um grito contínuo, animalesco, que foi logo seguido pelo murmúrio crescente ao redor deles. O caos se alastrou rápido, a agitação ao seu redor começou, e a mulher achou que se tratava de um assalto.
Droga, seu coração dispararia menos se fosse a porcaria de um assalto.
– O menino! – a voz gritou, chorosa, alucinada, como se ela tivesse sido esfaqueada. Alguma coisa estava muito errada. Muito. – Segurem ele!
Sam deu um passo para trás, para longe do mercado, e não tardou a um menininho sair de lá de dentro. Correndo, aos prantos, sem fôlego, desesperado, as mãos abanando. Devia ter a idade de Benji. Tinha o tamanho de Benji, e a pele era negra como a de Raquel.
Alguns tentaram pará-lo, como a mulher ordenou, mas ele só correu. Correu e correu e, antes de esbarrar em Samira e derrubá-la no chão, a mulher teve certeza de duas coisas: a primeira era que aquele garotinho não mais velho que Benji não tinha olhos de Corvo e, sim, duas íris castanho-claras desesperadas para fugir e salvar sua vida. A segunda, ainda pior, era que, quando ele esbarrou nela, Samira foi ao chão e bateu a cabeça em um banco de cimento da rua. O impacto a desconcertou, o sangue escorreu pelo rosto e, quando ela conseguiu erguer-se de quatro apoios na calçada, viu que uma das lentes de contato voara do olho direito e jazia no chão à sua frente.
O desespero que acometeu Samira Sabino foi tão pujante que a mulher teve certeza que vomitaria, ou desmaiaria, ou os dois.
Ele a derrubou. O garotinho a derrubou, e Samira conseguia ver a lente de contato negra do olho direto ao lado de sua mão, mas tremia e não ousava olhar para cima, não ousava pegá-la.
O caos cresceu ao redor dela.
Merda!, ela queria gritar, xingar, bater, chorar. O menino causou o alvoroço. Ele tinha os olhos como os dela e estava ali, no meio de um monte de gente que queria matá-lo, e ela não podia ajudar, e logo – era questão de tempo era questão de segundos – eles descobririam que Amanda era Samira e arrancariam seus olhos como tentaram uma vez e ela não teria a mesma sorte de novo.
Sentiu o gosto da bile na língua.
Alguém tocou seu ombro.
– Moça? – uma voz chamou. – Moça, está bem?
Samira sentia o corpo tremer quando ele tentou levantá-la. Se ela conseguisse pegar a lente de contato e correr, será que alguém perceberia em meio ao caos quem ela era?
A mão em seu ombro insistiu, e Sam teve medo de ser pisoteada pela balbúrdia e o caos que uma criança causou.
Até que, antes que ela pudesse fazê-lo, uma mão entrou em seu campo de visão e tomou a lente de contato do chão. No lugar, colocou um óculos escuro, e Samira não pensou duas vezes antes de colocá-lo no rosto.
Ela não sabia quem era, mas alguém ajudou-a a ficar de pé, a colocar os óculos, e Sam sentiu o aperto forte de uma mão em seu cotovelo.
Achou que fosse Mat.
Deus, como ela queria que fosse Mat.
Mas, quando olhou para cima, por sob o disfarce daqueles óculos de sol escuros, Samira viu que quem pegara a lente, quem lhe dera os óculos e quem segurava seu braço era Tomas Steve.
Ela teve certeza de que ia, sim, botar o pouco de comida que ainda tinha no estômago para fora.
Tom não olhou para ela quando a guiou contra a multidão alvoroçada. Não falou com ela e nem procurou por seus olhos. Afastou com as costas de uma das mãos as pessoas que tentavam ver se Samira estava bem e, tudo o que restava a ela, sua última esperança, era deixar que Tomas Steve a guiasse.
Ele foi até o meio fio e abriu a porta de um carro. Colocou-a lá dentro e fechou a porta. Quando deu a volta no próprio veículo e sentou-se no banco do carona, Samira Sabino já tinha tirado o estilete de dentro do tênis e apontava a lâmina para ele.
•
Mateus viu tudo.
Estava voltando de uma conversa intensa com Drica quando estacionou o carro na frente da prefeitura.
Viu quando a mulher do mercado gritou, quando a criança correu, quando Samira caiu. Viu quando ajudaram-na a se levantar e viu-a com óculos escuros, as mãos trêmulas segurando-o no rosto enquanto alguém a guiava para longe do caos que uma criança causou.
À princípio, Mat não entendeu o porquê do caos, até ouvir os gritos cortados e sobressalentes.
– Os olhos!
– Os olhos dele!
– Peguem o menino!
– É um deles!
E Mat culpou-se por ser lento demais. Por não conseguir ajudar o menino e não conseguir alcançar Samira quando viu aquele homem colocá-la em um carro.
Mat pegou o carro da empresa e tentou segui-lo, mas perdeu-o de vista antes mesmo de dar a partida no motor.
Bateu no volante. Xingou. Machucou os nós dos dedos ao socar o console.
Ele tinha que avisá-los.
Merda.
Sem margem de erro.
E lá estava, a fatídica verdade.
Samira foi descoberta. E os outros precisavam saber.
•
– Abaixe esse estilete, Amanda – Tom ordenou, olhando-a pelo canto dos olhos. – Não vai me matar com isso.
Samira tremia. A mão em volta do cabo do material estava frouxa, pouco incisiva, e ela não via escapatória.
Podia matar Tomas Steve ali mesmo, mas sabia que ele não era um idiota. Devia ter contado para alguém, devia ter um plano de ação. E aí, e se o matasse e pulasse do carro? Quanto tempo teria para fugir da cidade? Conseguiria contar aos outros? Ela obviamente levantaria suspeitas se tentasse. A pancada na cabeça sangrava, ela sentia o líquido ferroso escorrer pelo rosto e manchar sua blusa.
Sam não podia cair nas mãos deles de novo.
A memória de acordar naquela base meses antes a sufocou. Lembrou do medo de quando a amarraram na cadeira. Da dor na perna quando o coronel enfiou a faca ali sem piedade e rasgou-a como um açougueiro. De quando tatearam por debaixo de sua roupa, de quando enfiaram uma tesoura em seus olhos. As lágrimas começaram a brotar por detrás dos óculos escuros, e Sam pensou se não seria mais fácil rasgar a própria jugular com o estilete.
Não.
Enquanto houvesse esperança de ver Andy e Benji outra vez, ela lutaria.
– Pare a porra desse carro agora ou eu juro que enfio essa merda na sua garganta.
– Amanda...
– Não me chame de Amanda!
Tom parecia... paciente. Ele soltou o ar, uma mistura de nervosismo com compreensão. Ele dirigia, olhava para a frente, e media os movimentos. Realmente, aquela mulher em nada se parecia com Amanda. Olhou para ela de relance, e teve a certeza de que ela falava sério.
– Eu não vou te machucar.
– Vá se fuder! – Sam bradou. – Pare a merda desse carro, agora!
– Eu salvei a sua vida, Amanda!
– Não me ch-
– Você não me deu um nome!
Samira tremia.
– Onde está me levando?
Tomas parou em um semáforo. Ela tentou abrir a porta, mas estava trancada e só ele conseguia destravá-la.
Ele viu o desespero da mulher ao seu lado, a inquietação em cada mísero movimento.
Por mais que ela tentasse esconder, por mais que tentasse empunhar um estilete como se fosse uma faca e encenar uma rispidez que não tinha, Tom via o medo transbordar dela. Fosse quem fosse, não era mais Amanda Castro.
– Preciso te mostrar uma coisa.
Samira riu com escárnio.
– Deve achar que eu sou muito estúpida.
– Preciso te mostrar uma coisa que nos deixa quites.
As sobrancelhas dela se cerraram.
– Eu juro por Deus que se não abrir essa porta agora...
– Se eu abrir a porta, Amanda, e você sair daqui andando, vai fazer o quê? – ele provocou. – Vai pro hospital cuidar desse corte na cabeça sem a única coisa que te mantém viva aqui? Vai voltar a trabalhar amanhã na mesa do lado da minha e fingir que não sei de nada?
O lábio inferior dela tremeu.
– Vai fazer o que comigo, Tom? – ela perguntou, a voz vergonhosamente falhando. – Porque parece que temos um impasse.
– Um impasse? – ele olhou para ela. Viu o vislumbre do olho-pacato por detrás do óculos que lhe deu para se esconder. Ainda não sabia a cor deles.
– Ou você me mata ou eu te mato.
Foi a vez de Tom de rir com amargura.
– Me dê dez minutos.
– Onde está me levando, porra?!
– Pra minha casa.
Ela olhou-o com descrença.
– Está mentindo.
– Eu não quero te machucar – ele repetiu, incisivo.
– O que tem na sua casa?
– Vou te mostrar. Mas vai ter que me dar o estilete.
– Então acha mesmo que sou estúpida.
– Amanda...
– Porra.
– Vou te chamar de Amanda até me dar um nome.
Ela calou-se.
– Me dá o estilete.
– Não.
– Vou te levar pra porra da minha casa e não vou deixar você colocar ninguém lá em risco.
Ela estagnou. Será que ele falava a verdade? Ou algum resquício desta? Estava se sentindo ainda mais encurralada, como se mais uma parede tivesse se fechado e só lhe restasse segui-lo.
Tom era um homem grande. Forte. Mas ela apostava que era mais rápida. Ainda mais depois da manhã que teve com Eric, em que descobriu que, se quisesse, conseguiria correr como corria antes de toda aquela tragédia.
Tateou os bolsos para perceber que não levava consigo o celular. Não conseguiria falar com nenhum deles.
Samira fez o que não achou que faria. Ela baixou o estilete. Guardou a lâmina e jogou-o no colo dele. O que lhe restava era esperar e ver o que aquele homem queria dela.
•
O clima era fúnebre dentro daquele apartamento tão sucinto, onde não podiam nem sentir os próprios pesares em paz.
Cada um deu sua desculpa nos trabalhos – enjoo, febre, meu avô morreu, coisas do tipo. O importante é que estavam todos reunidos quando Mat chegou, esbaforido, e viu-se obrigado a contá-los que Samira fora descoberta.
Zoe estava sentada no chão, as mãos sobre o rosto, chorando um choro silencioso, como se estivesse segurando-se para não gritar. Drica jogou-se ao seu lado, as pernas cruzadas, olhando para a cara de Mat como se ele tivesse brincado com eles e Samira fosse entrar pela porta em minutos e rir da piada de mau gosto.
Miho tinha uma das mãos sobre a boca e fitava o chão. Estava imóvel há tanto tempo que parecia em choque.
Eric estava no sofá. O corpo inclinado para a frente, os cotovelos apoiados nos joelhos, as pernas trêmulas de quem precisava liberar toda a ansiedade por algum lugar. As mãos estavam cravadas no couro cabeludo, e aquele, com toda certeza, era o pior dia que teve desde que chegaram ali. Aquele lugar minúsculo estava ainda mais claustrofóbico.
Mat estava em pé, os braços cruzados, o pé batendo no chão.
– Como vamos atrás dela? – Zoe murmurou por entre as mãos, a voz de um soluço doloroso soando abafada.
Ninguém respondeu.
A mulher tirou a mão do rosto e os fitou, sem pudor pelas lágrimas.
– Não são vocês que não deixam ninguém pra trás? – ela gritou. – Como vamos atrás dela?!
– Zoe... – a voz de Miho chamou pelo nome da amiga, mas ele parecia tão sem palavras quanto os outros. – Temos muito a perder.
– Foda-se! – Ela se levantou. – Você sabe o que vão fazer com ela, não é?
Eric estremeceu. Empalideceu. Ele sabia claramente o que fariam com ela.
– Vamos avisar os outros, então. A gente dá um jeito, eles vão atrás dela... – Zoe chorou, quase suplicando. Sentiu-se desamparada. Odiou o silêncio deles. Odiou tanto que quis gritar. Então, sentiu uma mão envolver-se na sua. Ela olhou para baixo e Drica, ainda sentada no chão, a olhava com os lindos olhos claros. Zoe desabou. Jogou-se outra vez ao lado dela e deixou-se ser abraçada pela mulher.
– Ela sabia – foi tudo o que Eric conseguiu dizer, e percebeu que as lágrimas quentes ganhavam espaço por entre as palmas das mãos. – Ela sabia que estavam desconfiando dela.
– O quê? – Miho perguntou, incrédulo.
– Me contou essa manhã, quando fomos correr.
– Quem? – Mat indagou.
– Um tal de Tomas.
– Foi ele mesmo. Tomas Steve. Trabalha na mesa do lado dela.
– Mas que porra! – Drica despejou. Fazia carinho em círculos nas costas de Zoe com o polegar. – E ela não nos contou nada?
– Disse que se afundasse – Eric tirou as mãos da cabeça e usou de todo seu esforço para continuar íntegro –, afundaria sozinha.
– Talvez estejamos nos precipitando, tá legal? – Mat quis amenizar. – Não foi como se eu tivesse visto a polícia levá-la, foi só... foi aquele cara.
– E tem certeza do que viu, Mat? – a voz de Miho foi inquisitiva, e Mateus o fuzilou com o olhar.
– É claro que tenho.
– A lente caiu? – Zoe indagou.
– Porra, só pode ser! – Mat despejou. – O cara estava segurando ela como se ela fosse fugir, ela estava de óculos escuros, segurando eles no rosto e... e tinha sangue... se isso for a merda de um mal entendido, tudo bem, eu realmente espero que seja. Mas eu liguei pra ela a tarde inteira, ela não voltou, nenhum sinal dos dois, e...
– Ainda tem a chance de ela estar bem... – Zoe murmurou. – Qual é a dos óculos escuros?
– Não sei, mas de qualquer forma, está encrencada – Drica apontou. – Se sabem, então...
Drica calou a boca. O corpo de Zoe tremia contra o seu. Não podia fazer isso com ela.
– Ok, mas estamos esquecendo de um elefante branco – Miho disse, tentando não pensar momentaneamente que perderam Samira, de novo. – Um menininho, você disse? De olhos-pacatos?
– Eu não vi os olhos dele – Mat passou as mãos pelo cabelo, ansioso. – Mas, sim, foi o que causou a confusão.
– Tem mais como nós? – Drica perguntou.
– Com certeza – Eric levantou-se, inquieto. – Só não achei que estivessem por aqui.
– Como vivem aqui? – a mulher insistiu. – Conseguimos achá-los?
– Eu não sei – Eric andou de um lado para o outro. – Olha, preciso contar uma coisa.
Os outros o olhavam – de alguma forma – ainda mais ansiosos.
Eric parecia estar prestes a vomitar de novo.
Mas, para a surpresa dos outros, um soluço irrompeu de sua garganta.
Drica se levantou. Deu um passo na direção dele, as sobrancelhas arqueadas.
– O que aconteceu, Eric?
Ele respirou fundo, o ar pesado no peito.
Contou tudo.
Contou de como suas suspeitas estavam certas, e de que a taxa de mortalidade de bebês não era por acaso. Eric contou que, horas atrás, segurou uma pequena criaturinha nos braços, e o menino o olhou com olhos iguais aos dele. Eric contou que o segurou quando Genevive o matou. Eric contou que o matou. E a bile voltou para a garganta, mas tudo o que irrompeu foi um soluço doloroso e sufocante.
Ele nem percebeu quando Drica o abraçou, mas sentia-se como uma criança, outra vez precisando de colo. Se ainda não tivesse desabado completamente, então era questão de segundos. Primeiro a criança, depois Samira.
– Meu Deus... – Zoe pôs-se a chorar outra vez. – Eles estão matando bebês?
– Os que nascem com olhos como os nossos. – Miho olhava friamente para o chão durante todo o relato.
– Como isso pode estar acontecendo? – Drica murmurou contra o ombro do amigo, agora buscando conforto ao invés de ofertá-lo.
– Não passam de monstros – Mat balbuciou, mergulhado em ódio. – Todos eles.
Eric desvencilhou-se de Drica e, em dois passos, alcançou as bagunças deles sobre o estrado da única cama que veio com a casa. Ele revirou as coisas de Samira, apenas o suficiente para achar o livro que ela lhe mostrou. Voltou-se para eles e jogou-o na mesa de centro.
– É assim que veem a gente.
"Como uma geração extinta destruiu o mundo em que vivemos", lia-se o subtítulo debaixo da foto de dois olhos azuis como os dele.
Extinta, Drica leu e releu a palavra.
Geração extinta.
– O que acham que vão fazer sobre a criança na cidade? – ela indagou, o olhar desfocado pousando no livro que ninguém ousara tocar ainda.
– Jogar pra baixo do tapete – Mat disse.
– Como? – Drica insistiu.
– Vão dar um jeito nem que metam uma bala no meio da testa de todo mundo que disser que testemunhou um olho-pacato no meio da cidade perfeita deles – Eric cuspiu o ódio nas palavras. Ele caminhou até o banheiro e, em segundos, estava com as lentes negras nos olhos.
– Onde vai? – Drica seguiu-o.
O homem pegou a jaqueta jogada no sofá e a vestiu.
– Eu preciso de pelo menos uma das respostas pra tudo o que aconteceu hoje.
– Vai atrás da Sam? – Zoe levantou-se, esperançosa.
Eric murchou, porque sabia que não tinha como o fazer.
– Vou descobrir o que aconteceu com ela.
– Eric... – Drica segurou em seu antebraço, mas ele soltou-se.
– Eu vou com você. – Zoe já estava com as lentes antes de responder.
Eric colocou a mão na maçaneta, mas Mat já prostou-se ao seu lado antes mesmo que ele pudesse girá-la. Não o impediu, mas foi bem firme quando o disse:
– Sabe que estão investigando os Corvos que matamos, não é? – a pergunta foi retórica. – E que você estava atrás do volante da van que roubamos deles.
Eric olhou fundo nos olhos de Mat, que sustentou o fuzilamento das lentes negras como uma rocha.
– Põe na minha lista de problemas, então. – Eric virou-se para Zoe. – Vamos?
Ela concordou com a cabeça e já estava ao seu lado quando ele abriu a porta.
– Liguem se souberem de alguma coisa – o homem pediu. – Qualquer coisa.
Mat concordou com a cabeça.
Quando Eric fechou a porta, a noite lá fora caiu.
Perceberam, enfim, que estavam enterrados no próprio buraco que cavaram, e não viam como sair.
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