29. Reunião Com Gente Importante | Parte I
Dois meses voaram, e os seis sobreviventes já viram tanto que parecia ter se passado pelo menos um ano inteiro.
Morriam de saudades dos que deixaram no abrigo, e oravam todos os dias – cada um do seu jeito – para que estivessem bem.
David prometeu que, se houvesse uma forma, eles se comunicariam. Mas, até então, nada de notícias suas, e talvez fosse melhor assim. Em alguns dias, se todos os planos dessem certo, eles se encontrariam para dar sinal de vida.
Os seis confiavam tanto nele quanto em Raquel para manter aquele lugar em segurança pelo tempo que fosse necessário para fazerem as cenas vingarem daquele lado. E cada um seguia seu destino, todos os dias, e voltava com mais e mais para jogar na roda.
Aquela noite, em especial, tinham planejado de conversar. Era uma noite fria no começo de dezembro. As ruas de toda Luso já começavam a ser enfeitadas para o natal. Eles viram pinturas de Jesus com olhos negros espalhados pela cidade, alegando que, se aquele homem foi tudo o que disseram, então ele era um Corvo, é claro. Foi o jeito que conseguiram do catolicismo não morrer com os olhos-pacatos.
Naquela noite, os ventos que roçavam as brechas nas janelas eram cortantes, e eles já começavam a se preparar para o frio de verdade que os acometeu rápido demais. O apartamento era frio, sem isolamento térmico, mas conseguiram providenciar cobertores para todos eles. Dormir perto do piso frio não ajudava.
Foi a vez de Eric e Mat de prepararem o jantar, e os seis acabaram desfrutando de arroz com feijão e frango com legumes enquanto se encaravam, esperando alguém que tomasse as rédeas da conversa.
Miho o fez.
– O metrô vai entrar em obras no porto – contou.
– É, eu soube. – Zoe respirou fundo. – Isso vai atrapalhar os planos, não vai?
– Talvez. Mas não é de todo ruim. – Ele fez uma pausa para dar mais uma garfada no prato, o que deixou os outros ansiosos por explicações. – Talvez eu consiga o mapa do metrô com essa bagunça toda.
– Espera – Drica o interrompeu, falhando ao ligar os pontos em sua cabeça –, não conseguimos o mapa metropolitano em qualquer lugar? Tipo, é só abrir o Google.
– É, mas não é isso que eu quero – Miho respondeu, paciente. – Há centenas de túneis que não estão citados em lugar nenhum. Não são utilizados pelas linhas metropolitanas, ou por estarem desativados ou por ainda não terem sido colocados em prática, e são esses que nos importam.
Drica concordou, seguindo a linha de raciocínio dele. Engoliu a própria frustração por não estar fazendo parte dos planos do pai como gostaria. Conseguia imaginar o que David queria com as linhas de metrô, mas queria ter ouvido da boca dele.
– E vocês? – Miho indagou.
Drica deu de ombros.
– Eu não tenho muito a acrescentar, ainda. Mas – apressou-se a dizer – tenho tomado notas.
Zoe concordou com a cabeça.
– Idem.
Os olhares recaíram sobre os outros três.
– Eu tive uma conversa curiosa ontem – Eric despejou, como se estivesse ansioso para falar. – Com a chefe de enfermagem. Eu não sei o quanto é relevante para nós, mas... ainda assim.
– Sobre o que? – Drica inclinou-se para a frente, na direção dele, curiosa.
Eric contou-lhe, então, da conversa com Genevive. Sobre sujar as mãos e fazer a coisa certa, sobre as leis e códigos de conduta que mudaram e como estava nervoso por não saber no que estava se metendo.
Silêncio.
– O que acha que é? – Foi Samira quem perguntou.
– Eu não sei. – Eric balançou a cabeça, um pouco desiludido.
– Acha que estão doentes? – Drica deduziu. – Os bebês? Que estão nascendo com alguma doença?
– É provável que seja algo do tipo, mas essa não é a questão – o homem continuou.
– E qual é? – sua amiga loira insistiu.
– A questão é que eles estão escondendo mais alguma coisa. E eu vou descobrir o que é. E volto para contar para vocês.
Depois do que pareceu um longo minuto, Zoe preencheu o vazio:
– E você, Sami? – Zoe indagou.
Todos fitaram Samira.
Samira Sabino sabia que carregava um piano nas costas. Estava no epicentro da merda toda, enfurnada naquele prédio ao lado do prefeito. Um passo em falso e todos eles estavam mortos, mas todos os cinco confiavam em Samira o suficiente para saber que ela era cautelosa. Talvez por ter visto de perto do que os Corvos são capazes.
– Amanhã o prefeito tem uma reunião com gente importante.
– O quão importante? – Mat perguntou.
– Prefeitos de outras cidades próximas, senadores, gente importante. – Samira brincou com o brócolis no prato. Estava murcho, mas ela não reclamaria, nunca. – Eu tenho uma teoria que não consegui colocar à prova ainda.
Eles esperaram pacientemente para que ela continuasse.
– Que os Corvos não sabem da existência de Nóvora.
As respirações ficaram pesadas dentro daquele estúdio.
– Não achei que saberiam. – Drica respondeu, enfim.
– Imagina se soubessem? – Zoe concordou. A atenção voltou-se para ela. – Quer dizer, eles escondem o passado como se fosse... como se nunca tivesse existido, toda essa chacina. Como se os olhos deles fossem os únicos que já estiveram nessa terra. Imagina se soubessem que, há alguns milhares de quilômetros do outro lado do oceano estivesse nascendo uma nova civilização resistente a tudo o que eles fizeram. Imagina se soubessem que ainda existimos e estamos bem debaixo dos narizes deles.
– Guerra. – Miho respondeu, como se fosse natural.
– Caos, na verdade – Eric acrescentou. – Já estamos em guerra. Seria só... caótico. O povo não deve saber.
– Mas o prefeito sabe – Samira jogou. – É óbvio que sabe. É o lugar mais ameaçado por nós, Nóvora é do outro lado do oceano.
– Acha que a reunião amanhã...? – Mat começou, tentando entender o rumo das próprias palavras.
– Estamos longe de qualquer eleição política ou... olha, eu não sei, mas... é provável. – Sam respondeu.
– Consegue ficar de olho nisso, Sami? – Miho interpelou.
A mulher concordou.
Mat não conseguiu acrescentar muito mais à roda. Ele era o motorista pessoal perfeito de Leonardo Rossi, e esperava que o homem confiasse a ele viagens confidenciais, mas o prefeito ainda não saíra da linha o suficiente para fazer nada relevante. Mateus imaginou que ele pudesse estar tendo um caso de tanto que o homem pedia para deixá-lo em uma casa num bairro rico de Luso – que não era sua casa –, mas isso era de menos e pouco relevante.
– Hoje é dia seis – foi o que ele disse, esperando todos encerrarem o que tinham a contar. – Seis de dezembro. Temos um combinado com David, se lembram?
– É claro que nos lembramos – Drica falou, soando mais brusca do que gostaria. Mateus não se incomodou.
O plano era claro: no dia vinte de dezembro, dali há muito pouco, encontrariam-se com David para dar aval do que tinham até então. Ter um carro era crucial para que o plano desse certo, mas desfizeram-se da van branca por motivos óbvios, e Mat não queria sair de Luso com o carro corporativo do prefeito. Ele daria outro jeito. Tinha duas semanas.
– Ótimo – concluiu.
Eles se encararam por mais alguns segundos, e terminaram a refeição em silêncio, fitando os próprios pratos.
Dormiram nos colchões no chão, embrulhados nos próprios cobertores. O dia seguinte os deixava ansiosos. Todos os dias seguintes. E não sabiam se um dia isso passaria. A realidade que procuravam parecia igualmente distante, e eles cada vez mais afundados na vida falsa que levavam, sem sair do lugar.
•
Era meio dia e dois. Samira já estava há horas vestida com a fantasia de Amanda Castro, e os dedos trabalhavam no teclado incessantemente do outro lado da mesa, o hábito retornando como se nunca a tivesse deixado. Respondia e-mails, preenchia documentos, desenvolvia planilhas e exercia sua função como se fosse exatamente para isso que estivesse ali.
Meio dia e cinco ela decidiu que precisava sair ou a cabeça explodiria. Em breve, Leonardo Rossi se reuniria com os chefes de estado e líderes das províncias ao redor, e ela tinha um pressentimento de que a conversa seria intensa e, com certeza, Nóvora seria pauta. Trocou os saltos pelos tênis e fez algo que estava ansiosa por fazer, mas sempre arranjava uma desculpa: explorar.
O dia estava ensolarado, e os raios de sol cegaram-lhe tanto que ela precisou segurar-se nos corrimãos da escadaria que levava para a rua. Há tão pouco tempo, subira aqueles degraus de cabeça erguida, um café nas mãos, e o medo latente de que tudo desse errado. Bom, lá estava ela.
Um outdoor dizia-lhe que estavam catorze graus em Luso, a temperatura subindo com o despontar da tarde. Ela tinha uma hora de intervalo, mas não estava com fome. Pôs-se, então, a andar a esmo.
A prefeitura ficava no fim de uma grande avenida, onde os Corvos transitavam como abelhas operárias. Alguns distraídos olhando vitrines de lojas, outros pedindo dinheiro, outros ostentando e outros correndo com a rotina. Ela nunca parara para prestar atenção no que a rodeava por ali. O cheiro de café que vinha de cada esquina era sedutor, hora e outra mesclando com o de pão fresco ou de algum fast-food.
Já há algum tempo a culpa a consumia. Estava vivendo a vida bem, melhor do que esperava que fosse possível naquelas condições, e sabia que Benji e Andy estavam comendo o que conseguissem fornecer a todos dentro daquele lugar que, apesar de ser imenso, agora parecia um cubículo.
Samira travou o passo. Ao lado dela, em uma porta pequena, ela leu o nome: Livraria.
O coração acelerou, e ela sorriu. Ok, Sam podia estar indo à biblioteca pública todos os dias, devorando livros por horas e estudando o que pudesse manter sua cabeça no lugar dentro de um mundo que ela não fazia parte, mas aquilo não satisfazia o desejo que ela tinha ao entrar em uma livraria, e sentiu tudo isso de novo quando abriu a porta de vidro e o cheiro de papel novo invadiu suas narinas.
Samira foi uma criança que amava ler. Beto e Stella, ao perceberem o quanto ela deliciava-se ao devorar palavras, compraram uma estante para o quarto dela quando ela tinha sete anos, e Sam amava enchê-la de livros novos. Pedia-os de aniversário, de dia das crianças, natal, e o pai e a madrasta gostavam de surpreendê-la com um e outro de vez em quando. Pisar na livraria, agora, para Sam, era como mergulhar na nostalgia do passado. Ela tentou não parecer uma lunática apaixonada, mas ninguém estava olhando para ela quando ela passou as mãos pelo primeiro livro que alcançou. E outro e outro, e viu os lançamentos e as promoções, abriu e cheirou palavras, romances e ficção. E aquele era o paraíso dela. Talvez trocasse o horário de almoço por uma barra de cereal e uma hora na livraria dali em diante.
Sam rodopiou por todos os cantos daquele lugar até travar o passo na frente de uma sessão distante, debaixo de uma escada, quase escura, em que um livro olhava para ela. Na capa, dois olhos como os seus por trás da máscara. Não, como os de Eric. Azuis-piscina. E uma faixa vermelha cortava-os, mas não o suficiente para ser impossível de identificá-los. Samira deu um passo, curiosa, depois outro, e estendeu as mãos para ele com cautela, como se o papel fosse queimá-la se ela não tomasse cuidado. Quando o tomou em mão, sentindo o peso da capa grossa, leu na capa:
A Era dos Olhos-Pacatos, como uma geração extinta destruiu o mundo em que vivemos.
Samira estremeceu, e controlou-se para segurar o livro com calma. Respirou fundo, e o devorou em uma leitura dinâmica.
Droga, ela perderia a hora do almoço. Poderia ficar ali lendo pelo dia inteiro e controlando-se para não arregalar os olhos, não deixar o queixo cair e nem mesmo a sobrancelha se erguer. O autor, Peter Larins, sorria na contracapa, mas tinha apenas palavras de ódio em sua obra, e apontava nos mínimos detalhes como os olhos-pacatos destruíram a terra, o mar, e exploraram além para destruir mais.
"Vejam bem, o sangue que corria nas veias de olhos-pacatos era fraco e destrutível, e as vacinas que criaram eram, de alguma forma, eficazes para controlar as doenças que dispersavam-se pelo mundo. Mas o negacionismo de alguns fizeram varíola e febre maculosa voltarem em países da Europa no fim do século XIX, o que nos levou a questionar o porquê do mundo estar nas mãos de seres de inteligência tão miserável e egoísta que os impossibilitava de ver o quanto prejudicavam a única casa que conheciam".
"Nós, Corvos, somos a evolução de uma raça, e em nosso sangue corre a cura da gripe, da febre, do câncer. Somos forte e imunes porque fizemos o que precisava ser feito, e agora a Terra é um lugar melhor".
Samira Sabino segurou a bile que subiu do estômago. Merda, ela não acreditava que estava lendo aquilo. Como era possível ler aquilo em uma livraria? Em um livro que alguém poderia comprar e levar para casa? Ficar devorando palavras de ódio contra gente como ela.
Sam fechou a capa e o peso do livro fez seus cabelos voarem do rosto. Os olhos azuis na capa olhavam-na, e ela só conseguia pensar em Eric. A ponta de seu dedo indicador passou pela capa, contornando a linha das íris, e Samira sentiu vontade de gritar, mas engoliu a própria voz. Peter Larins, o autor, quis ódio na capa, mas Sam só via alguém igual a ela cuja existência foi abominada.
Seu celular tocou, e ela o alcançou sem tirar os olhos do livro nas mãos.
O contato estava salvo como V, mas era Eric. Ela não quis salvar o nome dele por segurança, e achou que chamá-lo de Victor era desrespeitoso.
Atendeu no segundo toque.
– Oi – a voz saiu falhada, ainda recuperando-se do peso das palavras nas mãos.
– Sam? – ele murmurou do outro lado da linha.
– Está tudo bem?
– Está, eu... acho que sim. Quando é seu intervalo?
– Agora. – Os olhos dela estavam focados nos olhos da capa.
– Quer tomar um café?
Sua barriga roncou. Ela olhou para o relógio no celular e tornou-o ao ouvido. Ainda tinha ao menos quarenta minutos, e o hospital não era distante de onde estava.
– Te encontro aonde?
•
Ela encontrou-o na esplanada do café. Era o meio do caminho para os dois, e Eric admitiu que acabara apaixonando-se pelo croissant de chocolate que vendiam.
Samira tentou sorrir, mas falhou, e apenas sentou-se em sua frente. A sacola que trazia da livraria foi pendurada no espaldar, e ela olhou para ele.
Eric estava em ótimo aspecto, mesmo com o olhar apreensivo estampado no rosto. Droga, ela odiava aquelas lentes de contato. Odiava não ver os olhos dele. Gostava de quando voltavam para casa e ele as tirava, e conseguiam olhar olho no olho. No olho de verdade.
– Victor – Sam não arriscou-se, mas sentiu-se patética, de alguma forma –, o que aconteceu?
A garçonete voltou com um pedaço de torta de frango e um suco de laranja, e colocou-os na frente dele com uma pressa de quem atende um restaurante cheio, mesmo que estivessem apenas os dois ali.
– E você, menina – ela indagou, limpando as mãos no avental –, o que vai querer?
– O mesmo que ele, por favor – Samira pediu, e a mulher sumiu estabelecimento adentro.
– Eu descobri merda, S- – ele interrompeu-se, engolindo em seco. Tomou um gole de suco para disfarçar. – Amanda. Só não sei o quê ainda.
Samira cerrou as sobrancelhas.
– É sobre o que disse ontem? – ela indagou. – Fiquei com isso na cabeça.
– É. Hoje eu tive um tempo livre no meu turno. E eu achei um computador na recepção. Estava vazio, o andar inteiro. Aí eu entrei no modo anônimo do navegador e dei uma pesquisada.
A garçonete voltou com a torta e o suco de Sam, e a mulher agradeceu com um sorriso amarelo e uma azia. Eric olhou para trás antes de continuar, esperando a empregada se distanciar.
– Descobri que, logo depois de exterminarem os olhos-pacatos, começou uma onda inexplicável de mortes de bebês.
– Mortes de bebês?
– É. A taxa de mortalidade de recém-nascidos cresceu estupidamente – ele falava as palavras como se as estivesse lendo nos olhos dela, decoradas de sites e mais sites. – Aparentemente, é alguma doença gestacional que virou a porra de uma pandemia.
– É genética? – Sam indagou, tentando acompanhar seu passo.
– Tudo indica que sim. É o que dizem. Mas, porra, faz dez anos e não foi feito nada sobre isso.
– E o que alegam?
– O mundo inteiro alega que estão pesquisando, tentando ao menos descobrir uma forma de rastrear a doença no DNA da criança antes dela nascer. Não estão conseguindo. Mas é difícil de acreditar, Amanda. Por que ninguém fez nada ainda? Por que ninguém fala sobre isso? E que merda minha chefe quis dizer com "arregaçar as mangas e fazer o que é preciso"?
Os olhos de Eric eram completa apreensão, e ele mal tocara no pedaço de torta. Sam avançou no dela, tentando colocar algo no estômago para conseguir pensar com mais clareza.
– E onde você entra nisso? – ela continuou. – O que você faz no hospital?
– Ainda nada – ele olhou para o próprio prato e brincou com o garfo, distraído. – Exames de rotina, por enquanto. Acompanhamentos gestacionais. Mas, porra, isso...
– É, eu sei – Sam concordou. A mente dela voou, de repente. Parou em Tomas Steve, o colega da mesa ao lado. – Tem um homem no trabalho, ele estava de licença. Voltou esses dias. Diz que... que a mulher perdeu o filho no parto. Não sei se pode ter a ver, mas...
– Pode ser.
– Quer que eu sonde o assunto?
– Não, Sam – ele não impediu o nome dela de sair, e ela amou ouvi-lo de sua boca. Odiava ser Amanda. Ninguém estava os ouvindo. Diga de novo, ela quis pedir. Me chame de Sam, pelo amor de Deus. – Você está se arriscando demais já e isso não é prioridade nossa.
– Está agindo como se fosse.
– Porque talvez seja. Eu só... tenho um pressentimento.
– Eu vou segui-lo, então. – A mulher sorriu, e Eric levantou os olhos do prato para encará-la, uma gratidão estampada no rosto.
– Desculpe por te ligar, é que... precisava contar isso para alguém.
– Gostei que ligou.
Ele enrubesceu?
Sam quis rir, mas guardou o riso para ela.
– Eric – ela o chamou. Pelo nome de verdade, que também soava doce na voz dela. Depois, tirou a sacola da livraria do espaldar e o entregou –, estou com medo.
Eric olhou para ela, depois desceu os olhos para o embrulho que ela lhe entregou. Ele tirou o livro da sacola e o estudou. A capa dura, os olhos-pacatos azuis que pareciam os dele, as notas de repúdio contra eles e a favor da chacina que cometeram.
– Isso estava numa livraria. Pública. Do lado da sessão de crianças. – Sam coçou a nuca, nervosa. – Porra, isso não é segredo nenhum. Tabu nenhum. Eles nos repudiam, Eric. Todos eles. É a merda de uma guerra declarada, e eles decidiram que somos a merda do câncer do mundo. Isso estava lá para qualquer um ler, e eu só não consegui procurar mais, mas eu tenho certeza que não é o único. Devem ter filmes, devem ter documentários, somos a porra dos vilões da última década e...
Ela respirou fundo, e só então percebeu que Eric alcançou sua mão por sobre a mesa. Ele ficou ali, brincando com os dedos dela, tentando acalentá-la, e deixou que ela continuasse, certificando-se de que estavam completamente sozinhos.
– Eu vivi com essa gente. Eu vivi e convivi, eu frequentei aulas, eu fiz amigos Corvos e... porra, era só a merda de uma questão genética, como ser negro, como ter olhos puxados, mas... do nada, eles decidiram que éramos o problema e...
Ela perdeu o ar. Puxou e puxou e ele não vinham, e os olhos embaçaram, e Sam percebeu que nunca chorara com as lentes, mas a mão de Eric apertou a sua com mais força e ela se recompôs.
Permitiu-se olhá-lo, apenas, como ele estava olhando para ela. Até com aqueles olhos Eric era bonito. Tinha sentido falta de conversar com ele naqueles dois meses, a sós, como estavam fazendo agora, e o pensamento lhe soou engraçado. O conhecia há tão pouco. Mas já parecia uma eternidade.
– Nós vimos muito, Sam – ele cochichou, inclinando-se para frente. – Não basta termos sobrevivido à chacina, aos dez anos, nós... você... você viu muito, Sam.
O corpo dela chacoalhou sob a mão dele, e Eric quis chegar ainda mais perto, mas a mesa não o deixou.
– Eu dormia como um bebê – ele admitiu. – Eu conseguia dormir como um bebê todas as noites e... depois do que passamos...
Ela viu o lábio dele tremer, e dessa vez foi a vez dela de apertar sua mão, e ele retribuiu o carinho.
Eric quis continuar. Quis dizer a ela que às vezes acordava no meio da noite assustado, o arrepio de ter sonhado que ainda estavam lá. Às vezes, no sonho, ele ouvia os gritos dela, agonizantes, e tentava gritar de volta, pedir que a largassem, pedir que o tomassem no lugar dela. Às vezes, via os soldados em cima dela com as mãos onde não deviam, com a tesoura arrancando seus olhos, e os brados dela a chamarem o nome dele e Eric não conseguia fazer nada. Nos piores pesadelos, Sam estava morta, e ele tinha que conviver com o corpo dela sem vida naquela sala com o desespero e a voz que tentava gritar e não conseguia. Então, não. As noites não era mais tranquilas.
– Posso fazer algo por você – ele afirmou, recompondo-se.
Sam olhou-o nos olhos, imaginando como as orbes azuis estariam olhando para ela agora.
– O quê?
– Me disse uma vez que gostava de correr, Sam. E que era boa.
Ela ergueu as sobrancelhas e entendeu onde ele queria chegar. Uma dor fantasma passou pela perna, agora cicatrizada, apenas com a lembrança do que acontecera. O peito subiu e desceu com dificuldade, mas ela não desgrudou os olhos dos dele.
– Não tentei desde que... – ela deu de ombros. Ele entendeu.
As tortas esfriaram nas mesas. O horário de almoço dela estava quase no fim. O dele já estava no limite. Mas continuavam os dois ali, se encarando e se chamando pelos nomes de verdade, imaginando os olhos de verdade um dos outros, despindo aquela camada ridícula que eram obrigados a sustentar.
– Amanhã, Sam. – Eric sorriu e tirou o dinheiro do bolso. Colocou-o na mesa e se levantou. Ela odiou o frio que sentiu quando ele soltou sua mão, mas puxou-a de volta para o próprio colo, constrangida, sem saber o porquê. Concentrou-se na promessa dele: – Amanhã eu vou correr com você.
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