
17. Jujubas de Amora
A primeira noite em Havenna foi aterradora.
Samira era parte gratidão – por estar viva, em uma cama, com lençóis, um travesseiro, comida no estômago e um quarto só para ela –, parte solidão, parte saudades e outra desespero.
Lhe cederam a enfermaria, por hora, enquanto providenciavam espaço também para os outros duzentos que chegariam. Além de roupas que lhe cabiam como uma luva e água quente.
Deitada, com apenas uma tímida vela acesa, a mente despejava informações tão distintas que tentar dormir era quase doloroso.
Quando fechava os olhos, Sam voltava para a base dos Corvos. O cheiro fantasma de podridão da sala em que a prenderam adentrava suas narinas. O ar faltava. E ela o puxava e puxava e lembrava-se que estava sob a terra, nas catacumbas de Havenna, em uma área sem energia ou exaustores e tinha que se levantar para conseguir respirar.
Por outro lado, algo a acalentava; saber que valera a pena, no fim. Ir a Romã, levar Andy, fazê-lo voltar com os medicamentos e salvar Benji. Até o que teve que sofrer nas mãos dos Corvos valera a pena, porque agora estava ali. E logo sua família estaria também.
O ranger das dobradiças a fez levantar da cama de supetão, deixando uma exclamação de surpresa cortar o silêncio da madrugada. Ela virou-se para a porta, bem a tempo de ver um rosto pálido a espreitando; a mesma menininha de outrora, que saiu correndo quando Samira a encarou.
– Não, não, espere! – Sam apressou-se em acrescentar, uma súplica sussurrada.
Seus olhos fitavam a porta entreaberta, tendo certeza de que ela não voltaria.
Sam estava pronta para levantar da cama e encostar a porta ela mesma quando ouviu novamente as dobradiças rangerem e, dessa vez, a menina apareceu para ela com clareza, finalmente.
Sim, era mais nova que Ben. A entreolhava dentre o batente e a porta, e Samira viu grandes olhos castanhos, um comprido e bagunçado cabelo do mesmo tom, ondulado. Os pequenos dedos seguravam a porta, e ela parecia querer aproximar-se, mesmo com o pé atrás, pronta para correr de volta.
– Laila, não é? – Samira ligou alguns pontos, arriscando. Já ouvira o nome da menina mais de uma vez.
Laila confirmou com a cabeça.
– Não quer entrar, Laila?
De princípio, a menina não respondeu. Então, hesitante, abriu a porta e a atravessou, encostando-a logo atrás. Ela vagueou pelo quarto, e Sam a observou, intrigada.
– Você vem lá de cima? – a pequena perguntou, para a surpresa da mulher.
Samira concordou, um sorriso amarelo no rosto.
"Lá de cima". Ela não devia conhecer nada que não fosse aquele lugar. Era triste de se pensar. Às vezes, quando Sam sentia que Benji precisava ver além de janelas quadradas, ela o levava até o terraço. Pelo menos ele via a cidade, mesmo que tão tenebrosa sem vida. Podia apontar para a prefeitura, o parque da cidade, a escola onde estudou, o que estivesse ao alcance. Contava histórias. E respiravam juntos o ar puro, o que era o que ela mais prezava. Laila, não. Laila vivera ali dentro a sua vida inteira, Samira supôs.
– Qual seu nome? – a menina insistiu.
– Samira.
– É um nome bonito.
Sam sorriu.
– Quantos anos têm, Laila?
– Sete.
– E o que estava fazendo aqui a essa hora? – Sam soou simpática, quase divertida.
Laila esboçou uma feição travessa e pueril, cavando liberdade na conversa. Aproximou-se da cama.
– Queria ver quem era você...
– Laila – a voz que a chamou veio de fora, dura e rija e, mesmo baixa, conseguiu assustar as duas.
Drica entreabriu a porta. Olhou primeiro para Sam. Depois, para Laila. A mulher loira fez uma careta ao vê-la ali. Laila também, como se soubesse que estava encrencada.
– Deixe-a descansar, anda! – Drica cochichou, fazendo um sinal com a cabeça para Laila sair do quarto.
Laila, a contragosto, obedeceu.
– Amanhã eu tomo café da manhã com você, Samira! – Laila bradou antes de sair, passando como um foguete por Drica e sua carranca brava.
Samira sorriu para Drica quando viram-se sozinhas, um "está tudo bem" silencioso. Mas a mulher não retribuiu.
– Tranque a porta – falou, ríspida. – E durma, pelo amor de Deus, são três e meia da manhã. Não vai se recuperar nunca desse jeito.
Apesar da recomendação parecer bem intencionada, Samira sentiu uma rispidez na sentença, a qual ela pouco compreendeu. Drica não fora com a cara dela, ela percebeu desde que a vira pela primeira vez. Para sua sorte, aprendera a não se importar se é querida ou mesmo aceita por terceiros. Se fosse assim, sofreria nas mãos de Jon por anos. Era apenas uma questão de saber lidar, medir perímetros. Aprenderia logo com Drica.
A loira fechou a porta, e o pouco ar que circulava pareceu fechar-se lá dentro com Sam. Estava quente.
Ela então apagou a vela e deitou voltada para cima, uma posição que raramente a confortava. Mas era a única em que conseguia repousar agora.
Em um escuro tão breu que não sabia se estava de olhos fechados ou não, Samira adormeceu, um sono longe de ser tranquilo.
•
Drica escovou os cabelos loiros e molhados em frente ao espelho. Os fios mortos desprendiam-se na escova e ela preocupava-se cada vez menos. Tentou desviar o olhar das olheiras carregadas do reflexo que a encarava, mas parecia uma missão impossível.
Ela olhou para o relógio na cabeceira de sua cama. Cinco e três da manhã. Muito cedo ou muito tarde, depende de quem o vê. Para ela, a hora de acordar, tomar um banho gelado e trabalhar.
Sabia ser subjugada ali dentro. Seu pai era um homem importante, o que eles relutavam em rotular como líder, mas exercia o papel, mesmo assim. E, então, Drica tornou-se importante, e por suas costas falavam o quanto era privilegiada por ter o pai que tem. Tinha que provar seu valor todos os dias.
Exaustivo, pensava na palavra solta sempre que via seu reflexo. Exaustivo.
A mulher prendeu os cabelos ainda úmidos em um rabo de cavalo alto. Pensou que precisava cortá-los, já frustrando-se com o comprimento.
Os eventos recentes a deixavam com mais dificuldade de pegar no sono. Tinha inveja de Mat, vizinho de rua, que dizia dormir como um príncipe independente da situação.
O fato de Eric ter sido capturado a deixou nauseada por um dia inteiro. Tentou segurar a barra das pessoas ali dentro, os boatos que se espalhavam, o pavor de ter um dos seus nas mãos inimigas, ao mesmo tempo que conciliava a dor de supostamente ter perdido um amigo, o que era dez vez mais difícil, e agora estava exausta.
Exaustivo.
Exaustivo ter que lidar com a volta de Eric, por mais que não tenha sido culpa dele, nem de longe. Exaustivo ter uma mulher completamente desconhecida morando debaixo do teto deles. Aquela sociedade que criaram não era tão grande, e bastava muito pouco para desmoronar.
Drica amaldiçoou mentalmente o pai por ser tão bom. Que benefícios lhes traria trazer o povo dela lá para dentro? Ela só via perigos e desvantagens e, mesmo assim, não conseguiu contrariá-lo. Sabia que seria em vão e ela seria a vilã da história.
Agora, Samira usava as suas roupas, comia da sua comida e dormia na sua cama. Não literalmente. Só a parte das roupas.
E o fato de David ter um plano guardado só para ele e não compartilhar com ela, sua própria filha, a deixava insana.
Quando ela tinha dezesseis anos, o mundo acabou. Drica era uma privilegiada por saber de tudo o que o pai sabia, sim. Ela preparou-se para um mundo o qual ninguém mais estava preparado. Uma adolescente pronta para a guerra, um contraste tão triste. E foi por isso – e por não ter mais ninguém – que David levou-a para Havenna com ele. Onde as catacumbas eram adaptadas sob os tapetes para quando a merda explodisse. E David, apesar de sentir-se irresponsável e egoísta, ficou feliz com a decisão de tê-la trazido. Já faziam longos dez anos, afinal, que ele não via o outro lado do continente. Talvez não mais por muito tempo.
Quando Drica abriu a porta do cubículo em que morava, um vento gélido irrompeu pelas ruelas vazias do que mais parecia um bunker. Ela olhou para cima, para os exaustores, e pensou em como o ar em superfície estava regelado naquela manhã em particular.
Drica nunca foi supersticiosa. Nem um pouco. Mas, por algum motivo, estava com aquela sensação amarga na ponta da língua, e o arrepio que percorreu-lhe a espinha parecia não ter a ver só com o vento que a cortava. Ela abraçou o próprio corpo e voltou para dentro, atrás de um casaco. Balançou a cabeça e afastou os pensamentos ruins. Foi só um mau presságio.
•
Em uma das vezes que Sam parou para estudar com Benji, estavam discutindo sobre o tempo.
– O tempo é relativo, Ben – ela comentou, estirada no terraço ao lado dele. Segurava um livro que trouxera para ele intitulado Discussões e Leis da Física, de K. P. Bell, e gostava de aprender junto com o irmão. Sabia que aquilo era avançado demais para um menino de dez anos. Oito, na época. Ela mesma cansava-se nas palavras de Bell, mas perder-se em teorias e conversas com Benji era gostoso. Gostava de atiçar a curiosidade dele sobre o mundo. E, naquela manhã nublada, Benji queria falar sobre o tempo.
– Como assim relativo? – ele perguntou, as pernas cruzadas, olhando-a como se Samira tivesse as respostas para as questões do universo. Ela admirava o quanto ele a admirava, ao mesmo tempo que temia o dia em que ele crescesse e percebesse que Sam não sabia de tudo.
– Bom – ela fechou o livro e colocou-o de lado –, costumávamos usar relógio para marcar o tempo. Ele era nosso referencial.
Benji a encarava com dúvida estampada no rosto.
– Tempo é uma grandeza... abstrata. E nós a entendemos da nossa maneira. O relógio era um referencial porque foi convencionado assim. Segundos, horas, minutos, meses, inventamos tudo isso. Queria muito que pudesse te mostrar um filme do Christopher Nolan, você ia pirar com Interstellar... Bom, enfim, se... se quiséssemos chamar o equivalente a duas semanas de...
– Jujuba de amora – ele pensou, travesso.
– Jujuba de amora, por exemplo – Samira riu –, poderíamos. Poderíamos dizer que há uma jujuba de amora atrás comemos torta de morango no jantar.
Benji divertiu-se com a analogia.
– É isso que fala aí nesse livro? – ele perguntou.
– Uhum, fala de tempo e jujubas de amora.
Ela bagunçou os cabelos dele, e ele afastou sua mão. E a lembrança morreu aos poucos.
Jujubas de amora, Sam pensou consigo mesma. Ele nem sequer devia se lembrar disso, mas era ainda tão claro para ela. Já estava há duas semanas em Havenna. Duas semanas no abrigo, sem vê-los. Uma jujuba de amora.
– E então? – ela surpreendeu-se com a voz de Louis. A mente estava em outro lugar, apesar do corpo estar ali ao lado do dele, sentado em um banco de madeira sob a luz artificial do que para Samira era o mais bem estruturado abrigo que já vira.
Ela rapidamente acostumara-se a estar lá. As pessoas pararam de olhá-la como se fosse um fantasma, o que ficou mais fácil de se adaptar. Abandonara as muletas depois de uma semana, mesmo Eric insistindo que ela devesse usar. E ela debatia dizendo que o corpo estava bem, recuperando rápido, quando na verdade queria apenas ficar em pé sobre as duas pernas outra vez, em paz, sem ajuda. Independência, enfim.
A vida ali embaixo era fascinante, e ela queria acostumar-se com aquilo mais do que tudo. Almejava, do fundo do coração, que os Corvos não fossem mais uma preocupação. Que os seus chegassem logo e ela pudesse enfim chamar aquele lugar de casa, uma casa onde estivessem Benji e Andy e Raquel e Zoe.
Mas Samira não se deixou iludir.
Dia após dia, David parecia cada vez mais fechado e introspectivo. E ela daria tudo para saber o que arquitetava-se naquela mente geniosa.
Percebeu, por fim, que devia uma resposta a Louis.
– Hum?
– O chá – ele insistiu, um sorriso de lado no rosto, indicando com a cabeça as ervas no pote em frente a Sam, do lado da água fervendo em uma chávena –, do que vai querer?
Sam despertou de seus devaneios e endireitou a postura. Ficou aliviada pela pergunta não ser "como funcionava a distribuição de alimentos dentro do seu abrigo?" ou "por que não pensaram em painéis fotovoltáicos?" ou, ainda, "chegaram a cogitar que as mudanças que fizeram na arquitetura do prédio podia tê-lo derrubado inteiro?", e Sam apenas ficou grata pela pergunta ser "e o chá, do que vai querer?", mesmo que até para essa ela não tivesse a resposta pronta.
– Camomila, então. Obrigada.
Ele concordou, e prontificou-se a servi-la.
Eram sete e quarenta da manhã, por volta disso. Os relógios realmente funcionavam ali dentro, e Samira estava ansiosa por mostrá-los a Ben e, quem sabe, retomar com ele a conversa sobre tempo e relatividade.
Eles deviam chegar a qualquer momento, se não tiverem nenhum acidente de percurso ou imprevistos, o que para ela era inconcebível. Sam não sabia como estava o tempo lá fora – se chovia, se o sol queimava, se as tempestades de areia do deserto estava chegando por lá. Só esperava que estivessem bem, onde quer que fosse, e que Benji estivesse pelo menos divertindo-se, o mínimo que fosse, com pisar fora da prisão cinzenta do prédio pela primeira vez. Eles chegariam logo.
Samira fez boas companhias ali dentro. Acordava cedo, como todos, e tomava um reforçado café da manhã sempre em companhias diferentes. Naquele dia, Louis veio agraciá-la com sua presença.
Laila tornou-se a sombra de Samira e, quando não podia estar com ela, estava com Eric.
Quanto a ele, Sam ainda o achava um mistério, uma grande incógnita.
Eric ajudou-a a se adaptar. Eles viram muito juntos. Com certeza, uma experiência como a que passaram lado a lado cria laços. Entretanto, Eric era ainda muito fechado. Ajudou-a a cuidar dos ferimentos até que estivessem cicatrizados o suficiente para não infeccionar. A ajudava a caminhar – literal e figurativamente – ao mesmo tempo que lhe dava espaço. E ele a intrigava mais e mais.
Naquele dia em particular, ela viu-o aproximar-se pelas costas de Lou, e Sam simplesmente esqueceu-se de prestar atenção no que o amigo falava. Algo sobre energia sustentável que fazia a cabeça de Samira fritar, talvez. Mas o semblante de Eric a distraiu. Ele estava pálido, os olhos destacados na feição pasmada, e ele finalmente olhou para ela.
Quando Lou percebeu que perdeu uma ouvinte, seguiu os olhos de Sam e virou de costas, vendo o amigo parado atrás dele, ofegante, mesmo que não tivesse corrido. Tinha notícias.
– Acabem de comer e nos encontrem na Arena – falou, a voz arrastada e exasperada. – David tem algo para nos contar.
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