2. Ninguém Sobrevive Sozinho
Dez anos. E tudo o que Benji conhecia estava dentro daquela caixa cimentada e cinzenta.
Todos os dias, ele parecia-se mais e mais com a mãe. Tinha olhos grandes e bem desenhados como os de Stella, a cor de um verde escuro profundo. Os cabelos, também puxou os dela, cachos castanhos e rebeldes.
Samira esforçou-se para fazer da vida de seus irmãos o mais confortável possível. Brincou com Ben e Andy durante toda a infância dos dois. Corriam, se escondiam, faziam da vida de Raquel uma loucura – a qual ela amava. Era bom ouvir risadas lá dentro, enquanto o mundo lá fora desmoronava.
Sam teve medo de que, ao crescer e tomar ciência das responsabilidades que tinha, negligenciaria os irmãos. Mas orgulhava-se dos homens que os dois vinham se tornando. Benji mostrava-se uma criança inteligente, letrada, curiosa, sempre pedindo para que Sam trouxesse coisas novas da cidade.
– Anda, abre! – Sam pediu com um sorriso que recusava-se a murchar. Ela lhe entregou o embrulho.
Benji esfregou o rosto e o tomou em mãos. Antes mesmo de abri-lo, já tinha certeza do que se tratava. Seus olhos brilharam quando o papel amassado caiu para o colchão e ele pôde ver a capa do livro.
"As aventuras de Olivia"
Na capa, uma porquinha simpática o observava.
– Eu sei que não é bem para uma criança da sua idade – Sam repousou a cabeça no próprio ombro, fitando-o passar os dedos pela capa dura –, mas eu amava esse livro quando era pequena. Tinha lá em casa. Papai lia para mim quase toda noite. E eu achei que...
Benji pulou do colchão e envolveu-a com um abraço apertado.
– Obrigada, Sami.
Ela sentiu que ele agradecia por mais do que aquele livro. Um gesto tão pequeno como trazer uma vela de aniversário era monumental em lugares como aquele. Benji sabia a sorte que tinha em tê-la. Sam segurou uma lágrima. Não costumava ser emotiva. Só quando se tratava deles.
– Onde está o Andy? – Ben perguntou, folheando o livro que ganhou da irmã.
– Já deve estar acordando. Eu pedi para ele levantar cedo hoje.
– Por quê?
– Porque eu acabei de voltar de Ponta Porosa. Estou exausta e não queria deixar você sozinho.
– Relaxa, Sami. Mimo não vai faltar. Semana passada a Raquel disse que tinha surpresa pra mim.
Sam ergueu uma sobrancelha.
– Ah, é?
– É. Eu acho que ela conseguiu ingredientes pra fazer um bolo. Ou alguma comida gostosa.
A irmã mais velha riu.
– Guarde um pouco para mim, então.
Ela se levantou.
– Aonde vai? Achei que fosse dormir.
– Preciso de um banho. E, então, eu vou dormir até o sol estalar na janela.
Benji riu. Ele deitou-se com o livro e começou a devorá-lo. Samira saiu do quarto com um alívio no peito. Tinha acertado mais uma vez.
Samira arrastou-se para o banheiro compartilhado do andar. Tirando ela e Benji, mais quinze pessoas instalaram-se no décimo segundo. Todos jovens com bons joelhos. Era uma jornada e tanto chegar até ali.
Àquela hora o banheiro estava vazio. Ainda não tinha que dividi-lo com ninguém, um dos motivos pelos quais gostava de acordar antes do próprio sol.
Água quente era um luxo. Se quisesse tomar um banho de água quente, precisava esquentá-la na bacia. Forno à lenha. Nada de eletricidade. E esse luxo, principalmente no calor, era algo que Samira dispensava.
A ducha foi rápida, um pequeno alívio para a jornada que eram as visitas à cidade. Ela trajou roupas limpas e confortáveis. Olhou as próprias feições no espelho enferrujado e manchado do banheiro e apoiou as mãos no mármore desgastado para olhar no fundo dos olhos. Eram da cor dos do pai, caramelo, um amarelado diferente que ela gostava. Costumava achar seus olhos uma de suas características mais bonitas – antes de ser obrigada a escondê-los.
Os cabelos ruivos pendiam por sobre os ombros, já ficando mais compridos do que ela esperava. Queria ter as sardas que tinha o pai, mas isso não puxou dele. O resto do rosto era inteiro da mãe. Os lábios delicados, o nariz bem desenhado. Abençoava a genética por ter pego a melanina da mãe. O sol castigava menos sua pele morena que a do pai.
Samira não tinha boas lembranças da mãe. Eram apenas fotos e histórias.
Maldito câncer.
Seu corpo transformou-se durante aqueles dez anos, ela percebia. Antes, franzina como era, não conseguia ao menos ajudar com as sacolas de compras. Agora, os músculos eram visíveis e úteis. Ela era ágil e rápida. A mira, cada dia melhor. No auge dos vinte e quatro anos, era forte e resistente.
Uma faísca de dor despontou na têmpora. Ela fechou os olhos com uma careta. Estava exausta. O sol começava a invadir as janelas do banheiro.
Samira voltou para o quarto. Benji não estava mais lá, e seu colchão estava organizado como ela ensinara. Um dos motivos para sentir-se levemente aliviada por Andy ter deixado o quarto foi a organização. O irmão mais novo era impecável. O do meio, nem tanto.
Ela jogou-se no próprio colchão. Nem ao menos tirou a colcha. Assim que a cabeça recostou no travesseiro, dormiu.
Quando acordou, o sol incomodava seus olhos, encontrando frestas nas janelas e paredes corroídas do décimo segundo andar. Se isso acontecia, então eram nove, dez horas da manhã. Ela não dormira nem quatro horas.
Samira piscou pesado e virou-se de lado. Assustou-se ao perceber que o que a acordara não fora o sol, e sim aquela figura parada à sua porta.
– Cacete, Zoe! – reclamou, cobrindo o rosto com uma das mãos. – Hoje é meu dia de descanso.
– Sem dia de descanso, bonita. – Zoe adentrou o quarto, por fim. Ela fechou a porta atrás de si e se prostrou ao lado da amiga de infância, os braços cruzados.
Sam entreabriu os olhos por entre os dedos e viu que o descontraído e leve tom da amiga não estava presente naquela conversa.
– O que foi, Zoe?
– Estamos com problemas.
Problemas. Como se já não tivessem suficientes.
Zoe não precisou dizer mais nada. O sono deixou Samira assim que ouviu aquelas palavras.
Precisavam conversar.
Quando se vive em sociedade, a hierarquia é essencial. O mais forte e capaz lidera. Esta formou-se sem que precisassem ao menos de discussões. Ao longo daquela década, Raquel reuniu-os.
Na maior sala do primeiro andar, cercando uma mesa redonda de madeira, prostravam-se lado a lado as influentes figuras daquele prédio. Raquel, é claro, sempre era a dona da primeira palavra.
Jon estava ao seu lado naquele dia. Era um homem forte, alto, com cabelos aloirados e, de alguma forma, sempre penteados. Tinha tatuagens fechando todo o braço esquerdo. Algumas de mau gosto, outras mal-feitas, uma miscelânea incompreensível de desenhos com uma tinta de má qualidade que ficava cada vez mais esverdeada com o tempo. Jon tinha vinte e nove anos, os trinta chegando em poucos meses. Em outros dias, fora João, mas nunca se apresentou como tal. Lá dentro, ele sempre foi Jon.
Miho era o braço direito de Raquel. Era um homem com seus quarenta anos, vivido e experiente. Foi um renomado policial quando mais jovem, e foi quem os ensinou como sobreviver com as armas que guardavam no subsolo. Ele nascera no Brasil, apesar de pai e mãe serem coreanos refugiados das disputas que se iniciaram com os Olhos de Corvo no Oriente. Seu português era bom e fluente. Sua genética lhe favorecia para que parecesse mais jovem. Miho era forte, bonito, e acima de tudo um mistério.
Além deles, Trisha sempre estava presente. Era uma inusitada figura. Trisha era jovem, com trinta e dois anos, mãe de gêmeos pouco mais velhos que Benji, um menino e uma menina. Era mirrada, pequena, mas mostrou-se inteligente e estratégica quando precisaram que aquela pequena sociedade se erguesse por debaixo dos panos. Tinha os cabelos compridos e escuros frisados, a pele morena, e traços que mais pareciam indianos, mas que ela nunca deu pista de sua origem.
Zoe e Samira entraram pela porta, exaustas pelas escadas. Zoe prostrou-se do lado da mãe e Samira se encostou na mesa entre Jon e Miho.
As duas mulheres não ganharam espaço à mesa por serem filhas – biológica e de consideração – de Raquel. Ralaram muito, as duas. O Centro de Treinamento foi ideia delas. A vedação das janelas, os fornos à lenha, as patrulhas, os mapeamentos da região de Pedra Branca onde era seguro ou não adentrar. Os protocolos de segurança, principalmente, partiram delas.
Tirando Raquel, que já não se sentia mais na idade para aquilo, das quase duas dezenas de pessoas no prédio, os cinco eram os únicos patrulheiros. Por sua vez, os únicos que tinham o privilégio de ver o mundo do lado de fora daquela caixa.
Sam prendeu os cabelos até então soltos em um rabo de cavalo alto. O gesto atraiu a atenção para ela, que sentiu-se confortável para olhar Raquel nos olhos e perguntar:
– O que foi? Te vi há menos de cinco horas, o que é tão urgente que não podia esperar eu descansar?
Jon soltou uma risada debochada.
– O mundo não gira ao redor do seu umbigo, Samira – despejou, com desdém.
– Cuidado com a boca – Miho a defendeu. – Ela acabou de voltar da cidade.
– Hoje? – Trisha cerrou as sobrancelhas. – Onde foi?
– Ponta Porosa – Sam respondeu. – Adiantei a ida da semana que vem.
– E por quê? – Trisha não entendeu, visivelmente frustrada. Esperava que aquela saída pudesse ser sua.
– Fui eu quem pedi – Raquel interrompeu. – O tempo está virando. Vamos logo precisar de mais mantimentos para essa galera.
– Está explicado, então – Jon concluiu.
– O quê? – a dos cabelos ruivos interpelou, visivelmente frustrada. Parecia a única por fora da conversa.
– A Sam é cuidadosa – Zoe debateu.
– Mas que merda! Alguém pode me falar o que aconteceu? – Samira esbravejou.
– Acho que te seguiram, Sam. – Trisha cruzou os braços, pensativa.
As sobrancelhas da mulher se cerraram em dúvida.
– Ninguém me seguiu.
– Na troca de turnos, entre eu sair e Jon entrar – Miho contou –, vi uma figura na rua de trás.
– Uma figura? Alguém? – Sam indagou.
– Sim. Estava sozinho, até onde consegui ver. O sol mal tinha nascido, você tinha acabado de voltar, Sam. Veio da direção de Ponta Porosa, o que me faz crer que...
– Ninguém me seguiu. – Samira apoiou-se sobre a mesa, inquieta. – Em dez anos, ninguém nunca me seguiu. Ninguém nunca nos seguiu.
– Até agora, Sam – Raquel soltou-lhe a bomba. Acreditava que, sim, fora descuido de sua afilhada.
Samira levou uma das mãos à testa e fechou os olhos, jogando a cabeça para trás em uma visível frustração. Em cinco anos, não viram ninguém que não fosse daquele pequeno bando de refugiados. Os últimos foram Corvos à procura de sobreviventes, mas pareceram desistir. Meia década, cinco anos inteiros. Nem sequer um resquício de alma em Pedra Branca ou cidades vizinhas. Aquilo não era bom.
– O que era, Miho? – Zoe indagou, os grandes olhos castanhos preocupados ao fitarem o homem em busca de respostas.
O policial balançou a cabeça.
– Estava escuro, Zoe. Os binóculos não alcançaram o suficiente. Não vi os olhos.
Era o que mais lhes preocupava – que os Olhos de Corvo tivessem em sua cola outra vez.
– Eu teria percebido, Raquel. – Sam retornou à conversa, as mãos impacientemente estalando as juntas dos dedos. Seu tom de voz implorava para que acreditassem nela. Principalmente Raquel. – Você sabe que sou cuidadosa.
– Não estou te culpando, Samira. Estou dizendo que há chance de termos nos confortado com a pacificidade e deixado a guarda abaixar. Poderia ser qualquer um.
Samira bateu as mãos na mesa e sussurrou um palavrão. Os outros nada disseram.
– Ok, ele... ele nos viu? – Trisha trocava o peso das pernas de base, ansiosa.
– Não – Miho os acalmou –, passou reto. Nem sequer olhou para o prédio.
– E por que não o matou, Miho? – Jon questionou.
– Um alarde desnecessário.
– Pode ser só um sobrevivente como nós – Zoe lembrou.
– Ou algum saqueador – Raquel lembrou.
– Ou um deles – Trisha mordeu o lábio. Sua sentença fez todos se calarem. – O que vamos fazer?
Os olhares retornaram a Raquel. A mulher limpou o suor da testa e respirou fundo. A passos lentos, como se procurasse tempo para pensar, caminhou até a janela. Ela não os olhou quando falou.
– Redobramos as vigílias nas noites seguintes. Talvez precisemos de mais gente. Mais três para cada um de nós, cada um em um canto do terraço.
– Quem? – Jon questionou.
– Encontrem gente de confiança. E é pedir demais para que não façam alarde. Logo todos vão saber. Só não deixem o pânico se espalhar. Pode ser só um alarme falso, um andarilho perdido. – Raquel voltou-se para eles. Estavam petrificados ao redor da mesa. – Vão, andem. Organizem os turnos. Estão dispensados.
Trisha foi a primeira a conseguir se mover. Ela puxou a fila de pessoas que saiu da sala, uma a uma. Sam foi a última. Passou pela porta, mas voltou um passo. Olhou Raquel, que voltara a perder-se na paisagem cinzenta que era a vista da janela.
– Sabe que ninguém sobrevive sozinho, Raquel.
A mãe de criação não a olhou. Nem ao menos respondeu. Frustrada, Samira deixou a sala e bateu a porta ao passar.
Mas Raquel, mesmo que quisesse, não podia negar: ela estava certa.
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