19. Gruta Que Chora
Quando foram dispensados da conversa com David, um por um, deixaram a sala em silêncio. Em qualquer outra ocasião, estariam conversando, ainda. Debatendo a ata, discutindo pautas ou, ao menos, se perguntando qual seria o almoço. Mas, dessa vez, saíram em um silêncio cortante, cada um mergulhado no próprio âmago, refletindo as próprias aflições e se perguntando qual seria o rumo de suas vidas dali para frente.
Um mês, talvez menos, foi o que David pediu.
Em um mês a vida de seis pessoas seria colocada sobre uma corda bamba. Cabia a eles saber equilibrar-se. Cabia aos que ficavam não deixar que a corda rompesse.
Samira não saiu da sala. Não conseguiu sair. Não porque a perna doesse ou nada do tipo, mas porque processar o que acabara de fazer era ainda mais doloroso para ela do que para qualquer um deles. Sam não só se jogou em uma artimanha perigosa, como arrastou dois de seus melhores amigos com ela. A mulher viu de perto do que aqueles monstros são capazes, e o medo de passar por aquilo outra vez, de ter Zoe ou Miho passando por aquilo por causa de uma decisão dela...
– Sam – a voz dele ecoou pela sala agora vazia, onde apenas ela olhava para o chão, os olhos vidrados. Eric olhava-a do batente da porta, sozinho. Querendo ou não, ele era o único que entendia minimamente pelo que ela passara. Lembrava-se dele sempre como sendo o homem que a ouviu ser torturada. As imagens que ele não viu, sua mente inventou, e ele sabia, sim, o que era ser jogado aos leões outra vez. Ela não foi jogada, entretanto. Ela entrou na jaula de bom grado.
Samira obrigou o olhar a sair do chão e voltar-se para ele. Eric tinha um semblante compreensivo, ao mesmo tempo que preocupado. Se falaram daquela noite uma vez desde que foram salvos, foi muito.
– Está bem? – a pergunta dele foi retórica, mas necessária. Eric estava lhe dando espaço ao mesmo tempo para conversar e, se quisesse, ignorá-lo. Viver a própria dor em paz. Ele compreenderia.
A mulher, por sua vez, só balançou a cabeça, negando. Estava exausta de ter que ser um alicerce rígido o tempo inteiro. Não estavam mais em seu abrigo. Podia deixar-se ser vulnerável de vez em quando. E Zoe não estava lá para ser sua confidente. Nem Andy, ou mesmo Benji. Mas Eric estava.
O homem lhe estendeu uma das mãos.
– Venha – chamou.
– Para onde? – a voz de Sam falhou.
Eric insistiu, a palma da mão virada para cima.
– Esse lugar pode ser sufocante às vezes – confessou. – Me deixe te mostrar meu refúgio.
E Sam, sem pensar duas vezes, tomou a mão de Eric e o seguiu.
•
Quando Samira entrou no abrigo, estava em estado de choque, lutando para sobreviver nos braços de Mateus. Não lembrava-se de nada depois da fuga pelo Deserto de Alexandria, muito menos como era a entrada daquele lugar.
O nome catacumbas sempre lhe remeteu a algo sinistro. Cova, sepultura, morte. Mesmo que David e seus homens tivessem transformado aquele lugar em um bunker habitável, ainda assim, Samira só conseguia pensar em quão fúnebre era a ideia de esconder-se embaixo da terra, onde os mortos viviam, e o ar não entrava. Não como deveria.
Samira tomou a péssima decisão de perguntar a Louis um dia daqueles o que aconteceria se os exaustores simplesmente parassem de funcionar, e ouviu um monólogo de trinta minutos em que o homem eufemizava a possibilidade deles sufocarem lentamente. Reconfortante.
E lá estava ela, seguindo Eric outra vez por corredores escuros, sem saber o rumo, apenas guiando-se pela silhueta delineada do homem no quase completo breu.
Sam sempre foi fã de histórias de terror, e nunca parou para pensar na psicologia disso. Foi muito tempo depois, no abrigo, conversando com Tom, o quase formado psiquiatra, que o colega lhe apresentou o conceito de catarse emocional.
– Liberar suas próprias emoções, medos, terrores, de uma maneira controlada – ele contou, como se tivesse decorado a página do Wikipedia. – Em um ambiente seguro. O sofá de sua casa, por exemplo.
Era por isso que Sam não se sentiu uma péssima fã de histórias de terror ao atravessar o corredor com Eric tremendo nas bases, ziguezagueando, atravessando portas, entrando em lugares mais e mais escuros. Porque não era como assistir a um filme de terror. Era o medo real na pele de que alguma coisa lhe puxasse os calcanhares no escuro. Improvável? Talvez. Impossível? Já não sabia.
Aos poucos, a luz tornou a mostrar-se para eles. Era uma aliada muito mais querida que a escuridão, para Sam, pelo menos.
Eric parou de seguir na frente e esperou que ela chegasse ao seu lado, o que fez.
– Onde está me levando? – a mulher indagou.
Antes de responder, Eric olhou para frente. Deixou que ela fizesse o mesmo à medida que aproximavam-se da luz em uma encruzilhada próxima. Era uma claridade amarelada, forte, e... sol?, Samira pensou. Aqui?
Viraram em uma direita, e o ar de Sam saiu do peito, mas dessa vez apenas para que ela pudesse puxá-lo com mais força, uma brisa pura, que vinha de fora. A cena lhe tirou a base, e ela quase desequilibrou-se, apoiada na perna não suturada:
Estavam em um espaço tão amplo que fazia-os sentir-se minúsculos, mas não de um jeito ruim. Samira diria ser uma caverna, se não fosse os metros e mais metros de paredes que subiam ao redor deles, em uma imensidão verde e azul e cheia de plantas e natureza e... o céu aberto sobre suas cabeças, tão distante que ela não se sentiu exposta de forma alguma. Os Corvos teriam que ter certeza de que estavam ali embaixo para ousar descer todo aquele paredão. E, o que Sam achou mais belo: a água.
Sam e Eric estavam ao pé de uma lagoa, se assim pudesse chamar. Rasa, logo ao lado deles, onde a água provavelmente alcançaria seus calcanhares, mas que parecia afundar e afundar à medida que se ousasse adentrá-la. Pedras dispunham-se tão perfeitamente ao redor da lagoa que pareciam ter sido colocadas ali de propósito, para que gente como eles se sentassem e deslumbrassem a beleza que a natureza pode fazer.
Samira percebeu que Eric a olhava o tempo todo, um sorriso no canto da boca. O mesmo semblante de quando lhe mostrou as moradias que habitavam, em algum lugar perto e longe dali, ela já não tinha mais certeza. Era como se ele gostasse de vê-la deslumbrada.
– Uau – escapuliu da boca da mulher sem que ela percebesse. Procurou por palavras para descrever a imensidão ao seu redor, mas foi tudo o que encontrou.
– Como está sua perna? – Eric indagou, e finalmente Samira tirou o olhar do deslumbre ao seu redor para encontrá-lo ao seu lado.
– Boa o suficiente – ela compreendeu.
Eric sorriu e, outra vez, lhe tomou uma das mãos. Guiou-a para as pedras ao redor da lagoa, e Samira pensou se não poderia dormir ali, ao invés de na cavernosa enfermaria.
•
Ele guiou-a, pisando em pedras calculadas, seguindo um rumo determinado, como se soubesse exatamente para onde ir. Olhava para trás a todo momento, vendo se ela o acompanhava, mas parecia que a sutura na perna não seria mais um empecilho em breve.
Eric sentou-se, enfim, em uma pedra plana rasteira à água. Tinha limo nas pontas, escorregadio, mas ele puxou-a para um ponto específico, seco, onde conseguiam encostar as costas em outra rocha logo atrás.
Quando enfim acomodaram-se, Samira arfou. O lugar era ainda mais bonito dali.
– Bem-vinda ao meu lugar feliz – Eric estendeu uma das mãos à frente, mostrando a paisagem. Acrescentou, em tom travesso: – Não é todo mundo que eu trago aqui.
Samira riu, sem tirar os olhos do vislumbre que era aquela gruta.
– Não sabia que um lugar assim podia existir do lado do deserto – murmurou, despretenciosa. – É ignorância minha, eu sei, mas...
– Não, tem razão. Foi a primeira coisa que eu pensei quando encontramos isso aqui – Eric concordou. – É a Gruta Que Chora. Nome popular.
Ela abriu a boca para perguntar o porquê do nome, mas desvendou-o sozinha. Água escorria das paredes ao redor deles, gotas e mais gotas, até caírem na lagoa natural.
– Gruta Que Chora – Sam repetiu, como se brincasse com o som das palavras. – Gostei.
Dessa vez, foi ela quem o estudou. Eric olhava para cima, por de onde a luz entrava. O sol batia em seu rosto, e ele precisava cobrir os olhos dos raios solitários que os alcançavam por dentre a folhagem.
Lado a lado, ficaram em silêncio. Um silêncio bom, dessa vez. Genuíno e bem-vindo. O som das gotas caindo na lagoa era um fundo contemplativo, um acréscimo ao cenário mais esplendoroso que Samira já viu.
– Eric – ela o chamou.
O homem virou a cabeça para ela, entreabrindo os olhos.
– O que foi?
– Tem uma história para me contar.
– Tenho? – ele riu.
– Tem. – Sam tirou os olhos dos dele para fitar a água que quase tocava suas botas. – Mas só se se sentir confortável.
O sorriso de Eric murchou. Iam fazer aquilo, então. Estava prestes a contar a uma estranha histórias que ele enterrara em âmagos que já não sabia mais encontrar.
– O que quer saber, Sam?
Samira endireitou-se, encostando as costas na pedra atrás deles. Ela o encarava, mas Eric parecia querer fugir daquele campo de visão. A mulher pensou se não estava atravessando limites. E, mesmo assim, comentou:
– Não é um médico.
– Isso foi uma pergunta?
– Não, não foi.
Ele a fitou. Esperou que ela continuasse:
– Me disse que têm vinte e nove anos. O mundo acabou quando você tinha dezenove. Então, estava...
– No segundo ano de faculdade – ele completou por ela. – De medicina.
Sam esperou. Ele continuou:
– Temos uma regra aqui, sabe? – Eric olhou-a de soslaio. Não parecia frustrado, apenas tenso, e Sam ainda desvendou um meio sorriso ácido. – Não perguntamos da vida dos outros antes da guerra.
A mulher quis enfiar-se em um buraco. Mergulhar na lagoa só para ver o quão funda era e sumir.
– Desculpa. Sei que...
– Não, não, é que... é complicado. Tudo bem? Eu não falo disso há... há anos, eu acho.
Samira endireitou-se. Achou que ele não fosse dizer nada depois de um minuto inteiro em silêncio. Então lhe foi uma surpresa quando ouviu a voz arrastada de Eric ecoar pela gruta:
– Eu tinha dezenove anos. – Assim como ela, Eric endireitou-se. Recusou-se a olhá-la, fitando a água e o bonito encontro com a luz do sol à sua frente. Era estranho contar uma história que lhe engasgava tanto quando a vista era tão bonita. Um intrigante e quase torturante constraste. – Estudava em Ponta Porosa, na UPP.
– Estava se especializando? – Sam dobrou uma das pernas, a direita, e puxou-a para o peito. Recostou a cabeça no joelho e apenas o olhou.
– Ainda não. Mas estava pensando em... cirurgia oncológica ou... cirurgia geral. Neurocirurgia. Algo do tipo.
Samira ergueu as sobrancelhas. Eric virou-se para olhá-la, esperando alguma reação além de seu silêncio.
– É muita responsabilidade – Sam comentou, vendo que ele ansiava algo dela. – Não consigo nem pensar como... como seria.
– Por que não? – ele indagou. – O que você estudaria?
A mulher deu de ombros.
– Dado que eu tinha catorze anos e meu filme favorito era Crepúsculo, não tenho uma resposta.
Eric riu, jogando a cabeça para trás, e a tensão que ela achou ter criado dissipou-se. Apenas um pouco.
– Nada? Humanas ou Exatas?
– Biológicas, talvez – Sam pensou alto. – Quem sabe?
– É, quem sabe? – Eric lhe abriu um sorriso tacanho, daqueles de canto de boca e, antes que Sam pudesse apreciá-lo, o homem voltou-se para a frente. A expressão fechou-se outra vez. – Bom, meus pais eram médicos. Dos bons. Conheceram-se em um congresso de medicina interna de Santos, dois anos antes de eu nascer. E... bom, foi isso.
– E seguiu os passos deles por que era o que queria? Ou o que eles queriam?
– O que eu queria – Eric concordou, sem pensar duas vezes. – Eu amava o quanto podia aprender. Pensei em física, para ser sincero. Física ou química ou... eu não sei. Só queria aprender o que pudesse. E... aí eu via eles conversando. E falando sobre... sobre biologia celular, estrutura molecular, embriologia e eu deveria me assustar com tudo aquilo, mas...
Sam viu dois pares de olhos azuis brilharem. E perderem o brilho tão rápido quanto ganharam.
– E o que aconteceu? – ela arriscou, viu a tristeza que brotou onde um dia havia tanta esperança.
– Minha mãe me ligou um dia. Disse que eu precisava voltar para casa. E não me disse o motivo. Mas ela sabia o quanto a faculdade era importante para mim, então eu pensei que fosse sério o suficiente para... – ele balançou a cabeça. – Não sei o que pensei. Talvez um deles estivesse doente. Então, eu tranquei o curso por um semestre e voei para Santos e...
Silêncio.
– Quando foi isso, Eric? – Sam perguntou, já sabendo a resposta.
Ele a fitou, por cima dos ombros tensionados.
– Quinze de março. – Sentindo-se um pouco mais confortável, o homem voltou-se para ela. Continuou a conversa em tom baixo e melancólico. – Cheguei de madrugada. Liguei para a minha mãe e ela disse que eu precisava ir para o Silvia Ortega. O hospital onde ela e meu pai trabalhavam. E eu não discuti.
Samira puxou-se mais para perto de Eric em um gesto impensado. Ele parecia tão tenso que o desespero por consolá-lo – por algo que ela trouxe à tona – foi quase instantâneo.
– E aí?
– Peguei um fretado para o hospital. Mala de viagem e tudo, a cabeça a mil. Foi quando eles atacaram.
Samira encolheu-se.
– Para.
– O quê?
– Não precisa me falar mais nada.
Eric riu uma risada triste, fitando o curto espaço entre eles.
– Não vai me deixar terminar minha história?
– Eu não devia ter perguntado.
– Sam.
– Eu não devia ter me metido. Só fiquei curiosa porque você é jovem e disse que é o único aqui considerado médico, então eu pensei que-
– Sam – ele a interrompeu.
Samira olhou para cima, para os olhos que a encaravam. Calmos, agora. Calmos demais em contraste com a história que ele contava.
– Posso terminar?
Ela concordou com a cabeça.
– O ônibus parou na ponte para a costa. Era o caminho para a minha casa. De madrugada, eles apagam as luzes nos ônibus, mas não todas. Mas, quando o motorista parou e desligou o motor, apagou todas as luzes e pediu para ficarmos quietos...
"Era um silêncio ensurdecedor, Samira. Juro. Eu nunca estive com tanto medo. E não sabia o porquê, mas sabe aquela... sensação? De que algo está errado? Gritava tão alto que eu..."
Sam, ao invés de afastar-se dele, chegou mais perto. Ela entendia perfeitamente do que ele estava falando.
– Então, eu ouvi os gritos – Eric confidencializou. – Eu achei que congelaria, mas... eu gritei para o motorista abrir a porta, larguei a mala para trás, e mandei todo mundo descer. Desci um carrinho de bebê, uma mãe desesperada, um idoso e... corri. Corri para o Ortega. Eu corri tanto, Sam. Eram mais de três quilômetros, e eu via o desespero nas ruas, eu via os soldados, mas eu conhecia a cidade, então eu fugi e me escondi e corri e ouvi... as pessoas morrendo. E pensava naquele bebê e naquela mãe e naquele idoso que eu deixei para trás.
– Eric...
– Então – ele ignorou-a, porque não sabia se conseguiria terminar a história se parasse –, eu cheguei no hospital. E ele estava... em chamas.
Eric engasgou com o próprio embargo na voz.
– E ninguém ajudaria. No meio de tudo aquilo, ninguém ia ajudar. As pessoas lutavam por suas próprias vidas. E eu ligava e ligava para minha mãe, para o meu pai, para o ramal deles, e eu não aguentava, Sam, eu... eu entrei no hospital, mergulhei no meio do fogo, eu vi... eu vi gente queimar.
Sam não percebeu que uma lágrima solitária escorreu pela própria bochecha.
– Para – ela pediu, outra vez, talvez mais por si do que por ele.
– Eu cheguei no andar do escritório da minha mãe. E... e eu a ouvi. Eu a ouvi gritar. Corri o máximo que as pernas aguentavam depois de tudo o que já tinha corrido e trombei com a porta dela. Era de madeira maciça, mas tinha uma janela de vidro, sabe? Estava emperrada. E eu a vi. Eu a vi... gritar. Pedir por socorro. Gritar por mim...
– Eric, para – Samira pediu.
– Eu a vi queimar.
– Para. – Sam pediu, e alcançou o ombro dele. Eric saiu do estado de transe, finalmente percebendo a prece que ela fazia ao seu lado. – Por favor, para.
Ele podia ter dito muito. Ter dito "foi você quem perguntou". Ter lhe contado que era por isso que não se questionavam sobre o passado alheio, porque este remete ao próprio. E Samira, naquele instante, tremia como um animal assustado. Porque lembrou do dia em que seu pai prometeu voltar e não voltou. Porque, por mais que tenha sido obrigada a assistir a mãe morrer, o câncer foi um diagnóstico que a preparou para o pior. Eric teve que assistir à sua queimar. A palavra era uma facada.
– Deixa eu terminar? – ele pediu, e Samira percebeu que ainda apertava seu ombro. Eric alcançou sua mão e a tirou delicadamente dali. Sentiu-a gelada e trêmula, mas, mesmo assim, pediu. Porque a sensação de colocar aquilo para fora não foi torturante como ele imaginou. Sentiu até certo alívio. E queria chegar ao ponto final.
Samira concordou, deixando que ele repousasse a mão dela no chão ao lado deles. Sua mão pairou sobre esta, entretanto, quando ele continuou:
– David lhe disse o que aconteceu com os médicos? Que ele recrutou para virem para cá? Para o abrigo?
Ela negou com a cabeça.
– Estavam todos lá, Sam – Eric soou triste, acanhado, quase perdido. – Estavam no Silvia Ortega, conversando sobre... sobre a vida que levariam dentro das catacumbas. Sobre o que fariam para salvar a humanidade. E...
David chamou de acidente de percurso, Samira se lembrou. Um belo acidente de percurso. Um belo eufemismo para aquela chacina. David era bom com eufemismos.
– O fogo teve dedo dos Corvos?
– Com certeza, teve – ele concordou. – Tanta gente morreu lá, Sam... tanta gente internada, lutando pela vida, e... e meus pais.
Ela sentiu o peito soluçar, um choro quieto e sem lágrimas, e Eric apertou sua mão, logo antes de soltá-la.
– David me tirou de lá, sabia?
Sam subiu o olhar para ele outra vez.
– Foi como nos conhecemos. Ele estava à caminho de Havenna e sabia que seus médicos estavam todos em Santos, naquela noite, pelo menos. Reunidos em um lugar em chamas. E ele correu, assim como eu, para salvá-los, mas... mas ele salvou só a mim. Me puxou de lá, me arrancou de lá, e... e me salvou. E, bom, acho que virei o que sou. O médico fajuto disso aqui.
Samira engoliu em seco. Não tinha como qualquer história ser fácil, mas ela tinha esse hobbie estranho de colecionar a vida alheia. Gostava do que remetia ao passado, ao que eram antes dos Corvos, mas não estava preparada para ouvir sobre a vida de Eric Ferragni.
– Sinto muito.
– Não sinta. Foi há muito tempo.
– Não é por isso que deixa de doer.
Eric lhe abriu um sorriso cansado, como se estivesse exaurido depois de tudo o que contou.
– Foi bom falar.
– Eu não imagino como.
– Quer tentar?
– O quê?
– Me contar. Sobre o seu passado.
Sam mordeu o lábio.
– Acho que lhe devo, não é?
– Me deve – Eric brincou. – Mas posso pendurar sua dívida. Para outra hora.
Ela balançou a cabeça, negando. Se fosse lhe contar, então seria agora, em seu novo lugar de paz, que acabara de roubar dele. Parecia mais fácil.
Quando abriu a boca, falou e falou e contou da Samira de catorze anos fugindo de algo que ela não entendia, de armas que ela não conhecia, de uma guerra tão estranha para eles, com um irmão sob uma asa e o outro a chorar no colo. E como, enfim, ela entendia a regra: não perguntar sobre o passado. É uma facada atrás da outra.
– Também sinto muito, Sam. – Eric arqueou as sobrancelhas, imaginando-a mais nova, bem mais nova, correndo pelas ruas de Pedra Branca, e sentiu vontade de abraçá-la.
– Foi há muito tempo – ela repetiu suas palavras.
Ele concordou.
– E vamos nos jogar nisso de novo, não é? – Eric indagou. – Vamos olhá-los cara a cara.
Os homens que lhes arrancaram tudo. Que mataram os pais de Eric. Que mataram o pai de Sam e sua madrasta. Que os torturaram.
– Olho no olho.
– Não sei como vai ser – Eric contou, já que estavam sendo sinceros.
– Nem eu. – Sam fechou os olhos, apreensiva. Quando tornou a abri-los, ele a encarava, pensativo. – Mas vamos descobrir. Vamos levar nossa família para Nóvora, e isso nunca mais vai se repetir.
Eric sorriu com a determinação quase idílica de Sam, como se fossem as palavras vazias de uma criança. E ele nunca ousaria decepcioná-la.
– Vamos, Sam. Vamos levar os nossos para o continente.
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