2. Falta
Os primeiros raios de sol tocaram o rosto de Vince, o despertador natural lhe avisara do começo de mais um dia. Espreguiçou-se dentro do saco de dormir. Levantou-se, dobrou a cama improvisada e a guardou dentro da mochila, com seus únicos pertences. Coisas essenciais, como escova de dentes, barbeador, toalha, algumas peças extras de roupas.
Aquele telhado era um bom lugar para passar uma temporada. Isolado o suficiente para não chamar a atenção dos vizinhos, quando ele subisse sorrateiramente pela escada externa. Além de haver, próxima à porta soldada que o impedia de entrar no prédio, uma espécie de saleta só com duas das paredes em pé, mas ainda com o telhado intacto. Provavelmente, um antigo depósito. No entanto, para quem dormia ao relento, dispor de um teto sobre sua cama improvisada era um luxo que Vince não dispensaria.
Esticou os dois braços até ouvir o estalo nos ombros e bocejou. O sol nascia alaranjado nesta manhã, uma perfeita pintura de cartão postal. Escorado no parapeito do telhado, ele se permitiu alguns minutos de contemplação.
A cidade, quatro andares abaixo, começava a despertar. Alguns carros passavam apressados com os faróis ainda ligados por causa da pouca claridade. Pessoas andavam encolhidas em seus casacos soltando bocejos aborrecidos até pontos de ônibus. Aos poucos, o silêncio era substituído por motores acelerados, buzinas e os burburinhos dos sons humanos.
Uma mudança sutil do adormecer ao despertar da cidade, a qual lhe passara despercebida durante uma vida inteira. Ao olhar as pessoas apressadas na rua, ele se perguntava se alguém era capaz de prever a desgraça. Ou se todos eram como ele: alguém que iniciou o dia como o jovem cheio de sonhos, mas ao anoitecer havia se tornado menos humano e mais repulsivo.
Vince passou as mãos no rosto, jogou para trás as mechas do cabelo castanho caídas sobre os olhos. E puxou e soltou o ar com força por alguns segundos, afastando as lembranças melancólicas.
Abandonou a vista para iniciar seu treino matinal. Correu ao redor do telhado por meia hora para aumentar a resistência. Usou tijolos esquecidos e vigas de ferro velhas para fortificar os músculos, e finalizaria a manhã com a prática de socos, chutes e rasteiras.
Os treinos eram levados a sério, afinal, ele contava consigo para manter-se vivo. Os músculos firmes e os conhecimentos em golpes, aprendidos em academias, lhe deram o necessário para lutar no primeiro confronto e a resistência o possibilitou correr por sua vida quando seus perseguidores sacaram as armas. Pensar sobre o porquê era perseguido o fez perder a contagem dos abdominais. A lembrança de suas mãos sujas de sangue invadiu qualquer pensamento, socou o chão com fúria.
A dor irradiada dos nós dos dedos para o pulso veio como um castigo merecido. Vince abriu e fechou a mão algumas vezes. Infelizmente, a sensação física não superava a dor invisível, aquela que fazia seu coração gritar em agonia a cada bombear. Ele era culpado por seus crimes e merecedor da subvida que levava. Fugir de quem o queria morto fora possível até agora, mas escapar de sua consciência nunca seria.
Cabisbaixo, andou até a mochila. Era melhor parar de pensar no passado, agora! Lamúrias não o ajudavam em nada, ele sabia. Em um movimento automático vestiu o casaco com capuz. Colocou a mochila nas costas e desceu a escada maltratada pelo tempo, sendo preciso pular os últimos degraus faltantes.
Analisou o restante do dinheiro escondido no bolso interno do casaco e constatou que logo precisaria repô-lo. Teria de arranjar algum trabalho temporário, provavelmente como carregador de mercadorias perto do porto como fizera antes. Um serviço onde não se pedia referências ou documentos, apenas se exigia braços fortes e a aceitação do mau pagamento por algumas tardes de serviço.
O dinheiro guardado ainda duraria uns poucos dias. Garantiria suas refeições e pagaria um banho quente nos precários vestiários da rodoviária e, talvez, sobrasse para a lavanderia.
Nos últimos meses, ele adquirira uma rotina satisfatória, diante das possibilidades. Ao menos conseguia usufruir de momentos de normalidade como sentar-se em um restaurante para almoçar, ler revistas ou jornais. Além, claro, de haver belas canções para acalentá-lo durante as noites.
A lembrança da intrigante cantora com mechas roxas o fez sorrir enquanto caminhava pela calçada à procura de um lugar para almoçar. Já passara da hora dele trocar de bairro, cada dia parado aumentava o risco de ser descoberto, mesmo assim não conseguia afastar-se.
Talvez estivesse enfeitiçado pela melodia pronunciada por tal ser angelical ou apenas cansado demais para continuar. Afinal, qual era o sentido de manter a vida miserável e sem perspectivas a qual foi condenado se não fosse por pura teimosia?
No passado, ele chamava isso de persistência, quando participava dos torneios amadores de Muay Thai, mesmo não sendo um grande lutador continuava erguendo-se só para ser atingido outra vez. Agora havia dúvida do quanto havia de persistência e do quanto era um tolo teimoso apenas para não dar o braço a torcer.
Sentou-se à mesa ao fundo do primeiro restaurante vazio encontrado. Após o pedido ser anotado pela garçonete, ele retirou da mochila a revista amarrotada com figuras de estilos arquitetônicos diversificados e mergulhou na leitura.
Os antigos sonhos de estudante de arquitetura não tinham mais espaço em sua nova realidade. Mesmo assim, olhar as revistas da categoria era prazeroso. Mais um autoengano de normalidade para acalmar seu coração por alguns minutos. Especialmente hoje, isso estava difícil.
***
Após uma tarde na lavanderia à espera da muda extra de roupa ser lavada e seca, Vince desviou o caminho por entre ruas alternativas, para despistar caso alguém o estivesse seguindo e chegou ao bar.
O habitual garçom barrigudo veio atendê-lo com os dentes à mostra.
— Deseja o de sempre?
— Sim — respondeu sem interesse enquanto seu olhar percorria o lugar, em um hábito automático de segurança adquirido.
— Hoje, a noite promete ser agitada — o homem puxou conversa, quando lhe trouxe o prato do dia e uma cerveja. — As noites sem show sempre acabam em brigas.
— O que disse? — Vince inclinou-se chocado ao sentir a secura na garganta.
— Sabe como é. — Riu o garçom. — Se não tem uma música e uma bela cantora para distrair os homens de suas tristezas, descontam no rosto do cara ao lado...
— Não vai ter o show?
— Indisposição da cantora. — O garçom deu de ombros. — Foi o que ela disse quando ligou mais cedo.
— Indisposição? — Vince segurou o pulso do garçom quando este se afastava interessado no próximo cliente. — Algo grave? Ela volta amanhã?
O homem deu de ombros, surpreso pela reação exagerada de Vince. Percebendo como poderia chamar atenção, ele soltou o garçom e fingiu calma enquanto tomava, aos goles, a cerveja que o queimava por dentro.
A única coisa a dar sentido a sua vida, que o fazia ainda ter o desejo de um novo amanhecer, não cantaria hoje e o medo de nunca mais vê-la o dominou. Provavelmente ela voltaria a cantar na próxima noite, mas qual a garantia de ele estar vivo até lá?
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